sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Deus e a linguagem

Efrem, o Sírio (ou Siríaco), foi um dos pais da nascente Igreja cristã, tendo vivido de 306 a 373 d.C., ainda em meio à controvérsia com os arianos, dos quais era ferrenho opositor. Também conhecido por "Profeta dos Sírios" e "Cítara do Espírito Santo", Ephraem Graecus (seu nome em latim) era da tradição oriental (hoje ortodoxa), mas foi elevado à condição de Doutor da Igreja pelo papa Bento XV em 1920, o que explica, de certa maneira, o interesse atual de Bento XVI em citá-lo em seus discursos. Efrem dedicou-se à vida monástica em Nísibe e Edessa, e foi um dos primeiros poetas e compositores de música sacra da Igreja Cristã (para uma biografia mais detalhada, clique aqui). Seus hinos, escritos originalmente em siríaco (um dialeto aramaico tardio), foram traduzidos para o grego e o latim e, pouco tempo após sua morte, já eram cantados nas celebrações litúrgicas de grande parte das igrejas daquela época. Efrem via na linguagem das palavras e da música uma maneira admirável de Deus revelar-se ao mundo, a ponto de afirmar que "Deus revestiu-se de nossa linguagem, de modo a poder vestir-nos com Seu modo de vida". Cristo, o Verbo da Vida, o Logos, conceito que tantas polêmicas havia causado entre cristãos e arianos, transcendia, para Efrem, o campo das batalhas teológicas, e a linguagem era uma das maneiras como Deus podia se relacionar com as pessoas das mais diferentes origens e culturas. No "Comentário ao Diatessaron" 7:22, Efrem afirma que:

"Se as palavras tivessem somente uma única perspectiva, o primeiro intérprete a teria encontrado, e os outros ouvintes não teriam o trabalho duro nem o prazer da sua própria interpretação. Entretanto, todas as palavras do Senhor têm as suas imagens, e cada uma dessas imagens tem os seus muitos componentes, e cada um desses componentes tem a sua própria especificidade e forma. E cada pessoa ouve de acordo com a sua capacidade, e interpreta de acordo com aquilo que lhe está sendo dado."


Ainda que o interesse nas obras de Efrem tenha se acentuado a partir de meados do século XX, com a difícil seleção dos seus textos autênticos, e ele se refira mais a uma teologia simbólica, na melhor tradição siríaca de sua época, chama a atenção a sua preocupação em mostrar a linguagem como elo entre Deus e o homem. No nosso dia-a-dia, já tão conturbado, não damos muito valor às palavras, e tantas vezes as pronunciamos mecânica e automaticamente, e não as percebemos como veículos de uma série de informações sobre nossas convicções, nossas crenças e, principalmente, sobre nós mesmos. Palavras conduzem conceitos e preconceitos que nos denunciam, nos entregam, nos desnudam. Machucam também, talvez mais do que os gestos que as acompanham. Palavras engolidas podem ser sábias, mas também podem sufocar. Manter uma postura neutra parece ser fácil (às vezes), mas, se o próprio Deus se preocupou com palavras, e chamou-se a Si mesmo de Verbo, como não valorizaremos as palavras e as linguagens por meio das quais interagimos neste mundo? Abraham Heschel acrescenta:

“Algumas pessoas podem estar perguntando: Por que a luz de Deus foi dada na forma de linguagem? Como é concebível que o divino esteja contido em vasos tão frágeis como consoantes e vogais? Esta pergunta revela o pecado de nossa era: tratar de forma superficial o meio que transporta as ondas de luz do espírito. O que mais no mundo é capaz de unir homens através das distâncias do tempo e do espaço? De todas as coisas terrestres, as palavras nunca morrem. Há tão pouca matéria nelas, porém tanto significado... Deus tomou estas palavras hebraicas e soprou nelas o Seu poder, e elas se tornaram um vínculo vivo, carregado com o Espírito divino. A partir desse dia, as palavras são ligações entre o céu e a terra. Que outro meio poderia ser empregado para conduzir o divino? Figuras esmaltadas na lua? Estátuas esculpidas nas montanhas?”

(Abraham Heschel, “God in Search of Man”, citado por Eugene Peterson em “Corra com os Cavalos”, 2003, Ed. Textus e Ed. Ultimato, pág. 147)

A Jesus, agradavam-lhe particularmente as palavras. Jogava com elas, como se fossem um brinquedo ingênuo da infância, mas não se negava a torná-las ásperas e maduras quando era necessário. Via nelas, entretanto, vida... sempre! Mesmo quando se travestiam de morte. Responsabilidade gigantesca a nossa, portanto, de interagir através de palavras. Contudo, não deveriam pesar sobre nossos ombros, já que o que nos esmaga talvez seja o não ter o que dizer, não ter com quem conversar nem a quem recorrer. Palavras são livres, destinadas ao belo espaço das idéias infinitas que se comunicam (ou não) ao sabor dos ventos e das vontades humanas. E nesta infinitude temos a feliz oportunidade de nos comunicarmos com Deus. Mediante palavras...

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