sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Carta aos Romanos - 2

Em Romanos 4, eu acho muito interessante as imagens que Paulo usa para falar da graça de Deus, em especial nestes versículos:

Rom 4:3 Pois, que diz a Escritura? Creu Abraão a Deus, e isso lhe foi imputado como justiça.
Rom 4:4 Ora, ao que trabalha não se lhe conta a recompensa como dádiva, mas sim como dívida;
Rom 4:5 porém ao que não trabalha, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é contada como justiça;


A idéia que ele passa no v. 4 é que, se tentarmos nos justificar pelas nossas obras, o que estamos cobrando de Deus, na verdade, é um salário, porque Deus teria para conosco uma dívida a ser paga, o que contraria todo o raciocínio dos capítulos anteriores, em especial o 3, em que ele afirma que não há ninguém justo, não há ninguém que mereça nada da parte de Deus. Assim, nossa atitude deve ser a de Abraão, que não cobrou de Deus um salário por ter peregrinado pelo Oriente Médio em Seu nome, mas apenas creu que Deus o justificaria em qualquer situação.

Ainda falando de Abraão (vv. 10-12), Paulo lembra que ele foi justificado pela fé antes de ser circuncidado e que a circuncisão foi apenas um selo da justiça da fé não só para os seus descendentes circuncidados, mas também para os incircuncisos (nós, os gentios) que também têm fé. Logo (v. 13), não é pela Lei (circuncisão) que veio a promessa a Abraão, de que ele seria Pai de muitas nações, mas sim pela justiça da fé (incircuncisão). Assim, Abraão teria duas descendências, a da lei e a da fé, mas a ambas seria destinada a promessa (v. 16).

Aproveitando esta idéia de que Abraão creu, contra todas as evidências pessoais e circunstanciais, numa promessa de Deus que ele não veria realizada (afinal, não viveu o suficiente para isso), nos versículos seguintes, aparecem algumas frases que estamos acostumados a ouvir na igreja e fora dela, como a que "Deus chama as coisas que não são como se já fossem" (v. 17), e que Abraão "creu em esperança contra a esperança" (v. 18). Eu, pessoalmente, gosto muito do v. 20, que afirma que ele foi fortalecido na fé dando glórias a Deus, algo que eu procuro praticar quando me sinto enfraquecido.

Nos versos 24 e 25, Paulo volta a falar de Jesus, para começar o capítulo 5 falando da salvação pela fé em Jesus Cristo, que nos justifica. "Justificados, pois, pela fé, tenhamos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, por quem obtivemos também nosso acesso pela fé a esta graça". Até então tudo era trevas, indecisão, portas fechadas. Romanos 5:1 é, talvez, o centro e o resumo de toda a pregação de Paulo e, por que não dizer, do cristianismo. Karl Barth associa este versículo a Romanos 13:12, em que Paulo como que "canta": "A noite é passada, e o dia é chegado". Embora este seja o ápice de sua carta, curiosamente, entretanto, Paulo faz aqui uma pausa no seu longo discurso teológico que vinha fazendo até então, e passa a falar de uma espécie de "teologia prática", da vida do dia-a-dia do cristão, gloriando-se na esperança da glória de Deus, mas não somente nela:

Rom 5:3 E não somente isso, mas também gloriemo-nos nas tribulações; sabendo que a tribulação produz a perseverança,
Rom 5:4 e a perseverança a experiência, e a experiência a esperança;
Rom 5:5 e a esperança não desaponta, porquanto o amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.


Assim, o crente passa por este processo:

Tribulações > Perseverança > Experiência > Esperança

Comentando estes versículos Karl Barth diz o seguinte:

Carta aos Romanos, de Karl Barth, Ed. Novo Século, 2003, p. 244:

Na paz de Deus existe um "sofrer", um "submergir", um "estar perdido" e "ser estraçalhado". Abraão flutua entre o céu e a terra; luta com Deus e o seu coração se parte. De um lado lhe é dito: "Isaque será a tua semente"; de outro "ele deverá morrer". Aí prevalece a base da fé, que a ninguém deixará envergonhado [confundido]; é ela que suporta o golpe." (Lutero)
Na paz de Deus tem lugar, também o que o mundo chama "incredulidade"; o clamor "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" é o ataque da morte e do inferno; "que ninguém se iluda; quem não quiser ser atacado, este não é cristão, porém incrédulo e inimigo de Cristo." (Lutero)

Esta "pausa" no discurso teológico de Paulo serve também para preparar o leitor para o que ele vai dizer lá em Romanos 8:35. Afinal, "quem nos separará do amor de Cristo? a tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada?"

E, nos versículos seguintes, Paulo aproveita este "gancho" das tribulações e aflições para falar de Cristo como a esperança para a reconciliação com Deus, falando, depois, da entrada do pecado no mundo através de Adão, do mundo sem Lei até Moisés, e da retirada do pecado do mundo através de Cristo, pois, "assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para justificação e vida" (v. 18). A Bíblia do Peregrino diz que Paulo tenta formular, no curto espaço entre os versos 12 e 21, uma teologia do pecado original, o que fez com que este pequeno trecho fosse de difícil interpretação.

Tenho para mim, entretanto, que esta ênfase no pecado original faz o link entre os capítulos anteriores e o que vem a seguir. Como vem falando de graça nos capítulos 4 e 5, Paulo faz uma transição comparando a atitude do crente em relação à Lei e à graça no capítulo 6, preparando o espírito do leitor para o capítulo 7, em que falará mais sobre a Lei, até, no primeiro versículo do capítulo 8, concluir que "nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus". Entretanto, no raciocínio de Paulo, é preciso fazer esta transição entre a Lei e a graça no capítulo 6, para mostrar ao cristão que, mesmo que ele não esteja mais sujeito à lei e sim à graça, isto não deve ser motivo para que ele continue pecando. Com sua habitual ironia, ele começa o capítulo 6 perguntando: "Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que abunde a graça?".

Paulo se preocupa com o fato de que suas palavras sejam mal entendidas. Teme que sua ênfase na graça possa influenciar alguns irmãos a descambarem para a devassidão descontrolada. Continua alertando: "Pois quê? Havemos de pecar porque não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça? De modo nenhum". Por isso, ele faz um discurso veemente no capítulo 6 no sentido de que ninguém se engane, pois "o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus nosso Senhor" (v. 23). Paulo opõe "salário" a "dom", associando o primeiro ao pecado e o segundo à vida eterna, recuperando o que havia dito em Romanos 4:4, ou seja, que salário não é dádiva, mas dívida. Só que a dívida aqui é invertida. É o pecado que gera a dívida para com Deus, e o seu pagamento (ou salário) é a morte. Já a vida eterna é dádiva de Deus, que Ele dá, ainda segundo o raciocínio de Romanos 4, mediante a fé.

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails