terça-feira, 27 de abril de 2010

Três mendigos e a rejeição da humanidade

Outro dia, no Terra Magazine, José Pedro Goulart contou a história de um mendigo que ele viu tentando dar uma flor para uma moça bonita que passava por uma rua de Porto Alegre, que ela recusou gentilmente.

Este trecho do relato é belíssimo: 

   Por outro lado imaginei que talvez ela pudesse ter aceitado a flor. Como forma de coragem. Porque é preciso ter coragem para aceitar uma flor de um arruinado; fácil é quando vem de um príncipe. Sobretudo esse, que não era nenhum Chaplin, um vagabundo de cinema. 
   Esse tinha um aspecto repugnante, ranho no nariz, dentes podres. Contudo ele tinha uma flor. Um passaporte de afeto. Um clichê amoroso da natureza. Diante disso, talvez ela pudesse chorar. Choraria não por ele, mas por ela. Veria a tristeza que é ter que negar. Porque negar é da vida. 
   Entretanto ela não podia conter a repulsa e o nojo que vinha junto com a piedade. Sofria com isso porque sabia que o mendigo que segurava aquela flor, na mão suja e trêmula, era um homem. Um ser humano. Ou pelo menos um borrão de um. Se é um homem, um dia foi menino, uma criança, teve mãe, pai, e provavelmente irmãos. Uma família. Ou não. 

Guardei a história, imaginando que poderia comentá-la no futuro. Eis que hoje leio na BBC Brasil a história de um mendigo de Nova York que, ao tentar proteger uma mulher que estava sendo atacada por outro homem, terminou sendo esfaqueado no peito várias vezes, caiu no chão, e cerca de 25 pessoas passaram por ele sem socorrê-lo, deixando-o agonizando até a morte. 

A polícia só foi chamada 90 minutos depois. O mendigo pelo menos tinha um nome, Hugo Alfredo Tale-Yax, e era um imigrante ilegal guatemalteco. 

Talvez, se não tivesse se preocupado em salvar uma desconhecida, poderia estar vivo até hoje, perambulando pelo bairro de Queens. 

Essas histórias nos mostram o quanto a vida moderna e as cidades grandes nos embrutecem, tornando-nos incapazes de ver no outro, ainda que esfarrapado, um ser humano com um nome e uma história de vida que, por razões que a própria razão talvez desconheça, o colocou naquela condição. 

Lembro-me de ter atendido a porta na casa de meus pais, alguns anos atrás, numa cidade do interior, e quando vi o mendigo visivelmente embriagado, pensei que lá vinha mais um pedido de dinheiro para a próxima pinga, mas ele me surpreendeu quando me pediu uma sacola de plástico para colocar os seus poucos pertences. 

Envergonhado pelo meu preconceito, lembrei-me de uma sacola esportiva que havia ganho de brinde numa compra, que continuava inutilmente guardada, e a dei para ele. Não foi o dinheiro, nem a cachaça, que o alegrou. 

Ficou tão feliz com a sacola nova que o seu sorriso iluminou o meu dia, e me ensinou - silenciosamente - que existe beleza e felicidade nos lugares e nas pessoas mais improváveis. 

Pena que os dois primeiros mendigos deste texto não tenham tido a mesma sorte.

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