quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

O evangelho de Lucas - parte 2

David Alan Black¹, no livro "Por que 4 Evangelhos?" (Ed. Vida, 2004, pp. 23-34), tem algumas idéias bastante interessantes sobre os motivos que levaram Lucas a escrever seu evangelho. Tentarei resumir aqui.

A primeira geração de cristãos bebeu diretamente na fonte dos apóstolos, que se encarregavam pessoalmente da pregação do evangelho, mas também sofriam intensa perseguição das autoridades romanas e judaicas, além do cuidado natural com as igrejas. Não havia, portanto, condições de se escrever algo que pudesse instruir, discipular e confortar os irmãos, até porque a igreja podia se reunir hoje num lugar e amanhã já estava fugindo pelas estradas poeirentas da Palestina. Neste sentido, a dispersão dos cristãos, especialmente para Antioquia, fez com que muitos pagãos se convertessem. Pedro e os apóstolos, em geral, estavam mais preocupados em apaziguar os judeus do que pregar o evangelho aos gentios. Se tentarmos colocar-nos em seu lugar, é bem capaz que a gente pensasse isso também. A coisa estava feia. Enviaram, então, Barnabé a Antioquia, e este pediu o auxílio de Paulo. No ano 45, houve uma grande fome em Jerusalém, e os dois retornaram a Jerusalém com doações dos irmãos antioquinos (Atos 11:25-30 e 12:24-25). Aí houve o encontro entre Paulo, Pedro, Tiago e João (Gálatas 2:1-10), em que as bases iniciais para a pregação aos gentios foram estabelecidas.

Paulo, então, iniciou a sua primeira viagem missionária, tendo obtido um sucesso estrondoso na sua pregação, o que o obrigou a retornar a Jerusalém para o primeiro concílio (Atos 15) que decidiu sobre a liberdade dos gentios. Mais ou menos nessa época, o evangelho de Mateus começou a circular, e conforme Paulo viajava, sentia cada vez mais a necessidade de um evangelho escrito que atingisse não só os judeus, mas toda a variedade de povos e nações que ele havia visitado e onde havia implantado igrejas que necessitavam de discipulado. Para tanto, Paulo precisava produzir uma versão mais abrangente do evangelho, e certificar-se de que Pedro e os demais apóstolos a aprovariam. Assim, antes de terminar a terceira viagem missionária, Paulo teria escolhido Lucas, que se juntou a ele nos últimos estágios de sua volta a Jerusalém (Atos 21). Durante os dois anos seguintes, Paulo se envolveu em uma série de disputas com os judeus e ficou preso o tempo suficiente para que Lucas conhecesse os apóstolos e discípulos remanescentes, e fosse recolhendo material para compor o evangelho. Assim, pôde entrevistar muitas pessoas que haviam estado com o próprio Jesus 20 anos antes, mas sempre teve em mente o seu papel de "ponte" entre o contexto judeu e o mundo helênico, a quem dirigiria, preferencialmente, o texto que estava produzindo. David Black acredita que, nesse período, Lucas extraiu os primeiros capítulos, direta ou indiretamente, da própria Maria ou de pessoas que lhe seriam muito próximas, de quem teria obtido os detalhes pré-advento, que só existem no seu evangelho. Isto serviria também para compor uma espécie de "épico", a narrativa de um herói bom demais para este mundo, punido injustamente, e que ainda assim salvaria e regeneraria as pessoas mesmo após sua passagem por este planeta.

Quando Paulo foi enviado a Roma, Lucas foi junto, mas ainda não havia publicado o seu evangelho. Como ambos não haviam conhecido Jesus pessoalmente, o que eles estavam produzindo poderia ser considerado um relato de segunda mão em todos os sentidos da expressão, e, por isso, eles teriam aproveitado a chegada a Roma, no ano 61 ou 62, para obter a chancela apostólica de Pedro, que já estaria lá, garantindo assim que o seu trabalho fosse endossado por uma testemunha ocular apostólica. Além de ser versado no evangelho de Mateus, Pedro já tinha consigo, também, o evangelho de Marcos, que havia sido seu companheiro de viagem e de trabalho, e, a seu pedido, Marcos lhe preparara o evangelho, que Pedro lhe transmitira oralmente, a fim de organizar a sua pregação em Roma. Esta seria uma das razões para o fato do livro de Marcos ser o menos extenso dos evangelhos, já que teria servido como uma espécie de guia para a pregação de Pedro. Dizem que, por esta razão mesmo, nem Pedro nem os pais da igreja consideravam o relato de Marcos propriamente um evangelho, mas uma espécie de roteiro - de fácil manuseio e transporte - para uma série de pregações ou discursos. Pedro já dispunha dos rolos do evangelho de Mateus, e agora, de posse do evangelho de Lucas, teria pedido ao próprio Marcos que o ajudasse a "ajustar" a pregação dos três evangelistas, e Marcos dividiu-os em cinco discursos (didaskalias), cuja duração variava de 25 a 40 minutos, intercalando os evangelhos para facilitar o manuseio dos rolos. Pedro não tinha dúvidas de que o evangelho de Mateus já tinha ampla circulação e aceitação, mas a aprovação pública ao relato de Lucas animou-o a autorizar a sua publicação. Marcos ficou, portanto, com o terceiro evangelho em popularidade, e talvez nem tenha sido sua intenção pessoal (nem de Pedro) que integrasse o cânon, mas ele só vai se firmar como evangelho realmente por ocasião da oficialização do cânon neotestamentário, no fim do século IV, sendo que apenas no século seguinte há registro de um comentário a seu respeito. Assim, Lucas passa a ter uma espécie de aprovação oficial do cristianismo, embora, na sua origem tenha sido, na verdade, um evangelho de Paulo.


(1) Para outra análise do livro de David Black, recomendo o comentário do meu amigo e irmão Vítor Grando, no blog Despertai, Bereanos!

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