terça-feira, 17 de junho de 2014

Quando uma atéia picada de cobra precisa recorrer ao pajé


Incidente que tinha tudo para dar errado, mas - após vários percalços - termina com final feliz, segundo noticia o Estadão:

Nas mãos do pajé

BARBARA MAISONNAVE ARISI

Antropóloga picada de cobra na floresta amazônica denuncia a falta de atenção da ‘saúde dos brancos’ com os indígenas

Quinta-feira, 5 de junho, final de tarde amazônico, o céu alaranjando. Após um dia de filmagem com os índios matis e a equipe de Céline Cousteau, neta de Jacques Cousteau, tomar um banho de rio parece ser o merecido presente para um longo dia ouvindo as trágicas narrativas de mortes e perdas que fazem parte do cotidiano de quem vive na Terra Indígena Vale do Javari, segunda maior área de proteção etnoambiental brasileira.

Desço no rumo do Rio Branco e ela me escolhe. Salta e a flagro ainda em voo, negra, comprida e ainda com o rabo enrodilhado. A dor aterrissa na minha panturrilha. Sinto o veneno entrar na carne, a queimação. Levanto a perna e a cobra fica pendurada, ganho noção de seu peso. Ela me solta e corre. Grito em inglês para o colega da equipe que caminhava à frente: “snake bite”. E em matis: “dunu peax”, a cobra picou.

Aperto minha perna e correm dois fios de sangue. Meu irmão adotivo indígena Tëpi me segura e vamos para a casa de madeira serrada que abriga a farmácia da aldeia Tawaya. Entro e o enfermeiro está arrumando a maca estropiada onde costuma fazer atendimento ambulatorial dos indígenas. Felipe Machado começou a trabalhar no Javari em janeiro, antes estava na área ticuna. “Vamos que vamos, amigo, você vai me salvar”, digo. “É meu primeiro acidente ofídico, mas eu conheço o protocolo”, responde ele.

Prepara o antianafilático, enquanto a técnica dissolve a ampola de antiofídico liofilizado. Já vi quatro acidentes assim. Sempre carreguei o soro produzido na Colômbia cuja importação é proibida pela Anvisa. No Brasil, temos soros que precisam de geladeira para serem armazenados. Quem se salva com soro quase sempre usa o colombiano.

Estou a 14 horas da cidade de Atalaia do Norte. Um menino do povo marubo, vítima de acidente ofídico como eu, teve a perna amputada neste ano. Mesmo ateia, rezo uma ave-maria e, na hora do “nossa morte”, arremedo “que não vai ser hoje, não”.

Chega o ancião matis Binan Chapu Chu, conhecedor de tratamentos para cobras, um de meus professores e interlocutor de minha tese. Ele me olha tranquilo e pergunta se tenho dor de cabeça, se meu pé dói, se vomitei. Felipe começa a aplicar o soro e Binan Chapu se oferece para chupar a picada e sugar para cuspir o veneno. Recebo hidrocortisona. A comunicação por rádio UHF não opera depois das 18 horas, mas Felipe consegue informar Magna Nobre, técnica da Secretaria Especial de Saúde Indígena. Magna é sobrevivente da queda da aeronave que, em 2009, levava a equipe de vacinação de Cruzeiro do Sul (AC) para Tabatinga (AM). Ela e os colegas passaram a noite na floresta e, graças a Txema Matis (ancião que caçava quando percebeu um motor de avião silenciar durante o voo), foram achados no dia seguinte. Ela retornava: “Barbara? A antropóloga?”. Consultou o chefe do Distrito Sanitário Especial Indígena, Jean Heródoto Salles, e informou que remoção por helicóptero era só para indígenas. Felipe, incrédulo, questionava: “E se fosse da equipe da saúde?”.

O gerador para de funcionar e acendemos três velas. Alguns matis e um piloto da equipe de saúde partem para a aldeia Bokwat-Paraíso, para buscar outra ampola de soro. O enfermeiro pendura sua rede perto da minha maca e, a cada tanto, confere meus sinais vitais. Às 23h, chega a canoa com motor peque-peque, e aplicamos mais uma ampola. “Calma, não acelera o coração.” Na parede, move-se uma caranguejeira. Seguro a bolsa de soro enquanto Felipe mata a aranha com um pau de vassoura.

Às 7h, transportam-me na rede até a baleeira com motor de 200 HP. Vamos pelo Rio Branco, desembocamos no Rio Itacoaí e às 17 horas chegamos à base de vigilância da Funai. O enfermeiro de lá me avalia e descemos pelo Rio Javari no rumo de Atalaia do Norte. Chegamos à balsa flutuante na sexta às 20h30, perto de um hospital. Mas não há médicos no plantão. Não é surpresa para mim. Em 2011, escrevi com a médica Deise Francisco e o antropólogo Pedro Cesarino, a pedido do Instituto Socioambiental e do Centro de Trabalho Indigenista, um diagnóstico sobre o Javari com recomendações para uma política de saúde indígena na região. Agora vivia a vulnerabilidade de uma emergência, com precários recursos, falta de controle social e o descaso.

O coordenador da regional da Funai, Bruno Pereira, dirige mais 25 km até Benjamin Constant por uma péssima estrada. Chegamos ao hospital geral, onde sou atendida por um médico que administra mais cinco ampolas de soro antiofídico e entra com antibióticos. Muitos doutores que atendem lá são da Colômbia, Peru e Bolívia, pois não há médicos brasileiros que se candidatem a essas vagas. Esses doutores não têm registro no CRM e não podem “referenciar” pacientes para prosseguir tratamento em outros hospitais ou prescrever medicações. Como eles, enfermeiros, técnicos e auxiliares são terceirizados, não possuem plano de carreira nem direitos trabalhistas.

Fico hospitalizada dois dias. Assino um documento em que me responsabilizo por optar sair do hospital. Argumento que busco melhor atendimento e a proximidade da família. De Benjamin, barco catraia para Tabatinga. De lá, voamos para Manaus. A equipe segue para os EUA e eu para Cumbica. Chove em Foz do Iguaçu e o aeroporto está fechado. Estou há mais de 24 horas sem antibióticos. Penso em buscar atendimento em São Paulo, mas há greve de metrô e o trânsito está caótico. Meu voo é anunciado. Tenho 38° de febre quando me apresento novamente no hospital, onde conto essa longa história e faço a notificação nacional de ataque de animal peçonhento. Entrarei na triste estatística de 20% de mulheres que sofrem esse tipo de acidente.

Cobras só atacam quando alguém manda. O aparecimento da aranha na mesma noite comprova que os animais que têm “xó” (poder xamânico) andavam à minha espreita. Como vivi depois de uma “quase morte”, agora o “dunu tsussin” (força desencorporada da cobra) vai me ensinar e posso seguir estudando para ser pajé. O caminho é longo, mas certamente menor do que lutar por uma mudança do governo quanto à saúde dos povos indígenas e daqueles que, como o enfermeiro Felipe e eu, trabalham com eles na Amazônia. Como pesquisadora, continuarei a caminhar pela floresta no Vale do Javari. Melhor contar com a força e o espírito da jararaca. A saúde dos brancos pelo jeito nunca será solução.

Bárbara Maisonnave Arisi é antropóloga e professora de Etnologia Indígena na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila)



LinkWithin

Related Posts with Thumbnails