domingo, 6 de junho de 2010

Lutero e a verdadeira riqueza

Martinho Lutero (1483-1546) pregou sobre o Sermão da Montanha (Mateus 5-7) semanalmente entre novembro de 1530 e abril de 1532, sendo suas anotações compiladas e publicadas logo em seguida. Lutero pregava sobre o evangelho de Mateus às quartas-feiras e sobre o evangelho de João aos domingos, o que revela uma certa busca de equilíbrio ao falar sobre a prática da vida cristã no meio da semana, reservando o dia do Senhor para as reflexões mais teológicas. Lutero analisou a fundo cada uma das bem-aventuranças de Mateus 5, e ao se deter sobre os bem-aventurados "pobres de espírito" do v. 3, faz algumas observações bastante interessantes que contrastam gritantemente com a interpretação exótica que muitos "teólogos" da prosperidade encampam modernamente. O texto completo desta bem-aventurança de Mt 5:3 pode ser lido no site e-cristianismo, mas destaco aqui alguns trechos:

Assim como essa prédica é amável e doce para os cristãos que são seus discípulos, do mesmo modo ela é aborrecedora e insuportável para os judeus e seus grandes santos. Pois já no início, ele lhes desfere um duro golpe com essas palavras, refuta e condena seu ensino e sua pregação, ensinando justamente o contrário, sim, proferindo um ai sobre sua vida e seus ensinamentos, conforme o refere Lucas 6[.24-26]. Pois a suma de seus ensinamentos era a seguinte: se uma pessoa é bem-sucedida aqui na terra, essa é bem-aventurada e está em boa situação. É nesse sentido que iam todos os seus pensamentos: se fossem piedosos e servissem a Deus, Deus lhes iria dar tudo na terra e não lhes deixaria faltar nada, como diz Davi a seu respeito no Salmo 144[.8,13,14]; esta é a sua doutrina:? "que todos os cantos e celeiros estejam abarrotados de provisões e as pastagens cheias de ovelhas que procriam muito e muitas vezes, e que o gado produza muito. E que, além disso, não sejam atingidos por nenhum dano, nem prejuízo, nem desgraça ou praga. A esses chamam de pessoas bem-aventuradas", etc.

Contra isso, Cristo ergue sua voz, dizendo que é preciso algo mais do que ter o suficiente aqui na terra, como a dizer: caros discípulos, quando forem pregar ao povo, irão constatar que todos ensinam e creem o seguinte: quem é rico, poderoso, etc., é completamente bem-aventurado e, por outro lado, quem é pobre e miserável, esse está rejeitado e condenado por Deus. Os judeus estavam firmemente persuadidos da crença de que, se uma pessoa é bem-sucedida, isso seria um sinal de que Deus lhe era gracioso, e vice-versa. A razão para isso era o fato de terem muitas e grandes promessas de bens terrenos e corporais da parte de Deus, que ele queria dar aos piedosos. Nisso confiavam, pensando que, se tinham essas coisas, estariam bem com Deus. O livro de Jó também foi escrito com esse objetivo, pois sobre esse ponto seus amigos discutem e debatem, insistem em que ele devia ter grande culpa perante Deus e o apontam como quem estava sendo castigado por causa disso. Por isso deveria confessar sua culpa, converter-se e começar uma vida pia, assim. Deus novamente tiraria o castigo, etc.

Por isso, essa prédica era necessária no começo, a fim de acabar com essa ilusão e arrancá-la do coração como um dos maiores empecilhos para a fé, que fortalece no coração o verdadeiro ídolo Mamon. Pois essa doutrina não podia resultar em outra coisa senão que as pessoas se tornassem avarentas e cada qual só tivesse uma preocupação: ter o suficiente e dias bons, sem qualquer carência e adversidade. E todos foram levados a pensar: se for bem-aventurada a pessoa que está bem de vida e tem o suficiente, então tenho que dar um jeito para não ficar para trás.

É isso que o mundo inteiro crê ainda hoje, especialmente os turcos que mais confiam e se apoiam nessa crença, concluindo que não seria possível que tivessem tanto sucesso e tantas vitórias, se não fossem o povo de Deus e se ele não lhes fosse mais favorável do que a outros. Entre nós, todo o papado igualmente crê nisso, e o fundamento de sua doutrina e vida é ter suficiente; baseados nisso, se apropriaram dos bens do mundo inteiro, como está à vista de todos. Em suma, essa é a crença ou a religião maior e mais difundida na terra, na qual todos os seres humanos permanecem segundo a carne e o sangue, e também não conseguem considerar outra como salvação. Por isso, Cristo prega um sermão totalmente novo para os cristãos. Se estão passando por dificuldade, sofrem pobreza e têm que dispensar riqueza, poder, honra e dias bons aqui na terra, não obstante serão bem-aventurados e receberão não uma recompensa temporal, e, sim uma recompensa diferente, eterna; no Reino dos céus eles terão abastança.

[...]

Tudo isso, para dizer que, enquanto vivemos, não façamos outro uso dos bens temporais e das necessidades corporais como o faz um hóspede num lugar estranho, onde passa a noite e pela manhã segue seu caminho. Ele nada mais precisa do que comida e cama, e não deve dizer: isto aqui é meu. Aqui quero ficar. Nem deve tomar posse da propriedade, como se lhe coubesse de direito. Senão terá que ouvir em breve o dono da casa dizendo: meu caro, acaso não sabes que és hóspede aqui? Segue teu caminho e vai para o lugar que te compete. O mesmo se dá aqui. Os bens temporais que tens, Deus tos deu para esta vida e te permite que os uses e enchas com eles o saco de vermes que carregas pendurado no pescoço. Mas não te prendas nem amarres neles o coração, como se quisesse viver eternamente, e, sim, como alguém que sempre segue adiante em busca de outro tesouro mais elevado e melhor que é teu e o será eternamente.

(LUTERO, Martinho. Prédicas semanais sobre Mateus 5-7 in Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, Canoas: ULBRA, Porto Alegre: Concórdia. 2005,Tradução: Ilson Kayser, vol 9, .pp. 28-35)

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