quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Quem nos protegerá de Trump?

Marcelo Rubens Paiva tenta responder essa angustiante questão em coluna interessante publicada no Estadão de 14 de janeiro de 2017:

Aprender com o erro

Foi a ameaça de extinção em massa que freou a corrida armamentista da Guerra Fria

Os genes humanos cederam sua primazia na evolução dos homens a um agente completamente novo, inédito, não biológico, a cultura. Mas não devemos nos esquecer que tal agente novo e original é completamente dependente dos anciões genes humanos para existir. Aliás, foi feito pelos genes humanos, ser social que começou entre grupos de caçadores e colhedores coletivos, e que passou a pintar cavernas, compor músicas e contar histórias. Este é um dos pilares da sociobiologia de Theodosius Dobzhansky e Edward Wilson. Mas o que é cultura? Música, poesia, pintura, dança, esporte, folclore, festas familiares, jogos, religião, filosofia, narrativas e muito mais.

É culinária, confecção, decoração, previsão do futuro, contrato social, casamento, compreensão dos astros, calendário, divisão do ano em estações, meses, dias, horas, controle do tempo, ter noção do antes e depois, da vida e da morte.

É altruísmo (por incrível que pareça, poucas espécies o tem), tabu do incesto (aqui, há divergências, já que alguns acreditam que haja uma aversão natural de se afastar de alguém com quem conviveu na infância por mais de seis anos, o que aumenta a chance de diversificação genética do grupo), divisão entre infância e puberdade, rituais que celebram o princípio da fertilidade, cura pela fé, mitologia, divisão em castas, análise de sonhos, medicina, drogas psicoativas, educação.

Cultura é penteado, tatuagem, colares, cocares, fabricação de armas, utensílios para caça, cozinha, higiene pessoal. E ética, governos, Estado, nomes, nomes familiares, classificação das coisas, das cores, números, regras de convívio, rituais, leis, sanções penais, exílio ou banimento, superstições, correspondências, sinais e documentos.

Antropólogos e os pioneiros da sociobiologia costumam delimitar os avanços da humanidade como parte do alcance genético. Todas as particularidades da cultura humana têm explicações genéticas, fazem parte da evolução. Como entender Trump pela Teoria da Evolução, já que pode levar ao colapso das relações sociais.

É famosa a hipótese de Robin Fox. Que foi reproduzida em termos no clássico O Senhor das Moscas, de William Golding (Nobel de 1983), e recentemente no filme alemão A Onda, em que um professor de história prova que é possível, sim, que o nazismo possa voltar à Alemanha do novo milênio, numa experiência radical pedagógica que serve àqueles que não acreditam que tamanha insanidade coletiva um dia ocorreu.

Como seria se mandássemos bebês a um cenário isolado, uma ilha, um planeta, em que sobrevivessem sem contato conosco? Como seria a civilização criada por eles? Aprenderiam a se comunicar uns com outros? Teriam fala, escrita? Seus descendentes teriam inventado uma língua completamente diferente das existentes entre nós? Esta língua teria vários troncos? Seria possível nós entendermos esta ou estas línguas? Seria possível traduzi-las? Elas seguem os mesmos princípios de uma linguagem humana?

Fox vai longe. Esses exilados autônomos, se sobrevivessem ao isolamento, construiriam uma sociedade que teria governo, leis de propriedade, regras sobre o casamento, costumes sobre tabus, métodos para resolver conflitos sem derramamento abusivo de sangue, crenças no transcendente e sobrenatural (religião), práticas religiosas, mitos e lendas, narrativas orais, educação, sistema de status social, cerimônia para iniciação dos jovens, práticas de corte como enfeites para homens e mulheres, pinturas corporais, jogos, regras, disputas, prêmios, indústria de fabricação de ferramentas, armas, adultério, suicídio, psicoses, neuroses, curandeiros, família, guerras e pacificação.

Se a roda não tivesse sido inventada, seja lá onde ela foi inventada, outro povo a inventaria. Se Gutenberg não tivesse inventado a prensa mecânica, alguém a inventaria. Se o tear mecânico não tivesse sido inventado, alguém o inventaria. O avião foi inventado ao mesmo tempo por Santos Dumont e pelos irmãos Wright. Assim como a Teoria da Evolução.

O mundo está assustado. Procura nos manuais de ciência política explicações para a eleição de Trump. Ele é uma releitura de Silvio Berlusconi, o empresário não político, que admira Nixon e Reagan, do ideário republicano radical, somado ao ódio histérico fomentado pelo macarthismo, que o desencanto com a política e com a elite liberal levou ao poder.

Trump é perigoso. Escolheu os imigrantes como o senador Joseph McCarthy escolheu os comunistas, para numa caça às bruxas governar sem projeto. É uma aberração política? É explicado pelo darwinismo social?

As crianças isoladas inventariam a República e a paz entre cidades, o reino e a promessa de estabilidade, a guerra total de Hitler e depois a paz, Trump, o conflito extremo, e a democracia e o Estado de bem social.

Trump é a razão para a existência de Trump: é preciso identificar e entender o ódio, eventualmente, para explicar como é fundamental para a sobrevivência da espécie a tolerância, a ética e o altruísmo.

Foi a ameaça de extinção em massa que freou a corrida armamentista da Guerra Fria. Foram as bombas de Hiroshima e Nagasaki que impediram a detonação rotineira de outras em cidades habitadas.



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