sexta-feira, 16 de maio de 2008

A justificação pela fé



Quando eu postei aqui alguns estudos sobre a carta aos Romanos, eu falei en passant sobre Romanos capítulo 4 (clique aqui para acessar o texto), e agora eu queria aprofundá-lo um pouco mais no que diz respeito à justificação pela fé (e não pela lei) do cristão no que diz respeito à salvação proposta pela morte e ressurreição de Cristo.


Retomando, portanto, algumas ideias daquele texto, o capítulo 4 de Romanos prossegue o que Paulo vinha desenvolvendo no final do capítulo 3, de que afirmar a fé confirma a lei (3:31), e agora ele passa a mostrar, de maneira mais clara, a importância da justificação pela fé, à parte de qualquer obra da lei. Quando fala da redenção pela graça, Calvino já dizia o seguinte:

5. A MORTE DE CRISTO É O PREÇO DE NOSSA REDENÇÃO, DONDE OBTEMOS PERDÃO, JUSTIFICAÇÃO E VIDA

Tampouco os apóstolos mencionam obscuramente ter Cristo pago o preço mediante o qual nos redimisse da penalidade da morte. "Justificados por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo, a quem Deus constituiu ιλαστήριον (hilastērion – propiciação) mediante a fé que há em seu sangue" [Rm 3.24,25]. Nisto Paulo está a enaltecer a graça de Deus, visto que proveu o preço de nossa redenção na morte de Cristo; então, ordena que nos refugiemos em seu sangue, para que, havendo alcançado a justiça, nos postemos seguros ante o juízo de Deus. Significa o mesmo esta afirmação de Pedro: "Redimidos não com ouro e prata; ao contrário, com o precioso sangue de um cordeiro imaculado" [1 Pe 1.18,19]. Ora, esta antítese nem seria coerente, a não ser que com este preço se houvesse feito expiação pelos pecados, razão por que Paulo diz que "fomos comprados com elevado custo" [1 Co 6.20]. Além disso, seria insustentável outra afirmação sua: "Um só Mediador, o qual se deu como resgate" [1 Tm 2.5,6], a menos que sobre ele fosse lançada a pena que teríamos merecido.

Por isso, o mesmo Apóstolo define a redenção no sangue de Cristo como "a remissão dos pecados" [Cl 1.14], como se estivesse a dizer que somos justificados ou absolvidos diante de Deus, porque esse sangue responde como expiação por nós. Ao que se harmoniza também outra passagem: "foi cancelado na cruz o título de dívida que nos era contrário" [Cl 2.14]. Pois aí se registra quitação ou compensação que nos desonera da pena. Grande peso subjaz também a estas palavras de Paulo: "Se somos justificados em função das obras da lei, então Cristo morreu em vão" [Gl 2.21]. Ora, daqui inferimos que em Cristo se deve buscar o que a lei conferiria, se alguém a pudesse cumprir, ou, o que é o mesmo, que alcançamos pela graça de Cristo o que na lei de Deus prometeu a nossas obras: "Quem fizer estas coisas, por elas viverá" [Lv 18.5]. Isto Paulo confirma, não com menos clareza, no sermão pregado em Antioquia, afirmando que "ao crermos em Cristo, somos justificados de todas as coisas das quais não pudemos ser justificados na lei de Moisés" [At 13.38,39]. Pois, se a observância da lei é a justiça, quem haverá de negar que Cristo nos mereceu favor enquanto, assumido este ônus sobre si, com Deus nos reconcilia exatamente como se fôssemos cumpridores da lei? Ao mesmo contempla o que depois disto ensina aos gálatas: "Deus enviou seu Filho, sujeito à lei, para que redimisse aos que estavam debaixo da lei" [Gl 4.4,5]. A que propósito, pois, esta sujeição de Cristo à lei, senão que gerou nossa justiça, assumindo ele o encargo de pagar o que não teríamos o poder de saldar?

Daqui essa imputação de justiça sem obras, acerca da qual Paulo discorre [Rm 4], a saber, que se conta e se aceita em nosso favor a justiça que só em Cristo foi achada. E a carne de Cristo, não por outra razão, é chamada "nosso alimento", visto que nele encontramos a subsistência da vida [Jo 6.55]. Com efeito, este poder não provém de outra fonte, senão porque o Filho de Deus foi crucificado como preço de nossa justiça. Como diz Paulo: "Ele se entregou em sacrifício, em aroma de suave fragrância" [Ef 5.2]. E, em outro lugar: "Morreu em função de nossos pecados, ressuscitou em função de nossa justificação" [Rm 4.25]. Donde se conclui não só que por intermédio de Cristo nos foi outorgada a salvação, mas ainda que, por sua graça, o Pai nos é agora propício. Pois, não há dúvida de que nele plenamente se cumpre o que Deus aclara, figurativamente, por intermédio de Isaías [37.35]: "Farei isto por mim e por Davi, meu servo", do que a melhor testemunha é o Apóstolo, quando diz: "Perdoados são vossos pecados por amor de seu nome" [1 Jo 2.12]. Ora, se bem que nesta passagem não há menção do termo Cristo, João, entretanto, segundo seu costume, está a designá-lo sob o pronome αυτου [autŏs]. Nesta acepção também fala o Senhor: "Assim como eu vivo pelo Pai, também vivereis vós por mim" [Jo 6.57]. Com isso também concorda o que Paulo diz: "Foi-vos dado por causa de Cristo υπέρ Χριστός [hypĕr Christoû] não apenas que nele creiais, mas ainda que por ele sofrais" [Fp 1.29].

(CALVINO, João. As Institutas. Edição Clássica. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 2. ed. vol. 2, pp. 283-284)


Quero destacar uma frase de Calvino no texto acima: "A que propósito, pois, esta sujeição de Cristo à lei, senão que gerou nossa justiça, assumindo ele o encargo de pagar o que não teríamos o poder de saldar?". A questão que eu faço, a respeito daqueles que veem na lei, por um ínfimo cumprimento dela que seja, um poder intrínseco de salvação ou justificação, não estão eles a desprezar o labor salvífico de Cristo? Em outras palavras, se eu prego que devemos continuar respeitando a lei como os judeus deviam fazer no Velho Testamento (mas não conseguiam), se eu vejo no cumprimento da lei uma espécie de pré-requisito justificador, aqui e agora, não estou negando implicitamente que Cristo obedeceu à lei para me salvar? Não estou dizendo, sub-repticiamente, que o Mestre não se sujeitou à lei, logo eu preciso fazer algo com minhas próprias forças para "complementar" a Sua obediência?

A mim me parece que Paulo está discutindo exatamente essas questões em Romanos 4. Acho muito interessante as imagens que Paulo usa para falar da graça de Deus, em especial nestes versículos:

Rom 4:3 Pois, que diz a Escritura? Creu Abraão a Deus, e isso lhe foi imputado como justiça.
Rom 4:4 Ora, ao que trabalha não se lhe conta a recompensa como dádiva, mas sim como dívida; Rom 4:5 porém ao que não trabalha, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é contada como justiça;


A ideia que ele passa no v. 4 é que, se tentarmos nos justificar pelas nossas obras, o que estamos cobrando de Deus, na verdade, é um salário, porque Deus teria para conosco uma dívida a ser paga, o que contraria todo o raciocínio dos capítulos anteriores, em especial o 3, em que ele afirma que não há ninguém justo, não há ninguém que mereça nada da parte de Deus. Assim, nossa atitude deve ser a de Abraão, que não cobrou de Deus um salário por ter peregrinado pelo Oriente Médio em Seu nome, mas apenas creu que Deus o justificaria (e o recompensaria) em qualquer situação (mesmo muito tempo após a sua morte). Ainda que não houvesse a Lei mosaica, propriamente dita, na época de Abraão, havia uma promessa concreta, específica, individualizada, pessoal, de Deus ao patriarca, de que Ele faria dele uma grande nação se tão-somente cresse no que lhe havia prometido. Por mais que houvesse uma espécie de antecipação da Lei, na promessa e no ritual da circuncisão, Paulo deixa claro que o que importava era, de fato, a fé, e não o cumprimento desta ou daquela parte da Lei. Ainda reportando-me a Calvino, o reformador suíço comenta sobre a justificação pela fé, e não pela lei:

19. A FALTA DE LÓGICA DOS OPOSITORES DA JUSTIFICAÇÃO SOMENTE PELA FÉ, À PARTE DE QUALQUER OBRA DA LEI

O leitor deve já perceber com que gênero de equanimidade e justiça maquinam hoje os sofistas contra nossa doutrina, quando dizemos que o homem é justificado tão-somente pela fé [Rm 3.28]. Não ousam negar que o homem é justificado pela fé, uma vez que essa afirmação é reiterada na Escritura com tanta freqüência. Mas, visto que em parte alguma o termo somente é expresso, não admitem que se faça tal afirmação. Porventura é assim mesmo? Mas, que replicarão a estas palavras de Paulo onde ele contende que, a não ser que essa justiça seja gratuita, não pode ser justiça da fé? [Rm 4.2-5]. Como é possível que com obras o que é gracioso se enquadre? Além disso, com que astúcias descartam o que Paulo diz em outro lugar [Rm 1.17]: que a justiça de Deus se manifesta no evangelho? Se a justiça se manifesta no evangelho, certamente que ela não é mutilada, nem pela metade; ao contrário, aí ela é plena e absoluta. Portanto, a lei não tem lugar nessa justiça, nem prevalecem com seu subterfúgio, não só falso, mas até nitidamente ridículo, no tocante à partícula de exclusividade – somente. Ora, porventura não a atribui exclusivamente à fé ao remover toda virtude das obras? Pergunto: o que estas expressões significam: "Sua justiça se manifestou sem a lei" [Rm 3.21]; "O homem é justificado gratuitamente" [Rm 3.24]; e "sem as obras da lei"? [Rm 3.28].

Neste ponto, eles contam com engenhoso subterfúgio; ainda que eles mesmos não o tenham cogitado, pelo contrário, tomaram-no de Orígenes e de alguns dos antigos, no entanto é algo muito tolo, a saber: gritam que as obras excluídas são as cerimoniais da lei, não as morais. Tão proficientes se tornam com suas assíduas disputas que, na verdade, nem observam os rudimentos primários da dialética! Porventura pensam que o Apóstolo está a delirar quando, como prova de sua doutrina, adiciona estas passagens: "O homem que fizer estas coisas por elas viverá" [Gl 3.12]; e "Maldito é todo aquele que não cumprir todas as coisas que foram escritas no livro da lei" [Gl 3.10]? A não ser que estejam fora de si, não poderão dizer que se promete vida aos cultores de cerimônias, e que somente são malditos seus transgressores. Se estas passagens devem ser entendidas em relação à lei moral, não há dúvida de que também as obras morais sejam excluídas do poder de justificar.

Ao mesmo propósito contemplam estes argumentos de que Paulo faz uso "uma vez que por meio da lei advém o conhecimento do pecado" [Rm 3.20], portanto não a justiça, porque "a lei opera a ira" [Rm 4.15]; logo, não a justiça, porque "a lei não pode tornar segura a consciência" [Gl 3.21]. por isso, não pode conferir a justiça, porque "a fé é imputada para justiça" [Rm 4.5]; portanto, a justiça não é galardão de obra, ao contrário, é concedida não como devida, porque "somos justificados pela fé, cortada é a jactância" [Rm 3.27,28]; se uma lei fosse dada que pudesse vivificar, a justiça procederia, na verdade, da lei, mas Deus a todas as coisas encerrou debaixo do pecado, para que a promessa fosse dada aos que crêem [Gl 3.21,22]. Repliquem agora, se podem, que estas coisas se reportam às cerimônias, não às questões de natureza moral. Com efeito, até mesmo as próprias crianças zombariam de tão grande impudência! Portanto, quando se priva a lei da faculdade de justificar, isso deve ser visto como se referindo à lei em sua totalidade.

(CALVINO, João. As Institutas. Edição Clássica. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 2. ed. vol. 3, pp. 217-218)

Ainda falando de Abraão (vv. 10-12), Paulo lembra que ele foi justificado pela fé antes de ser circuncidado e que a circuncisão foi apenas um selo da justiça da fé não só para os seus descendentes circuncidados, mas também para os incircuncisos (nós, os gentios) que também têm fé. Logo (v. 13), não é pela Lei (circuncisão) que veio a promessa a Abraão, de que ele seria Pai de muitas nações, mas sim pela justiça da fé (incircuncisão). Assim, Abraão teria duas descendências, a da lei e a da fé, mas a ambas seria destinada a promessa (v. 16).

Aproveitando esta ideia de que Abraão creu, contra todas as evidências pessoais e circunstanciais, numa promessa de Deus que ele não veria realizada (afinal, não viveu o suficiente para isso), nos versículos seguintes, aparecem algumas frases que estamos acostumados a ouvir na igreja e fora dela, como a que "Deus chama as coisas que não são como se já fossem" (v. 17), e que Abraão "creu em esperança contra a esperança" (v. 18). Eu, pessoalmente, gosto muito do v. 20, que afirma que ele foi fortalecido na fé dando glórias a Deus, algo que eu procuro praticar quando me sinto enfraquecido. Deus é poderoso para cumprir o que promete (v. 21). Abraão creu na Sua promessa e isto lhe foi imputado por justiça (v. 22), e não só por sua causa, mas também por causa de nós, que cremos naquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos (v. 24). Assim como começara a carta aos romanos (1:4), Paulo dá ênfase à ressurreição de Cristo como pressuposto central da fé e da salvação, algo que ele vai deixar mais claro em Romanos 10:9, mas, por ora, é o suficiente na sua argumentação.

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