A matéria é do IHU:
O “Momento Africano” no catolicismo mundial reúne energias
ÁFRICA: Assim como na montagem de um quebra-cabeça, fica mais fácil se achar no noticiário quando se sabe de antemão como deve se parecer o quadro mais amplo. Já está claro que uma das megatendências católicas dos nossos dias é o amadurecimento da Igreja na África.
A reportagem é de John L. Allen Jr, publicada no sítio Crux, 24-03-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Este amadurecimento nos leva três histórias recentes de especial importância:
• No último mês de fevereiro, o Simpósio das Conferências Episcopais da África e Madagascar – SECAM (na sigla em inglês), que reúne os bispos africanos, anunciou a nomeação de um representante para a União Africana como um primeiro passo em direção ao status de observador permanente. A missão é promover o desenvolvimento do continente com base em dois documentos: a “Agenda 2063”, da União Africana, e o Africae Munus, documento final do Sínodo dos Bispos, de 2009, para a África ocorrido no Vaticano.
• Na sequência de um encontro em Namíbia, em meados de março, os chefes das Comissões de Justiça e Paz nacionais e regionais de toda a África anunciaram planos para criar um “Comitê Continental de Reconciliação”, cuja ideia é abordar as causas do conflito e enviar mediadores capacitados quando irromperem novos conflitos.
• Partindo do exemplo dos líderes católicos latino-americanos que criaram, em 2014, uma Rede Eclesial Pan-Amazônica para combater o desmatamento, ativistas católicos africanos anunciaram planos para lançar uma “Rede da Igreja Africana” a fim de lutar contra o impacto negativo das mudanças climáticas e resistir aos ataques contra as florestas tropicais do continente.
Tomados em conjunto, o que estes passos ilustram é uma Igreja Católica na África que aspira a um papel de liderança em toda a região: na política, na resolução de conflitos, na proteção ambiental – em tudo basicamente.
O movimento para se obter o status de observador na União Africana é especialmente revelador, porque sugere que os bispos africanos querem replicar, no continente, o papel que o Vaticano desempenha no cenário mundial como uma voz de consciência, com razão a fonte mais importante do mundo daquilo que o cientista político Joseph Nye chama de “poder suave”.
(A propósito, as pessoas estão levando a sério este movimento para expandir o alcance social da Igreja na União Africana. Um grupo de direitos humanos chamado “Justice Africa”, fundado em 1999 por quatro famosos ativistas, criticou a iniciativa como um “sinal preocupante de que o pensamento católico está se inserindo dentro de uma instituição política”, apontando especificamente para a oposição da Igreja no uso da camisinha no combate à Aids.)
“Não é só no quintal deles próprios que os católicos africanos estão surgindo como protagonistas, mas também na Igreja global".
Nesse sentido, pode-se olhar para o Sínodo dos Bispos sobre a família do ano passado, onde os prelados africanos tiveram um papel de destaque nos debates sobre o trabalho em relação ao gays e lésbicas e se os católicos divorciados e recasados no civil deveriam poder receber a Comunhão, onde geralmente defenderam posições tradicionais.
Há motivos para se acreditar que os africanos pretendam estar no centro das atenções no Sínodo deste ano, quando a assembleia episcopal estará novamente reunida em Roma.
“A África amadureceu e está, aos poucos, assumindo o seu lugar como um entre iguais, tanto no cenário internacional quanto na Igreja Católica internacional”, disse Dom Charles Palmer-Buckle, da Arquidiocese de Accra, Gana, em entrevista ao Crux em meados de fevereiro.
Em janeiro, Palmer-Buckle foi eleito por seus companheiros bispos da África para ser um dos representantes no Sínodo.
Não é difícil entender esta crescente autoconfiança.
Durante o século XX, a população católica da África subsaariana foi de 1.9 milhão para mais de 130 milhões – um crescimento impressionante de quase 7 mil por cento. Os africanos começaram o século como menos de 1% da população católica mundial e terminaram-no com um número em torno de 16%.
As vocações estão também em alta. O Seminário Memorial Bigard, no sul da Nigéria, com 1225 inscritos, é o maior seminário católica do mundo. Sua população estudantil é quase um quarto do número total de seminaristas em todo o território dos EUA, e muitos de seus formandos vão trabalhar como missionários estrangeiros.
O catolicismo ao redor do mundo pode ainda precisar de recursos materiais da Europa e da América do Norte, mas hoje ele também está cada vez mais dependente do capital humano que aflora em lugares como os diversos países africanos e as Filipinas.
Poder-se-ia, na verdade, dizer que os africanos, atualmente, são os novos alemães, em que estes últimos eram, por muitos anos, capazes de influenciar quais projetos pastorais nos países em desenvolvimento iriam florescer e quais não iriam, tudo por meio dos fundos assistenciais consideráveis tais como o Misereor e a Adveniat. (A Igreja Católica na Alemanha beneficia-se de um sistema de impostos que lhe dá recursos significativos para doações.)
Hoje, os bispos africanos podem, em alguns casos, influenciar quais paróquias e missões no Ocidente continuarão suas atividades com base na escolha de enviar, ou não, um padre para aí trabalhar. Isso tudo apesar do fato de que a escassez sacerdotal é, na prática, muito mais aguda na África do que na Europa ou nos Estados Unidos, pois uma Igreja que cresce tem condições de batizar pessoas muito mais rapidamente do que ordená-las.
Para os americanos, tanto os da direita quanto os da esquerda, este “Momento Africano” trará alegrias e consternações em, praticamente, igual medida.
Quanto às “guerras culturais”, a grande massa do catolicismo africano está firmemente encorada naquilo que os ocidentais consideram a direita. Os líderes católicos africanos assumem, em geral, uma postura grandemente tradicional em assuntos tais como a homossexualidade e o aborto, com base não só no ensinamento tradicional católico, mas também em seus próprios costumes morais culturais.
É importante não generalizar, porque os católicos africanos podem surpreender. Por exemplo, apesar das impressões de uma linha católica quase uniforme contra a Comunhão aos divorciados e recasados, Palmer-Buckle disse estar aberto a uma flexibilidade que considere caso a caso.
Mesmo assim, no geral, os mais ardentes tradicionalistas católicos consideram a África como um bastião da esperança.
Em outros temas, tais como a guerra e paz, justiça econômica, ética do capitalismo global de livre mercado, direitos dos imigrantes, o meio ambiente, relações exteriores, o que predomina na opinião africana católica seria, em geral, considerado de esquerda, se não de extrema-esquerda, no debate político americano.
Eis como o Cardeal John Onaiyekan, de Abuja, Nigéria, descreveu as visões africanas da política externa americana em uma entrevista a um ano atrás:
“Há um sentimento de arrogância”, disse Onaiyekan. “Dito de forma simples, algumas pessoas se perguntam: será porque vocês têm a bomba atômica que acabam pensando que devemos concordar com vocês? O que lhes dá o direto de decidir que o governo eleito num país em específico deve mudar?”
“Grande parte das tragédias na história do mundo foram o resultado de impérios e, de certa forma, é isso o que vemos hoje – a globalização através do imperialismo”, acrescentou Onaiyekan. Ou consideremos o prelado nigeriano quanto às atitudes dos cristãos americanos para com a força militar:
“Como africanos, muitas vezes nos surpreendemos pelo fato de que os nossos irmãos e irmãs do Norte seguem, frequentemente, apenas a metade do Evangelho”, disse Onaiyekan. “Alguns cristãos se opõem ao aborto, mas apoiam a guerra. Como podem dizer não ao assassinato de um feto, mas sim para a morte de um adulto?”
Dificilmente Onaiyekan é alguém de pouca valia. Ele, pelo contrário, é um dos prelados mais influentes da África, em parte por causa do papel que desempenhou em seu país de origem. O Rev. Paulinus Odozor, sacerdote nigeriano e professor de Teologia na Universidade de Notre Dame, disse recentemente que Onaiyekan “ajudou a salvar a democracia na Nigéria”, ao contribuir para que o ex-presidente Olusegun Obasanjo, cristão, abandonasse pacificamente o poder em 2007.
Evidentemente que não é o de que os africanos poderão ditar o resultado das discussões católicas por eles mesmos e, para ser honesto, a maior parte deles não tem interesse em assim proceder. Tendo sentido o ferrão do controle colonial por si próprios, a maioria dos africanos não deseja começar a aplicá-los aos outros.
No entanto, os africanos – tantos os do alto quanto os de baixo da hierarquia – parecem, realmente, cada vez mais determinados a se afirmarem. Em si, isto provavelmente significa que estamos dentro de uma caminhada mais interessante – e também mais imprevisível.