Primo Levi, 1919-1987 escritor judeu italiano que testemunhou os horrores do holocausto |
Artigo publicado no IHU:
O contágio do mal.
Artigo de Primo Levi
Nunca a consciência humana foi violentada, ofendida, distorcida como nos campos de concentração: em nenhum lugar, foi mais clamorosa a demonstração de quão tênue é cada consciência, de quão fácil é subvertê-la e submergi-la.
A opinião é do químico e escritor italiano Primo Levi (1919-1987), sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. É autor do livro É isto um homem? (1947), memória dos seus sofrimentos no campo de concentração.
O artigo foi publicado no jornal La Stampa, 21-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Pensem: há não mais do que 20 anos, e no coração desta civilizada Europa, foi sonhado um sonho demente, o de edificar um império milenar sobre milhões de cadáveres e de escravos. O verbo foi banido para as praças: pouquíssimos se recusaram e foram decepados; todos os outros consentiram, parte deles com desgosto, parte com indiferença, parte com entusiasmo. Não foi somente um sonho: o império, um efêmero império, foi edificado: os cadáveres e os escravos existiram. […]
Mas também houve mais, e pior: houve a demonstração despudorada de como o mal prevalece facilmente. Isso, notem bem, não só na Alemanha, mas onde quer que os alemães tenham posto os pés; em toda a parte, eles o demonstrado, é uma brincadeira de criança encontrar traidores e fazer deles sátrapas, corromper as consciências, criar ou restaurar aquela atmosfera de consenso ambíguo, ou de terror aberto, que era necessária para traduzir em ato os seus desígnios.
Tal foi a dominação alemã na França, na França inimiga de sempre; tal foi na livre e forte Noruega; tal foi na Ucrânia, apesar dos 20 anos de disciplina soviética; e as mesmas coisas aconteceram, conta-se com horror, dentro dos próprios guetos poloneses: até mesmo dentro dos campos de concentração. Foi uma irrupção, uma enxurrada de violência, de fraude e de servidão: nenhuma represa resistiu, salvo as ilhas esporádicas das Resistências europeias.
Nos próprios campos de concentração, eu disse. Não devemos recuar diante da verdade, não devemos indultar à retórica, se realmente queremos nos imunizar. Os campos de concentração foram, além de lugares de tormento e de morte, lugares de perdição.
Nunca a consciência humana foi violentada, ofendida, distorcida como nos campos de concentração: em nenhum lugar, foi mais clamorosa a demonstração a que nos referíamos antes, a prova de quão tênue é cada consciência, de quão fácil é subvertê-la e submergi-la.
Não admira que um filósofo, Jaspers, e um poeta, Thomas Mann, tenham renunciado a explicar o hitlerismo em chave racional e tenha falado dele, literalmente, como "dämonische Mächte", como potências demoníacas.
Nesse plano, adquirem sentido muitos detalhes, desconcertantes, da técnica concentracionária. Humilhar, degradar, reduzir o homem ao nível das suas vísceras. Por isso, a viagem nos vagões selados, propositalmente promíscuos, propositalmente desprovidos de água (não se tratava aqui de razões econômicas). Por isso, a estrela amarela sobre o peito, o corte dos cabelos, também nas mulheres. Por isso a tatuagem, o uniforme desajeitado, os sapatos que fazem tropeçar. Por isso, e de outro modo não se entenderia, a cerimônia típica, predileta, cotidiana, da marcha em passo militar dos homens-trapos diante da orquestra, uma visão grotesca mais do que trágica.
Assistiam-na, além dos chefes, as repartições da Hitlerjugend, rapazes de 14-18 anos, e é evidente quais deviam ser as suas impressões. São esses, portanto, os judeus de que nos falaram, os comunistas, os inimigos do nosso país? Mas eles não são homens, são marionetes, são feras: estão sujos, esfarrapados, não se lavam, não se defendem ao serem agredidos, não se rebelam; não pensam senão em encher a pança. É justo fazê-los trabalhar até a morte, é justo matá-los. É ridículo compará-los a nós, aplicar a eles as nossas leis.
Chegava-se ao mesmo escopo de aviltamento, de degradação por outro caminho. Os funcionários do campo de Auschwitz, mesmo os mais altos, eram prisioneiros: muitos eram judeus. Não se deve acreditar que isso mitigasse as condições do campo: ao contrário. Era uma seleção ao revés: eram escolhidos os mais vis, os mais violentos, os piores, e lhes eram concedidos todo poder, alimentos, vestes, isenção do trabalho, isenção da própria morte em gás, contanto que colaborasse.
Colaboravam: e eis que o comandante Höss pode se livrar de todo remorso, pode levantar a mão e dizer "está limpa": não somos mais sujos do que vocês, os nossos próprios escravos trabalharam conosco. Releiam a terrível página do diário de Höss em que se fala do Sonderkommando, da equipe designada para as câmaras de gás e para o crematório, e vocês entenderão o que é o contágio do mal.