terça-feira, 26 de julho de 2016

Os videntes de São Paulo

Artigo publicado no Estadão de 17/07/16:

Dos postes às mesas dos videntes de São Paulo

'Trabalhos' de descarrego incluem até lençol de 400 fios e podem ser pagos no cartão

Mônica Manir

Dei por mim na calçada, ao pé da porta. Um cartaz amarelo alardeava o que imaginei escondido: Consulta Búzios Tarô. Acima da mesma porta, mais um cartaz: Tarô Vidência. Nos dois, o mesmo número de telefone fixo. Subi os primeiros degraus. Um portão alto, duplamente gradeado, me interrompia o caminho. Toquei a campainha. Veio uma mulher; era a senhora da limpeza, de pés descalços e um cheiro de alvejante que exalava da alma. Eu disse que tinha uma consulta marcada, ela me fez entrar. Subi mais alguns degraus, atravessei uma cerquinha de madeira e por ali fiquei, esquecida numa sala mal alumiada, pesadamente acortinada e com dois sofás gris, sobre um dos quais acomodei minha curiosidade. Acima, um lustre equilibrava folhas de vidro. Abaixo, um tapete grisalho cobria um quadrado do chão de tacos, alguns soltos. “Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio”, diria Machado de Assis em A Cartomante, conto que inspirou este primeiro parágrafo.

Contrariando Machado, o cenário desse sobrado na Vila Mariana não era de pobreza, mas de classe média, como de resto a maioria dos cenários que encontrei nas consultas a videntes que colocam anúncios nos postes de São Paulo oferecendo amarrações e desamarrações de amor. Tevês me apareceram ligadas no Datena ou em desenhos animados, doces crianças em fralda circularam pela sala tomando doces refrigerantes, e cães e gatos, tão doces quanto, se enroscaram nos meus cadarços enquanto os donos ajeitavam consultórios improvisados.

No sobrado em questão da Vila Mariana, também compunham o lugar dez pacotes de panfletos, um deles aberto, do qual certamente saiu o papel que eu tinha em mãos. Ele me fora dado 5 minutos antes, na saída do Metrô Ana Rosa, por um moço magro. Nele lia-se que a sensitiva Beatriz, com mais de 28 anos de experiência no mesmo endereço, solucionava união de casais, afastamentos de rivais, impotência ou frieza, inveja, vícios, depressão, financeiro. O telefone era outro, mas o tal endereço era o mesmo que vi num cartaz dias antes, e que me trouxeram até ali para a consulta daquela manhã.

Quase meia hora depois, a sensitiva Beatriz me fez sentar diante de uma mesa, ela do lado oposto. Entre nós, um pano bordô com búzios, um crucifixo e uma plaqueta com bandeiras de cartão de crédito. Vestia jeans e camiseta preta um tanto curta, que insistentemente puxava para baixo. Perguntou o que eu preferia, búzios ou tarô. Pedi o segundo. Então Beatriz, arriscados 39 anos, pegou as cartas do tarô de Marselha e, enquanto as embaralhava, olhava para mim, mas por baixo dos olhos. Perguntou meu nome inteiro, que dei, a data de nascimento, que dei, e a profissão, que dei como estudante de bioética, o que também sou.

A seu pedido, dividi as cartas em três. Ela juntou tudo novamente e descortinou a Morte. Sorte que depois veio a Roda da Fortuna, disse ela, sinal de que viverei muito. E assim foi arcano atrás de arcano, a Temperança, a Estrela, o Mago ou Charlatão, com pinceladas sobre saúde, família, carreira, finanças – até o enrosco. “Você tem um ex?” Quem não os tem?, pensei. “Pois uma pessoa na sua vida nunca te esqueceu”, vaticinou, “e vocês nem sabem direito por que se separaram”. Beatriz, no entanto, sabia: alguém colocara nosso nome, o meu e o dele, na boca de um defunto. Para me acertar com alguém, apenas após um trabalho liberar o caminho. Um trabalho que pedia 91 materiais, velas dessa altura, cristais africanos. A coisa aconteceria num terreiro na Praia Grande. Levaria um tempo, teria de voltar outras vezes, mas a garantia era total. Olhei para as bandeiras de cartão de crédito.

“Pedido de despacho não tem nada a ver com a tradição do tarô”, ressalva a socióloga Priscila Kuperman, autora do livro Tarot – Uma Linguagem Feiticeira (Editora Mauad). “O tarô atrai porque tem uma aura mágica na medida em que atua no acaso, é razão de estudo e ajuda, as consultas são cobradas num preço previamente combinado, mas nunca passou como algo relacionado a produtos extras”, diz.

Diante da minha hesitação, Beatriz resgatou os 28 anos no mesmo endereço. “Quem não é honesto não fica tanto tempo no mesmo lugar.” Mas quanto, afinal, sairia a limpeza? Puxou a blusa pra baixo. São R$ 850, pagáveis no cartão, se eu quisesse. O ideal, aliás, era começar naquele momento, não havia tempo a perder. Declinei. Disse que precisava pensar, não estava preparada para dispor daquela quantia. Beatriz foi guardando as cartas com ar de muxoxo. Perguntei o valor da consulta. Ela repetiu o que dissera ao telefone: R$ 100. Questionei que no papelzinho estava escrito R$ 50. “R$ 50 são os búzios, e você escolheu o tarô.” Olhei para Antony, o gato que brincou com meus cadarços. Ele deu de ombros.

Para a parapsicóloga Márcia Cobêro, a mentalidade do automático, rápido e descartável contribui para a proliferação desse tipo de oferta. “Em vez de amadurecer, corrigir, fazer terapia, é mais encantador atribuir o problema a outra pessoa ou a uma energia negativa, que não implica esforço pessoal.” Diretora do Instituto Padre Quevedo de Parapsicologia, ao qual também acorrem aflitos, ela desmistifica que as mulheres sejam as maiores vítimas. “Elas fazem mais propaganda de terem ido; os homens são presas discretas.” Mas Márcia aposta num certo perfil machadiano. A mulher, diz ela, normalmente quer se vingar de um amor desfeito ou amarrar outro, enquanto o homem busca dinheiro e poder.

Jaleco. Pois lá estou em outro templo místico, este no Itaim-Bibi, com o tarô cigano aberto e a vida emperrada. É mais um sobrado, mas já na porta os trabalhos são divulgados como “honestos e infalíveis”. Eu havia chegado mais cedo, e Jussara, a vidente que me receberia, tinha saído. “Tudo bem”, disse Sílvia, em seus 65 anos, “sou mãe-de-santo também, é tudo igual”. Botou um jaleco branco, ajeitou-se na mesa lotada de imagens, afastou os búzios da frente e pediu que eu dividisse o baralho em cinco montes. Daí para chegar ao amor mal resolvido e à limpeza espiritual foi uma cartada.

Olhando para um calendário da Caixa, perguntou se eu tinha alguém para me ajudar no serviço. Diante da negativa, disse que poderia fazer um despacho indiano na linha da direita. “Não pode mexer com a da esquerda, de Exu-Pomba-Gira.” O material era completo, tudo “abaixo de encomenda, uma caixa grande que os orixá providencia”. Cada despacho sairia por R$ 550, multiplicados por quatro, porque cuidaria do amor, da saúde, do trabalho e da família. Anunciando pagamento após resultado, embolsou R$ 50 da consulta. Uma coisa é uma coisa, outra é bem outra.

Mais ou menos nessa linha trabalhou a sensitiva Alyne, perto do Metrô Santa Cruz. Não é que o tarô dos anjos mostrou que o negócio estava anuviado e eu precisava de mais uma assepsia? Senti que devia tomar as rédeas do meu destino e disse que compraria tudo. Ela anotou num papel: 21 velas brancas de 90 cm de altura por 40 cm de diâmetro, mais um lençol de 400 fios, que eu poderia achar na Zêlo, mais um champanhe. Lençol avulso de 400 fios, não achei. Só o jogo. O mais em conta saía por R$ 180. Já vela neste diâmetro, nem na fábrica: “Quem pediu essa vela sabe o que é centímetro?”, perguntou o atendente de uma delas. “Vai pesar uns 100 kg e, quando queimar, vai esparramar pra tudo que é lado. Confere lá com ela e me liga de volta. Sucesso!”

Por telefone, Alyne insistia nos 40 cm. Disse que tinha me mostrado a vela, e mostrou mesmo um exemplar na consulta, mas cujo diâmetro era bem menor. “Por favor, pega uma régua e meça aí, a vela não tem 40 cm”, insisti. “Não pode medir numa régua, né, tem de medir numa dimensão de redondo, não de quadrado”, disse, irritada. “Você tem CNPJ de taróloga?”, perguntou. Ouvindo o óbvio não, disse que poderia comprar com desconto numa fábrica de seu conhecimento. Em vez de R$ 65, cada uma sairia por R$ 32,50.

“A questão é que essas pessoas, em geral, são profissionais da área, hábeis em lançar problemas que todo mundo tem”, lembra Márcia Cobêro. “E, a partir do momento em que o vidente foi capaz de adivinhar o problema, que o próprio cliente entrega durante o consulta, o cliente vai julgá-lo apto a resolver.” Junte-se a isso a insegurança dos nossos dias, como o desemprego doméstico e um terrorismo assustador. “Especificamente no momento, gostaríamos que nos amarrassem a esperança, que periga se desprender de nossas assustadas perspectivas frente ao descalabro que vivemos no momento”, metaforiza o psicanalista Sérgio Telles.

Embora negue, pelos sete elementos, que a crise não bateu à porta, o fato é que há um mês Pai Leo de Ogum entregou seu escritório na Barão de Itapetininga e voltou à rua, onde montou um guarda-sol emoldurado de panos indianos. Seu negócio, há 28 anos, são búzios e tarô. Na frente da Praça da República, vira e mexe alguém se acocora para perguntar da consulta: R$ 25 o tarô e R$ 30 os búzios. No escritório, cobrava R$ 60. “Agora estou mais perto do povo, atendo garotas de programa, pobres, ricos, GCM, militar, artistas, gente de todas as gamas”, gaba-se.

Pai Leo de Ogum, originalmente Leo Teodoro, diz ser de Ilhéus, na Bahia, e não tem medo de mostrar a cara. De fato, não achei tantos cartazes mostrando o rosto de um sensitivo, muito menos o corpo, e muito menos o corpo sarado, como ele faz. “O ser humano, pela natureza, é curioso”, diz. “Em visão de espiritualidade, ele quer saber o que vai acontecer na vida dele no presente, no passado e no futuro.” Porque os oráculos vêm desde Jesus Cristo, continua Pai Leo, “quando não tinha praticamente televisão, rádio, carro, nada que se comunicasse, nem luz, praticamente”.

Na consulta aos búzios, ele não viu trabalho emperrando meu caminho. Mas sua comunicação com os orixás parecia desconectada. Pai Leo encontrou documentos pendentes em cartório (que não tenho), confere?, consulta “de mulher” por fazer (feita recentemente), confere?, e filhos (que nem tenho) indo mal na escola. Perguntei se ele tinha filhos. “Tenho um”, mostrou no celular. “Mas a mãe dele não tá mais comigo por preconceito.” Preconceito dela? “A sogra é evangélica, de família japonesa, e eu macumbeiro. Guenta ficar muito tempo?”

Estudioso da religião afro-brasileira, o professor titular sênior da USP, Reginaldo Prandi, diz que muita gente não vai a terreiro de jeito nenhum, por achar que “é coisa do diabo”, mas faz sua fé nos centros urbanos sem checar se esses “consultórios” são de fato pilotados por pais ou mães de santo, que em geral não misturam búzios com cartas. “É como médico, tem que pedir referência, perguntar como trabalha”, avisa.

Em cima dos cartazes do Pai de Ogum se metem os do Bruxo, que atua num prédio de advogados na Rua José Bonifácio. Ele tem seis baralhos e nove números de celular, para atender até via “whatzap”. O Bruxo é Divino Quintiliano, vulgo Phuazza Kwenn, seu nome quando participou de filmes de Zé do Caixão. É de Anicuns, em Goiás, já foi da Aeronáutica e mais não sei porque ele já abre o tarô Rider-Waite pra me escanear. Só registrei a vida longa. Foram amenidades, nenhuma desamarração à vista nem a prazo e a ênfase em que, se eu quisesse, teria poderes para também ler o tarô. Sua frase predileta é “tá tranquilo”. Mas a mais notória foi quando explicou por que existem tantos cartazes de videntes espalhados nas regiões ricas da cidade: “O grã-fino é mais na dele, mas vai aonde o pobre vai”, diz. “O confidente do rico, quer saber, é mesmo a empregada.”

No rigor da lei é estelionato. Ao pé do artigo 171 do Código Penal Brasileiro, cartomancia e afins podem ser entendidos como estelionato, e os infratores estão sujeitos à pena de reclusão de 1 a 5 anos. Afinal, é proibido “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento”. Mas o advogado Tarcísio Germano de Lemos lembra que a Constituição garante liberdade de culto, e é nisso que muitos videntes se ancoram. O ataque à Cidade Limpa, porém, não tem fuga se houver o flagrante, pelo qual o infrator pode pagar R$ 10 mil. A Prefeitura afirma que, de janeiro a maio, recolheu mais de 185 mil itens, entre eles vários lambe-lambes de sensitivos.



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