Ilustração de Brian Stauffer |
Artigo de Milly Lacombe para a revista Galileu:
Famílias partidas
Passa de 300 mil o número de adolescentes homossexuais expulsos de casa pelos pais nos Estados Unidos — eles já representam 40% dos jovens sem-teto do país
Neste momento, chega às ruas norte-americanas uma nova classe de cidadãos que não têm onde dormir: a dos adolescentes gays que foram expulsos de casa pelos pais depois de revelar a homossexualidade.
O número estimado de jovens com esse histórico que precisam recorrer a abrigos públicos assusta: mais de 300 mil, de acordo com cálculo feito pelo Center of American Progress. E enquanto muitas outras questões gays chegam ao debate público —como casamento e adoção —, o tema do adolescente abandonado pela família permanence à sombra.
O assunto veio à tona nos Estados Unidos depois que um vídeo viralizou no YouTube; o vídeo mostra Daniel Pierce, um norte-americano de 20 anos, sendo expulso de casa. São minutos de tirar o fôlego: revoltados, os pais abusam verbal e fisicamente de Daniel. É impossível não se comover com as cenas, ainda que tecnicamente a imagem não seja boa.
Todo homossexual que se assume pode dividir a vida entre antes e depois do momento em que diz à família “eu soy gay”. São três palavras curtas, mas imperialmente difíceis de serem pronunciadas pela primeira vez. Não é toda hora que o repórter pode se misturar à matéria e dar um testemunho, mas esse é precisamente o caso. Em 2001, decidi contar à minha mãe que era gay. Os minutos durante os quais tentei dizer essas três palavras foram alguns dos mais longos e sofridos que já experimentei.
Quando a rejeição é a resposta, é como se o mundo lá fora se mostrasse pela primeira vez com toda a sua crueldade. Não é por acaso que adolescentes gays têm um índice de suicídio que está entre os mais altos do mundo e chega a ser oito vezes maior do que o de um adolescente heterossexual.
Lidar com a rejeição já é difícil para uma pessoa madura, mas para um ser humano em formação a tarefa se torna muitas vezes insuportável. No meu caso, anos depois a história teve final feliz, mas com dezenas de milhares de adolescentes não é assim.
Lucina Rodriguez, transsexual de 21 anos, é uma dessas jovens em risco, que se descobriu gay quatro anos atrás e saiu de casa em 2012 para escapar da mãe. Desde então, ela peregrina pelas ruas. Durante o inverno passado, quando temperaturas chegaram a - 23 °C, ela se refugiou por semanas no metrô de Nova York. Uma noite, foi assaltada e perdeu laptop e certidão de nascimento. “Nessa hora, achei que não ia mais aguentar”, disse à rede de TV NBC. “É ruim, mas me acostumei a viver nas ruas.”
REAÇÕES CONTRÁRIAS
Nos Estados Unidos, estudos feitos com adolescentes gays em abrigos indicam que a maioria vem de família muito conservadora e religiosa, dentro das quais é mais difícil entender a homossexualidade como natural e mais fácil enquadrá-la como doença ou desvio de caráter. Cathy Kristofferson, escritora e advogada de direito do adolescente, calcula que quase metade dos adolescentes americanos que conta aos pais que é gay acaba saindo de casa logo depois — ou porque foram expulsos ou porque se sentiram ameaçados.
O jovem Corey, por exemplo, teve de se trancar no banheiro depois de contar aos pais que era gay. Dias antes, quando se preparava para fazer a revelação, ouviu o pai gritar que se houvesse um homossexual dentro daquela casa, ele morreria com um tiro na cabeça. Temendo pela vida, Corey correu para o banheiro, esperou que o pai parasse de tentar arrombar a porta e de madrugada foi embora para nunca mais voltar. Foi acolhido pela família de uma amiga que, um ano depois, o adotou legalmente, mas nem todos têm a mesma sorte.
Sabendo do problema, instituições como a norte-americana Raise a Child, especializada na adoção de jovens que estão em abrigos, incentivam especificamente a adoção de adolescentes gays rejeitados pela família. Carl Siciliano, ex-monge beneditino que fundou em Nova York o maior abrigo para adolescentes gays do continente, diz que deixou a Igreja porque começou a questionar suas posições. Ele já trabalhava com sem-tetos nos anos 1990 quando notou um aumento significativo de adolescentes gays nos abrigos. Antes, Siciliano contou à revista The Rolling Stone, eram apenas veteranos de guerra, alcoólatras e pessoas com deficiência mental nas ruas. Não coincidentemente, foi naquele período que a homossexualidade começou a ser tratada com mais naturalidade na TV, com seriados populares como Friends apresentando personagens gays perfeitamente inseridos na sociedade.
Ao enxergar a normatização de sua orientação sexual fica mais fácil para o adolescente se revelar a seu núcleo de afeto. Um tipo parecido de reação aconteceu quando o casamento gay foi aprovado em Nova York: Siciliano conta que notou um aumento de quase 40% do número de jovens gays desabrigados. Se de um lado a homossexualidade começa a ser tratada normalmente, do outro as reações contrárias tendem a ganhar volume.
O QUE DIZ A IGREJA
No mais recente Sínodo da Igreja Católica, promulgado em outubro, a “mensagem às famílias do mundo” fracassou ao tentar oficializar as boas-vindas aos gays, como constava do documento original. Depois de votação realizada pelos padres, a frase foi retirada do documento final, que trata de problemas atuais do mundo. No mesmo Sínodo também foi reprovada a comunhão aos divorciados que se casaram outra vez.
Em abril deste ano, Siciliano escreveu uma carta ao Papa Francisco que foi publicada pelo The New York Times. Ele dizia que trabalhava com sem-tetos há 30 anos e lembrava como a falta de uma mensagem de acolhimento por parte da Igreja era capaz de destruir famílias. O centro de apoio fundado por Siciliano tem o nome de Ali Forley, um homossexual sem-teto de 22 anos que levou um tiro na cabeça nas ruas do Harlem, em Nova York. Siciliano sabe que se Forley tivesse um lugar seguro para pernoitar, ele talvez estaria vivo hoje.