quinta-feira, 3 de junho de 2010

Eucaristia, comunhão e serviço cristão

Hoje é feriado de Corpus Christi, data em que os católicos comemoram o significado que veem na eucaristia, para eles o sacramento da transubstanciação dos elementos pão e vinho respectivamente no corpo e sangue de Jesus Cristo, posição que se opõe ao simbolismo que a maioria dos protestantes atribui ao ritual. De qualquer maneira, a eucaristia (ou ceia do Senhor) é um momento de comunhão, testemunho e de serviço aos outros. Nesses tempos bicudos, em que vemos muitas pessoas se servindo da Igreja em vez de servir a Deus e ao próximo, não surpreende encontrar nos reformadores quem se opusesse a esta mercantilização da religião. Pena que, na atual era dos "teólogos" profanos do utilitarismo, os reformadores sejam muito pouco lidos e respeitados. Em 1519, Martinho Lutero escreveu o seu "Sermão sobre o Venerabilíssimo Sacramento do Santo e Verdadeiro Corpo de Cristo e sobre as Irmandades" (que pode ser lido clicando-se aqui), em que fala sobre a Eucaristia, ainda numa visão mais próxima da Igreja Católica do que aquela que formularia ao longo do seu ministério. É preciso ler este Sermão levando em conta que Lutero ainda estava no início de sua separação do Vaticano. As 95 teses haviam sido pregadas na porta da Igreja de Wittenberg em 1517, a Dieta de Worms se reuniria apenas em 1521 para julgá-lo, ano em que o papa o excomunga. Para Lutero, a eucaristia era um dos temas centrais da vida da Igreja, e ele enfatiza a questão da fé, da comunhão e do serviço cristãos, que, infelizmente, vêm sido esquecidos pela igreja evangélica brasileira em pleno século XXI:

13. Não é difícil encontrar pessoas que gostam de desfrutar, mas não querem contribuir. Isto é: gostam de ouvir que neste sacramento lhes é prometido e dado auxílio, comunhão e assistência de todos os santos. Elas, entretanto, não querem retribuir a comunhão, não querem ajudar o pobre, tolerar os pecadores, cuidar dos miseráveis, solidarizar-se com os que sofrem, interceder pelos outros. Também não querem apoiar a verdade, buscar o melhoramento da Igreja e de todos os cristãos empenhando seu corpo, seus bens e sua honra. Elas não o fazem porque temem o mundo, porque não querem ter que sofrer desfavor, prejuízo, vergonha ou morte, embora Deus queira que, por causa da verdade e do próximo, elas sejam deste modo impelidas a desejar tão grande graça e força desse sacramento. Estas são pessoas que buscam seu próprio proveito, às quais este sacramento de nada serve, assim como é insuportável o cidadão que quisesse ser apoiado, protegido e favorecido pela comunidade, mas que, em contrapartida, não servisse à comunidade e nada fizesse por ela. Nós, pelo contrário, precisamos deixar claro que os males dos outros também sejam nossos, se queremos que Cristo e seus santos assumam os nossos males; assim a comunhão se torna plena e se faz justiça ao sacramento. Pois onde o amor não cresce diariamente e transforma a pessoa de tal forma que ela participe da existência de todos, aí o fruto e o significado desse sacramento estão ausentes.

[...]

Entra aqui a terceira parte deste sacramento: a FÉ, que é o que importa. Pois não basta saber o que é e o que significa este sacramento. Não basta saberes que se trata de uma comunhão e de uma misericordiosa permuta ou mistura do nosso pecado e sofrimento com a justiça de Cristo e de seus santos. Tu também precisas desejá-lo e crer firmemente que o recebeste. É neste ponto que o diabo e a natureza mais se esforçam, para fazer com que a fé de modo algum persista. Algumas pessoas exercitam sua habilidade e sutileza tentando descobrir onde fica o pão ao ser transformado na carne de Cristo e o vinho [ao ser transformado] em seu sangue, e como, sob tão pequena porção de pão e vinho, pode estar encerrado todo o Cristo, sua carne e seu sangue. Não importa que tu não te preocupes com essas questões. É suficiente que saibas que é um sinal divino, no qual a carne e o sangue de Cristo estão verdadeiramente contidos; deixa o "como" e o "onde" por conta dele mesmo.

[...]

Por isso também é útil e necessário que o amor e a comunhão de Cristo e de todos os santos aconteçam ocultamente, de modo invisível e espiritual, e que nos seja dado apenas um sinal corporal, visível e exterior dos mesmos. É que se esse amor, comunhão e apoio fossem evidentes como a comunhão temporal das pessoas humanas, não seríamos fortalecidos nem exercitados no sentido de confiar nos bens invisíveis e eternos ou de desejá-los; antes, seríamos exercitados em confiar apenas nos bens temporais e visíveis, ficando tão habituados a eles que não abriríamos mão deles de bom grado e seguiríamos a Deus somente na medida em que nos precedessem coisas visíveis e palpáveis. Desta forma, seríamos impedidos de jamais chegar a Deus, pois, para chegarmos até ele, todas as coisas temporais e perceptíveis devem desaparecer e nós devemos nos desacostumar delas por completo.

(Martinho Lutero, in Obras SelecionadasOs primórdios – Escritos de 1517 a 1519, Eds. Sinodal/Ulbra/Concórdia, 2004, vol. 1, 2ª ed., pp. 425-444, tradução de Annemarie Höhn et al.)


De volta à Reforma, já!




Para uma discussão mais detalhada do que pensavam os reformadores a respeito da eucaristia, recomendamos também as seguintes leituras:

Lutero e a Eucaristia

Calvino e a Eucaristia


Zuínglio e a Eucaristia


Jan Hus - A Santa Ceia

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