por Paul Tillich:
Esse vasto projeto dos filósofos gregos de criar um mundo de significados começou a desmoronar no apagar das luzes do mundo antigo e produziu o que chamo de epílogo cético do desenvolvimento antigo. Originalmente, o termo skepsis queria dizer "observar as coisas". Mas assumiu um sentido negativo de examinar os dogmas, até mesmo as dogmata das escolas gregas de filosofia, para rejeitá-los. Os céticos, assim, duvidaram de todas as formulações das escolas de filosofia. Não que essas escolas não contivessem em seu ensino boa parte desses elementos céticos, como, por exemplo, a academia platônica. O ceticismo não conseguiu avançar além do probabilismo enquanto que as outras escolas tornaram-se pragmáticas. Assim, essa atmosfera cética invadiu todas as escolas e permeou a vida toda no mundo antigo de então. Tratava-se de assunto vital e muito sério. Não se tratava novamente de se sentar em mesas de estudo para descobrir que se podia duvidar de todas as coisas. Essa tarefa seria comparativamente fácil. Na verdade, esse movimento significava o desabamento de todas as convicções. A conseqüência dessa atitude – bastante característica da mentalidade grega – foi uma espécie de paralisia da ação. Se não somos mais capazes de pronunciar juízos teóricos, não podemos agir na prática. Portanto, introduziram a doutrina da epoché, "suspensão de juízo, reserva, não julgar nem agir, não decidir nem teórica nem praticamente". A doutrina da epoché significava a resignação do juízo em todos os aspectos. Por isso, os céticos retiraram-se para os desertos vestidos de uma simples túnica ou manto. Os monges cristãos, mais tarde, seguiram-nos nessa atitude, porque eles também se desesperaram sobre a possibilidade de se viver neste mundo. Alguns céticos da igreja primitiva eram sérios e agiam de acordo, ao contrário de certos céticos esnobes de nossos dias que não se animam a arcar com as conseqüências de seu ceticismo, que levam vidas alegres e confortáveis enquanto duvidam de todas as coisas. Os céticos gregos retiraram-se da vida e assim mostraram-se consistentes.
O ceticismo foi, pois, um dos importantes elementos para a preparação do cristianismo. As escolas gregas, como os epicuristas, os estóicos, os acadêmicos, os peripatéticos e os neopitagóricos, não eram escolas no sentido em que temos hoje escolas filosóficas, como a escola de Dewey ou a de Whitehead. As escolas filosóficas gregas eram também comunidades cúlticas; eram meio rituais e meio filosóficas. Seus membros queriam viver de acordo com as doutrinas de seus mestres. Quando surgiu o movimento cético, procuravam acima de tudo a certeza; queriam-na para poder viver. Acreditavam que os grandes mestres, Platão ou Aristóteles, o estóico Zenão ou Epicuro, e mais tarde Plotino, não eram apenas pensadores ou professores, mas homens inspirados. Muito antes do cristianismo existir, a idéia de inspiração já se desenvolvia nessas escolas gregas: seus fundadores eram inspirados. Quando membros dessas escolas entraram mais tarde em discussão com cristãos, diziam, por exemplo, que não era Moisés o inspirado, mas Heráclito. Essa doutrina da inspiração também ajudou o cristianismo a entrar no mundo. A razão pura não era capaz de construir a realidade na qual se pudesse viver.
O que se dizia sobre os fundadores dessas escolas filosóficas era semelhante ao que os cristãos diziam a respeito do fundador de sua igreja. É curioso notar que um homem como Epicuro – de tal maneira atacado pelos cristãos que só restam dele poucos fragmentos – era chamado soter pelos discípulos. Essa palavra era usada no Novo Testamento para significar "salvador". Assim, o filósofo Epicuro era conhecido como salvador. Por quê? Em geral, Epicuro é considerado um homem que sempre viveu bem nos seus agradáveis jardins e que ensinou uma filosofia hedonista rejeitada pelos cristãos. Mas o mundo antigo não tinha essa idéia sobre Epicuro. Era chamado de soter porque fizera a coisa mais importante que alguém poderia fazer pelos seus seguidores: libertava-os da angústia. Epicuro, com seu sistema materialista de átomos, libertava as pessoas dos demônios presentes na totalidade da vida do mundo antigo. Vê-se bem que a filosofia era assunto muito sério nessa época.
Outra conseqüência desse espírito cético era o que os estóicos chamaram de apatheia (apatia), que significa ausência de sentimentos em relação às forças e impulsos da vida, como desejos, alegrias, dores, indo-se além de tudo isso ao estado da sabedoria. Sabiam que somente algumas pessoas conseguiram alcançar esse estado. Os céticos que se retiraram para os desertos demonstravam até certo ponto essa capacidade. Por trás de tudo isso, naturalmente, situava-se a crítica anterior aos deuses mitológicos e aos ritos tradicionais. A crítica da mitologia deu-se na Grécia cerca da mesma época em que o Segundo Isaías fazia o mesmo na Judéia. Essa atividade crítica minava a crença nos deuses do politeísmo.
(TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Paulo: ASTE, 2000, 2ª ed., pp. 26-28)