domingo, 24 de novembro de 2013

A violenta gênese dos deuses gregos

A castração de Urano: afresco por Giorgio Vasari e Cristofano Gherardi, c. 1560 (Sala di Cosimo I, Palazzo Vecchio).

Artigo interessante de Arnóbio Rocha sobre a teogonia grega, publicado originalmente no seu blog, com referências e links para seus trabalhos anteriores, para quem quiser se aprofundar no tema:

A Guerra de Sucessão entre Deuses Gregos

“Zeus te ocultou a vida no dia em que, com a alma em fúria,
se viu ludibriado por Prometeu de pensamentos velhacos.
Desde então ele preparou para os homens tristes cuidados,
privando-os do fogo”.
(Trabalho e Dias – Hesíodo)

Realinhando meus estudos sobre os deuses gregos e suas gerações de poder, já descrita em dois artigos anteriores (Teogonia I – Deuses Primevos e Teogonia II – Deuses do Olimpo), voltarei este trabalho à especulação sobre o destino de Crono, que foi destronado por Zeus na guerra da Titanomaquia. Qual destino de Crono “de curvo pensar” após ser preso no Tártaro pelo seu filho Zeus e sua poderosa aliança com os irmãos Posídon e Hades e o titã Prometeu?

As sucessões nas gerações dos deuses gregos primevos ( e latinos por aproximação) se deram de forma violenta, pois a linguagem corrente era violenta, a força da natureza era a única expressão conhecida. Céu (Urano) deitava-se em amor com a Esposa a deusa Geia(Terra) gerando poderosos filhos, mas devolvia ao ventre materno( Geia/Terra) todos os filhos que nasciam dela, pois temia que um deles fosse mais forte do que ele e o superasse. O ciclo criativo se interrompia pela impiedade do primeiro grande deus das galáxias celestes.

Passados os anos e as épocas, exortado pela mãe, Crono munido de uma foice, instrumento sagrado da colheita, surpreende o pai, Céu (Urano), cortando-lhe o pênis, o centro do poder de um Rei/Deus, ou seja, sua capacidade de fecundar. Daquele corte violento muda o rumo da criação como já dissemos antes “Toda esta linhagem de deuses, a reprodução, miticamente, era feita numa união em que os parceiros possuíam os dois sexos, ou paria sem a necessidade do “outro”. Até Crono, decepar o pênis do Pai( Céu – Urano), dele jorrar no mar esperma(espuma, aphros) e dali, em Chipre, surgir Afrodite, a deusa do Amor, da reprodução sexuada, do prazer carnal. A separação plena do sexo, e a obrigação de que se unissem em “amor” para gerar novas crias. Platão é um dos primeiros a separar esta dualidade, Amor Fraternal (Eros) vs Amor Sexual (Afrodite), encontramos em Hesíodo à perfeição desta separação:

“Deusa nascida de espuma e bem-coroada Citeréia
apelidam homens e Deuses, porque da espuma
criou-se e Citeréia porque tocou Citera,
Cípria porque nasceu na undosa Chipre,
e Amor-do-pênis porque saiu do pênis à luz. Eros acompanhou-a, Desejo seguiu-a belo,
tão logo nasceu e foi para a grei dos Deuses.
Esta honra tem dês o começo e na partilha
coube-lhe entre homens e Deuses imortais
as conversas de moças, os sorrisos, os enganos,
o doce gozo, o amor e a meiguice”.

O mestre Junito de Sousa Brandão nos lembra de que “se a castração leva obviamente à impotência, o soberano terá fatalmente que ser afastado do poder. A função precípua do rei é a de fecundar. Da fecundação da rainha depende a fertilidade de todas as mulheres, da terra e do rebanho. Assim, na medida em que o rei, por força da idade, da doença ou porque se tornou sexualmente impotente, ou perdeu seu poder mágico, é alijado do trono e substituído. Na sociedade matriarcal, seu sucessor é o filho caçula, que, sendo o mais jovem, corre menos risco de interromper a fecundação”. Ainda segundo Junito, Urano, ”Mutilado e impotente, o deus do céu caiu na otiositas, na ociosidade, o que é, segundo Mircea Eliade, uma tendência dos deuses criadores. Concluída sua obra cosmogônica, retiram-se para o céu e tornam-se di otiosi, deuses ociosos”.

Crono, de curvo pensar, assumiu o poder e rapidamente se torna um déspota. Assim, ”O Uranida, senhor de todos os seres, em união a sua irmã, Réia, tem uma nova geração de deuses, porém, com medo de perder seu poder, que um filho mais forte lhe supere, assim que Réia pare prontamente Crono, os engole, não deixando vingar qualquer novo filho”.

Réia submetida a Crono pariu brilhantes filhos:
Héstia, Deméter e Hera de áureas sandálias,
o forte Hades que sob o chão habita um palácio
com impiedoso coração, o troante Treme-terra
e o sábio Zeus, pai dos Deuses e dos homens,
sob cujo trovão até a ampla terra se abala.
E engolia-os o grande Crono tão logo cada um
do ventre sagrado da mãe descia aos joelhos,
tramando-o para que outro dos magníficos Uranidas
não tivesse entre os imortais a honra de rei.
Pois soube da Terra e do Céu constelado
que lhe era destino por um filho ser submetido
apesar de poderoso, por desígnios do grande Zeus.

Réia apela aos seus pais, Terra e o Céu Constelado (Urano), para que a ajudasse e um ardil fizesse para que novo filho não perdesse, pela maldição do seu marido. A difícil gravidez, do predestinado Zeus, o maior de todos, o pais dos deuses e dos homens. Réia tem sua gravidez na ilha sagrada de Creta, e o ardil se fez, encueirada uma pedra, como se filho fosse, Cronos engole-a sem perceber. Enquanto o pequeno rebento, alimentado pela cabra Amatéia, cresce forte e vigoroso, pronto para subjugar o pai.

Encueirou grande pedra e entregou-a
ao soberano Uranida rei dos antigos Deuses.
Tomando-a nas mãos meteu-a ventre abaixo
o coitado, nem pensou nas entranhas que deixava
em vez da pedra o seu filho invicto e seguro
ao porvir. Este com violência e mãos dominando-o
logo o expulsaria da honra e reinaria entre imortais.
Rápido o vigor e os brilhantes membros
do príncipe cresciam. E com o girar do ano,
enganado por repetidas instigações da Terra,
soltou a prole o grande Crono de curvo pensar,
vencido pelas artes e violência do filho.
Primeiro vomitou a pedra por último engolida.
Zeus cravou-a sobre a terra de amplas vias
em Delfos divino, nos vales ao pé do Parnaso,
signo ao porvir e espanto aos perecíveis mortais.

A dura luta travada entre Cronos e Zeus, foi a última entre os deuses, um novo poder e uma nova ordem ali se estabeleceu. Com ajuda dos irmãos, armado e orientado por Prometeu, o grande Zeus, enfrenta a Titanomaquia, a maior guerra já existida na galáxia. Primeiro libertou os irmãos, fazendo Cronos devolvê-los, pois havia engolido, assim, com seu reforço pode Zeus derrotar o pai e seus gigantes aliados. Todo o universo se cobriu de fogo e raios tudo ameaçava se acabar, sem um claro vencedor, até que o poderoso Zeus prende o grande Cronos, no Tártaro nevoento.

Não mais Zeus continha seu furor e deste
furor logo encheram-se suas vísceras e toda
violência ele mostrava. Do céu e do Olimpo
relampejando avançava sempre, os raios
com trovões e relâmpagos juntos voavam
do grosso braço, rodopiando a chama sagrada
densos. A terra nutriz retumbava ao redor
queimando-se, crepitou ao fogo vasta floresta,
fervia o chão todo e as correntes do Oceano
e o mar infecundo, o sopro quente atava
os Titãs terrestres, a chama atingia vasta
o ar divino, apesar de fortes cegava-os nos olhos
o brilhar fulgurante de raio e relâmpago.
O calor prodigioso traspassou o Caos. Parecia,
a ver-se com olhos e ouvir-se com ouvidos a voz,
quando Terra e o Céu amplo lá em cima
tocavam-se, tão grande clangor erguia-se
dela desabada e dele desabando-se por cima,
tal o clangor dos Deuses batendo-se na luta.
Os ventos revolviam o tremor de terra, a poeira,
o trovão, o relâmpago e o raio flamante,
dardos de Zeus grande, e levavam alarido e voz
ao meio das frentes, estrondo imenso erguia-se
da discórdia atroz. Mostrava-se o poder dos braços.
A batalha decai. Antes, uns contra outros
atacavam-se tenazes em violentas batalhas.
Na frente despertaram áspero combate
Cotos, Briareu e Giges insaciável de guerra.
Trezentas pedras dos grossos braços
lançavam seguidas e cobriram de golpes
os Titãs. E sob a terra de amplas vias
lançaram-nos e prenderam em prisões dolorosas
vencidos pelos braços apesar de soberbos,
tão longe sob a terra quanto é da terra o céu,
pois tanto o é da terra o Tártaro nevoenta.

Bem observa junito que “as lutas de Zeus contra os Titãs (Titanomaquia), contra os Gigantes (Gigantomaquia), episódio, aliás, desconhecido por Homero e Hesíodo, mas abonado por Píndaro (Neméias, 1, 67), e contra o monstruoso Tifão, essas lutas, repetimos, contra forças primordiais desmedidas, cegas e violentas, simbolizam também uma espécie de reorganização do Universo, cabendo a Zeus o papel de um “re-criador” do mundo. E apesar de jamais ter sido um deus criador, mas sim conquistador, o grande deus olímpico torna-se, com suas vitórias, o chefe inconteste dos deuses e dos homens, e o senhor absoluto do Universo. Seus inúmeros templos e santuários atestam seu poder e seu caráter pan-helênico. O deus indo-europeu da luz, vencendo o Caos, as trevas, a violência e a irracionalidade, vai além de um deus do céu imenso, convertendo-se, na feliz expressão de Homero (Il. I, 544) patèr andrôn te theônte, o pai dos deuses e dos homens” (Grifos nosso).

Sobre o amplo poder de Zeus escrevemos o artigo Zeus Pai : O Deus Estado, em que acompanhamos o deus e sua transformação, a consolidação de seu poder único e soberanos sobre os demais, apesar da divisão dos três niveis de poder: Olimpo( Zeus – Executivo), Mar(Posídon – Legislativo) e Inferno( Hades – Judiciário). Mas o que aconteceu a Crono? Sabemos, como vimos acima, que Urano teve sobrevida, como Deus Ocioso, mas Crono é condenado ao Tártaro, algo como os confins do mundo, que seria os Montes Urais( Rússia).

Junito nos conta que Zeus “tão logo o pai dos deuses e dos homens sentiu consolidados o seu poder e domínio sobre o Universo, libertou seu pai Crono da prisão subterrânea onde o trancafiara e fê-lo rei da Ilha dos Bem-Aventurados, nos confins do Ocidente. Ali reinou Crono sobre muitos heróis que, mercê de Zeus, não conheceram a morte. Esse destino privilegiado é, de certa forma, uma escatologia: os heróis não morrem, mas passam a viver paradisiacamente na Ilha dos Bem-Aventurados. Trata-se de uma espécie de recuperação da idade de ouro, sob o reinado de Crono.

Numa variação latina, Saturno (Crono) ainda segundo Junito “quando Zeus destronou a Crono, este refugiou-se na Ausônia, onde recebeu o nome de Saturno. À chegada deste, a Itália (outrora denominada poeticamente Ausônia) teve sua aetas aurea, a idade de ouro, quando a terra tudo produzia abundantemente, sem trabalho, como atesta o poeta latino Públio Ovídio Nasão, em suas Metamorfoses, 89, sqq. Reinavam a paz, a concórdia, a fraternidade, a igualdade e a liberdade. Saturno é, pois, o herói civilizador, o que ensina a cultura da terra, a paz e a justiça. O poeta maior da latinidade, Públio Vergílio Marão, sonhou com o retorno, no século de Augusto, dessa paz e dessa justiça:

Iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna (Écloga 14, 6):
“Eis que a Justiça está de volta; retorna o reino de Saturno”.

O mestre nos dá mais pistas sobre o destino de Crono(Saturno), já um deus quase “humano”, mas que representava uma época de glórias, uma contradição em relação a sua forca despótica. Junito nos diz que “As Saturnalia seriam, em última análise, uma reminiscência da aetas aurea, quer dizer, da abundância, da igualdade, da liberdade. Começavam, em Roma, pela manhã. Após se retirar a faixa de lã que cobria, durante o ano todo, o pedestal da estátua de Saturno, realizava-se, um pouco mais tarde, um banquete público, cujo término era marcado pelo grito da distensão: Io Saturnalia! Viva as Saturnais. Tudo parava: o senado, os tribunais, as escolas, o trabalho. Reinavam a alegria, a orgia e a liberdade. Eliminavam-se interditos de toda ordem. Quebrava-se a hierarquização da orgulhosa sociedade romana: os escravos, temporariamente em liberdade total, eram servidos pelos senhores, aos quais, não raro, insultavam, lançando-lhes em rosto os vícios, as torpezas e a crueldade.

Se as Saturnais, com toda a sua liberação, talvez possam ser interpretadas, segundo o fizemos, como reminiscência da Idade de Ouro, não poderiam simbolizar também, como no complexo de Édipo, a supressão do deus, do pai e do chefe?

Se Crono destronou a seu pai Urano, mutilando-o e se, por sua vez, foi destronado pelo filho Zeus, o povo e sobretudo os escravos, durante o breve período das Saturnais, faziam que seus chefes e senhores prepotentes recebessem “a retribuição” do que haviam feito a seus próprios pais, à imitação do ato de Crono para com Urano e de Zeus em relação a Crono. Assim talvez se explique por que se elegia, anualmente, nas Saturnalia, um Saturnalicius Princeps, o rei das Saturnais, como, entre nós, o Rei Momo. Em épocas recuadas, esse rei, após presidir aos banquetes, às festas e orgias, era, no final das mesmas, sacrificado a Saturno”.

Crono encontrou um papel, quer seja como Deus da ilha dos Bem-Aventurados, quer seja nas festas saturnais, sem mais a força desmedida, mas como um deus bom, feliz e festeiro, o que nos remete à figura do Avô, aquele que foi um pai duro, mas vira uma figura amorosa na lente dos netos. Por fim, concordamos com o arremate de Junito que fala que ”Após o governo de Urano e Crono, Zeus simboliza o reino do espírito. Embora não seja um deus criador, ele é o organizador do mundo exterior e interior”. E, de acordo com Mircea Eliade, “Zeus é o arquétipo do chefe de família patriarcal. Deus da luz, do céu luminoso, é o pai dos deuses e dos homens. Enquanto deus do relâmpago, configura o espírito, a inteligência iluminada, a intuição outorgada pelo divino, a fonte da verdade. Como deus do raio, simboliza a cólera celeste, a punição, o castigo, a autoridade ultrajada, a fonte de justiça”.



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