quinta-feira, 9 de julho de 2009

Calvino x calvinistas

por Justo L. González 

Devido à sua importância e ao fato de que tem sido freqüentemente interpretada como representante da teologia de Calvino, a Confissão de Westminster merece alguma consideração detalhada, bem como uma comparação com a teologia do próprio Calvino. 

 A Confissão de Westminster começa com um capítulo sobre a Santa Escritura. Nele é declarado que os textos gregos e hebraicos do Antigo e Novo Testamento, que foram mantidos puros ao longo das eras são “imediatamente inspiradas” por Deus. A regra infalível para interpretar a Escritura não é outra senão a própria Escritura, em que os elementos necessários para a salvação estão claramente declarados – muito embora questões menores possam ser mais difíceis para o leigo interpretar. Embora Calvino concordasse com a importância que a Confissão deu à Escritura, existem dois pontos nos quais este documento se diferencia dele. O primeiro é o lugar da própria doutrina dentro da estrutura da Teologia. Calvino tomou a condição humana e o alvo da existência humana como ponto de partida para sua teologia. Dentro desta estrutura, a Escritura era importante como um meio para nos ajudar a alcançar o alvo para o qual fomos criados. Na Confissão, por outro lado, a Escritura se torna quase um livro de jurisprudência no qual textos devem ser encontrados para provar e apoiar vários pontos – incluindo a própria compreensão do que significa ser humano. Neste ponto, é interessante notar que os dois catecismos produzidos pela Assembléia de Westminster – redigidos por diferentes pessoas – concordam com Calvino, ao invés de concordarem com a Confissão. O outro ponto no qual a Confissão se diferencia de Calvino é a sua ênfase na inerrância escriturística. Embora Calvino cresse na inspiração divina da Escritura, ele nunca detalhou essa doutrina de forma detalhada ou mecanicista. A ênfase de Calvino estava no uso da Escritura pelo Espírito Santo na comunidade da fé, especialmente no ato da pregação. A Confissão trata com o texto sagrado de um modo mais individualista, como um guia para a fé de cada cristão. 

 A Confissão de Westminster coincide com a maioria dos calvinistas posteriores ao colocar a doutrina da predestinação em tal lugar na estrutura da Teologia que ela parece ser derivada da natureza de Deus, ao invés da experiência da graça dentro da comunidade da fé. Isto pode ser visto em que, imediatamente após afirmar a autoridade da Escritura, a Confissão prossegue discutindo a divindade no seu segundo capítulo, e os decretos eternos de Deus no terceiro. 

 Dois exemplos claros do modo em que o Puritanismo se diferenciou da teologia de Calvino podem ser vistos na maneira em que a Confissão de Westminster trata da oração e do Shabbat (descanso). Sobre a oração, Calvino diz que é o momento em que nós nos aproximamos mais intimamente do nosso propósito final. Na oração, nós glorificamos a Deus e nos relacionamos com o divino de tal forma que nós claramente esperamos que Deus seja a fonte de tudo o que somos e necessitamos. A Confissão aborda a oração de uma maneira muito legalista, afirmando que é “requerida de todo homem”, que deve ser no nome do Filho, numa língua conhecida e não (oferecida) pelos mortos. A respeito do Shabbat, o mesmo capítulo da Confissão adota uma posição diametralmente oposta a de Calvino. O reformador de Genebra afirma que o Shabbat era uma figura de coisas por vir e foi, portanto, abolido por Cristo, cuja ressurreição é o começo do Shabbat final. A celebração do domingo, então, não é uma nova forma de manter uma “observância supersticiosa de dias”, mas é, ao contrário, um modo prático de capacitar a igreja a adorar conjuntamente, e de dar descanso àqueles que trabalham. De certa forma, todos os cristãos estão agora no dia de descanso, pois não somos mais dependentes de nossas próprias obras (Institutas, 2.8; 28-34). A Confissão, por outro lado, afirma que Deus 

“em Sua Palavra, através de um mandamento moral, positivo e perpétuo, unindo todos os homens, em todas as eras, apontou particularmente um dia em sete, como um shabbat a ser mantido santo para Ele: o qual, desde o começo do mundo até a ressurreição de Cristo, era o último dia da semana; e, a partir da ressurreição de Cristo, foi mudado para o primeiro dia da semana, que, na Escritura, é chamado o Dia do Senhor, e deve ser mantido até o fim do mundo, como o Shabbat cristão. 

 Esse Shabbat é, então, conservado santo para o Senhor, quando os homens, após uma devida preparação dos seus corações, e pondo em ordem seus assuntos comunitários com antecedência, não somente observam um descanso santo, todo o dia, das suas próprias obras, palavras e pensamentos sobre seus trabalhos seculares e recreações, mas também estão despendendo todo o tempo em exercícios públicos e privados de sua adoração, e nos deveres dos necessitados e de misericórdia.” 

 Este contraste marcante entre Calvino e a Confissão de Westminster pode ser visto como derivando da maneira em que os dois tratam da Escritura, o que foi discutido acima. 

A influência de Calvino pode ser vista na Confissão onde ela afirma que tanto a lei quanto o evangelho pertencem ao pacto da graça. Dizendo isso, a Confissão evita o contraste marcante entre a lei e o evangelho que foi característico de Lutero e que Calvino tentara evitar. Mas então a Confissão prossegue para declarar que Adão, como originalmente criado, estava debaixo de um “pacto de obras” e que, apenas mais tarde, depois da queda, o “pacto da graça” foi estabelecido. Calvino nunca teria dito isso, pois isto pareceria fazer da fé um substituto para as obras que nós não podemos mais praticar. Se fé pertence a um novo pacto, segue-se que ela não foi requerida de Adão e Eva como é requerida dos seres humanos em todas as gerações posteriores. 

Assim, a Confissão de Westminster, como muito do Calvinismo do século 17, esquematizou tanto a teologia de Calvino que uma grande parte do seu espírito original se perdeu. 

Em resumo, o que dissemos sobre a Confissão de Westminster também pode ser dito sobre a maior parte do Calvinismo do século 17 – com a exceção notável de Amyraut e seu círculo na Igreja Reformada da França. Esta é a razão por que os historiadores freqüentemente se referem a esse período como um da “Ortodoxia Calvinista”. Esta ortodoxia geralmente centrou-se na questão da predestinação, que então se tornou o critério do Calvinismo. Isto é muito interessante, desde que durante o século 16, o ponto de maior divergência entre o Calvinismo e o Luteranismo não fora a predestinação – com o qual os dois grupos concordavam – mas, ao contrário, o modo da presença de Cristo na Ceia do Senhor. 

A ortodoxia calvinista prestou um desserviço ao Calvinismo verdadeiro, na medida em que gerações posteriores creram que ela foi uma expressão acurada dos pontos de vista de Calvino, e, portanto, tenderam a vê-lo como mais rígido do que ele de fato fora. Isto, em contrapartida, significou que o reformador de Genebra tenha recebido menos simpatia do que ele merecia. 

(extraído de “Uma História do Pensamento Cristão”, de Justo L. González, Ed. Cultura Cristã, 2004, vol. 3, pág. 299/302).

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