terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Neoconservadorismo à brasileira


No seu blog, Luís Nassif vem fazendo uma análise da linha editorial (na verdade, mais política do que editorial) da revista Veja. Nassif (que, assim como Matinas Suzuki e este que vos escreve, é fã da antiga música caipira de raiz de Cascatinha e Inhana) inicia a sua matéria falando do fenômeno dos "neocons" na política e na imprensa americana. Os "neocons" são os "neoconservatives" ou, em bom português, os "neo-conservadores", responsáveis – em boa parte - pela ascensão do George W. Bush e seus falcões (Dick Cheney à frente) ao poder, e pelo sucesso de emissoras conservadoras como a Fox News, do império de comunicação de Rupert Murdoch, e da qual Bill O'Reilly talvez seja o maior expoente. Quem tem acesso a TV a cabo ou por satélite, e entende inglês, não pode perder "The O'Reilly Factor" na Fox News, que é um show de conservadorismo no melhor (ou pior) estilo americano. Ainda que seja uma figura polêmica, algo deve ser dito a favor de O'Reilly: o cara é bom de debate. Quem quer se especializar em (boas) técnicas de argumentação, mesmo que odeie suas opiniões, deve tomar umas aulinhas com o tio Bill. Outro pilar deste fenômeno conservador nos EUA é o fundamentalismo evangélico, que, assustado com a abertura dos democratas a temas como aborto e casamento gay, aos quais se acrescentaram os escândalos sexuais do Bill Clinton na Casa Branca, bandeou-se de mala e cuia para os neocons republicanos.

Retomando o tema que inicia a matéria do Nassif sobre a Veja, ele comenta:

O estilo neocon

De um lado, há fenômenos gerais, que modificaram profundamente a imprensa mundial nos últimos anos. A linguagem ofensiva, herança dos “neocons” americanos foi adotada por parte da imprensa brasileira, como se fosse a última moda.


Durante todos os anos 90, Veja havia desenvolvido um estilo jornalístico onde campeavam alusões a defeitos físicos, agressões e manipulação de declarações de fonte. Quando o estilo “neocon” ganhou espaço nos EUA, não foi difícil à revista radicalizar seu próprio estilo.

Esse tal "estilo neocon" é mais um daqueles modismos americanos constantemente exportados para a periferia global, da qual fazemos triste parte, e sempre encontra respaldo em brasileiros "descolados" que, entre uma e outra balada na Vila Olímpia, se sentem americanos exilados no Terceiro Mundo; e que, para reconverter a sua dura realidade à almejada Flórida dos sonhos consumistas, encampam o discurso neocon sem ao menos questioná-lo e criticá-lo, para ver se é adequado à realidade brasileira. Afinal, hoje é bonito citar algumas máximas conservadoras e desfilar uma série de pensamentos liberais, pelo simples prazer de se sentir aceito numa classe média alta brasileira que continua mais preocupada com o próprio umbigo do que com aquele pentacentenário projeto de nação.

Isso provoca algumas situações inusitadas. Embora a direita em geral, e a extrema-direita em particular, sejam terrenos privativos do fundamentalismo religioso interdenominacional, há situações como a do meu amigo Moisés que, mesmo sendo ateu, vem seguidamente postando artigos neoliberais e anticomunistas no fórum Atos. Como somos amigos (sim, eu tenho amigos ateus e os prezo muito!), eu brinquei com o Moisés, dizendo que pediria para o Supremo Concílio dos Ateus expurgá-lo dos seus quadros, já que, como diria o Padre Quevedo, "non ecziste" ateu de extrema-direita. Essa "conversa" se deu num dos artigos postados pelo Moisés (ver aqui), assinado por João Mellão Neto e publicado no Estadão, de profundo mau gosto (no melhor estilo neocon), que iniciava e terminava assim:

"Ensinamento ministrado numa aula de Filosofia do Direito para alunos do 7º semestre de uma conceituada universidade paulistana: “Vocês, que só transaram com ‘patricinhas’ burguesas, não sabem de fato o que é sexo. Essas meninas se preocupam exclusivamente com sua aparência e nunca se permitem entregar-se por inteiro aos prazeres da carne. Se vocês querem saber o que é sexo de verdade, tenham relações com moças da periferia. Estas estão livres dos condicionamentos e valores burgueses e por isso sabem de fato como se pratica um ato sexual.”
...
Quanto ao professor universitário que citei nos preâmbulos, devo confessar que, apesar de seus eloqüentes argumentos, continuo vendo mais encantos nas “patricinhas”..."

(artigo completo no site do Estadão)

Como não costumo resistir a trogloditas deste jaez, comentei o seguinte:

Este senhor que atende pelo sobrenome de Mellão é figurinha antiga e desbotada da direita brasileira. Foi secretário da prefeitura de Jânio Quadros, e apoiador de primeira hora da campanha do Collor, de quem foi ministro da Administração. Ele até tinha uma certa admiração da direita brasileira até então, e defendia com unhas e dentes os dois tristes exemplos da política brasileira aí em cima. Depois que o filme deles queimaram, o Mellão sumiu.... talvez envergonhado por ter vendido ao país uma idéia de modernidade tão nefasta como Fernando Collor. Como a memória do Brasil é reconhecidamente curta, depois de passar muito tempo no ostracismo, hoje ele ainda tem um certo trânsito na direita brasileira, mais pelo jornal em que ele é articulista (o Estadão) do que propriamente por méritos pessoais.

De fato, ele atravessa uma fase de decadência constrangedora. Só o exemplo com que ele começa e termina o seu artigo é de um mau gosto que articulistas de direita jamais cometeriam. Talvez ele quisesse realçar a sua condição de privilegiado, por ter filhos que estudam em universidade e podem transar com patricinhas.... vai saber... a idade deve ter chegado, e a virilidade típica dos machistas tende a se projetar nos filhos, ainda mais se eles puderem reproduzir a velha tradição colonial dos filhos de senhores-de-engenho que se iniciavam sexualmente com as escravas negras. Freud explica!

Igualmente infeliz é a ligação que Mellão tenta fazer entre o malfadado exemplo das patricinhas e o amontoado de idéias desconexas que despeja sobre o leitor a seguir. Como participante de governos em que os comandantes não reservaram à posteridade uma imagem de bons gestores públicos (pra dizer o mínimo), soaria engraçado ele falar de desperdício de verbas públicas, não fosse trágico. Cita eleições livres, como se não fosse estranho o Bush ter assumido o primeiro mandato tendo menos votos do que Al Gore, sendo que a contagem dos votos na Flórida foi varrida pra debaixo do tapete. Cita tribunais de contas como garantia de lisura na administração pública, como se os tribunais de contas do Brasil não fossem compostos de juízes e conselheiros nomeados pelos próprios governantes que deveriam investigar (vide o atual escândalo de corrupção no TCE de São Paulo). Fala da globalização como se fosse uma concessão da suprema bondade dos países ricos aos pobres, e não uma necessidade da economia deles que permita a desova do excedente de produção nos mercados marginais, a fim de não haver desemprego LÁ. Se os países pobres terão boa parte de sua população tirada dos bolsões de miséria, isso se trata de mero efeito colateral desejável, pois garante o incremento da produção e da riqueza dos países ricos nas próximas décadas. Obviamente, embora o seu sobrenome até inspirasse a lembrança, Mellão não fala nada dos subsídios agrícolas e das barreiras fitossanitárias que os países ricos impõem aos pobres. Tampouco fala da fiscalização das suas políticas econômicas pelo FMI, que obriga os pobres a seguir sua cartilha, mas faz vistas grossas aos constantes e seguidos déficits das economias maiores, como os EUA, tão próximos de uma recessão, e, agora (pasmem!), ameaçado pelo FMI com uma investigação nas suas contas. O remédio é amargo, mas deixe que os outros tomem.

Enfim, Mellão não continua o mesmo, piorou muito! Atualmente tem uma certa dificuldade em concatenar idéias e o ranço do seu passado oligárquico e collorido contamina o seu texto e a sua percepção do mundo, das patricinhas e das moças da periferia. Estas, se pudessem falar, se tivessem vez e voz, talvez pudessem lembrar aquela velha frase que, me parece, foi originalmente proferida por Rui Barbosa: "os canalhas também envelhecem".

Chego à conclusão, portanto, de que o estilo neocon é muito mais nocivo do que parece, embora tenha vida curta. O próprio Francis Fukuyama, que havia celebremente decretado "O Fim da História" no seu livro de mesmo nome, após a derrocada do comunismo, agora lança o livro "After the Neocons" ("Depois dos Neocons"), culpando-os por sua frustrada profetada. A atual tragédia no Iraque e a falência das contas públicas e privadas nos EUA tendem a jogar uma pá de cal na fase neocon americana. Infelizmente, modismos gringos costumam sobreviver por algum tempo em países periféricos como o nosso. Até o seu sepultamento no hemisfério sul, padeceremos mais alguns anos debaixo desta mórbida influência. Até lá, entretanto, veremos muitos católicos, evangélicos e ateus entrando pela porta estreita que conduz ao reino paradisíaco (e passageiro) das políticas liberais, um fenômeno tipicamente brasileiro, onde a identidade religiosa não é tão importante como em outras plagas. Eis um prato cheio para os sociólogos pós-FHC investigarem.

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails