A expressão Mãe de Deus - associada a Maria - desde o quarto século é uma expressão polêmica no meio cristão, e poucas pessoas compreendem seu real significado. Não é à toa que ela foi a principal causa de dois Concílios Ecumênicos e gerou uma das maiores controvérsias do cristianismo.
Hoje ela está automaticamente ligada ao catolicismo, e se tornou uma expressão mariológica, a exemplo de Theotokos (do grego Θεοτόκος), na ortodoxia oriental. Por isto mesmo, no meio evangélico, há uma espécie de aversão instantânea a esta expressão, o que faz com que as pessoas a rejeitem sem ao menos refletir sobre o seu real significado.
Desta maneira, poucos conhecem sua natureza cristológica, pois a expressão, quando foi criada, estava muito mais relacionada à divindade de Cristo do que a uma pretensa superioridade de Maria. Por isto lemos no Credo de Calcedônia:
Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade, perfeito quanto à humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, constando de alma racional e de corpo; consubstancial, segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade; em todas as coisas semelhante a nós, excetuando o pecado, gerado segundo a divindade antes dos séculos pelo Pai e, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, gerado da virgem Maria, mãe de Deus; Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e imutáveis, inseparáveis e indivisíveis; a distinção da naturezas de modo algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar uma só pessoa e subsistência; não dividido ou separado em duas pessoas. Mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, Jesus Cristo Senhor; conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam, e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu.
Este credo é aceito por todas as denominações protestantes, com exceção das extremamente puritanas e de algumas seitas que renegam todo o passado da Igreja. É comum encontrar pessoas que a chamam de herética, talvez por associá-la - como que por reflexo condicionado - apenas ao catolicismo. Eu não sou dogmático, e não condeno ninguém por achar errado valer-se da expressão, como católicos a utilizam, e o fazem de forma forçada, a meu ver... só que o título Mãe de Deus não é heresia, como muitos alegam. Talvez haja discordância sobre o seu uso correto, mas não se trata de uma expressão herética. Isto se explica porque as duas naturezas de Cristo estão tão unidas, que a expressão é possível. Vejamos:
Sabemos que Cristo é um ser que possui duas naturezas, a saber, a humana e a divina. Estas naturezas estão intimamente ligadas no ser Jesus Cristo. Assim, o que acontece com uma natureza, acontece com todo o ser Jesus Cristo, e não com parte dele.
É como chorar. Quem desempenha a tarefa de chorar é o olho, mas quando choramos, ninguém diz que é o olho que está chorando, mas nós por completo. A pessoa chora, não apenas o olho.
O mesmo acontece com Cristo. Deus não pode chorar, não é propriedade de sua natureza. Mas na Encarnação, Deus pode chorar através de sua natureza humana. Então quando Cristo chora, Deus chora, pois suas naturezas são uma só em seu ser. Da mesma forma, um homem não pode ser adorado, mas por causa da união entre as duas naturezas, a natureza humana de Cristo recebe adoração como Deus.
Isto precisa ser assim, pois era necessário que Cristo experimentasse a morte, como o autor de Hebreus diz:
(Hb 9:15) E por isso é mediador de um novo pacto, para que, intervindo a morte para remissão das transgressões cometidas debaixo do primeiro pacto, os chamados recebam a promessa da herança eterna.
(Hb 9:16) Pois onde há testamento, necessário é que intervenha a morte do testador.
(Hb 9:17) Porque um testamento não tem força senão pela morte, visto que nunca tem valor enquanto o testador vive.
Ora, se Deus não experimenta a morte, então nós não podemos receber nossa herança eterna!!! Imagine quão perigoso é isto para nossa salvação!!!
E aqui nós podemos perceber quão herético é o aniquilacionismo. Pois se a morte é aniquilação, Deus ao experimentar a morte teria sido aniquilado!!! Nós ao contrário cremos que a morte é uma separação do mundo material, não uma aniquilação do ser completo.
Então, o título "mãe de Deus" é válido sim, pois as propriedades de uma natureza são compartilhadas com a outra, pois Jesus é um ser (mais que) completo, íntegro e co-substancial em suas essências humana e divina. Assim, Deus não tem uma mãe humana, mas através de sua natureza humana ele tem uma mãe. Estas são as palavras mencionadas na confissão de Calcedônia e é como se deve entender esta expressão.
Complementando a idéia acima, sempre me chamou a atenção para o fato que a Bíblia chama muitas vezes Deus de "o Deus Vivo". Isto ela faz em contraste com os deuses mortos dos pagãos.
Bem, nós protestantes entendemos a morte como uma separação do mundo material. O morto não se comunica com este mundo mais, ele não se relaciona com ele. Talvez por isto o contraste bíblico... Os deuses pagãos são incapazes de se relacionar com este mundo, de salvar seus fiéis, de lhes dar esperança.
Já mencionei algumas vezes o fato de Deus ter que morrer como condição apresentada no livro de Hebreus, e muitos acharam a idéia absurda, talvez por que nesta hora pensem na morte como aniquilação... Mas o que acontece é que este não se relaciona mais com o mundo, pelos três dias, e por isto também a solução modalista de que somente Jesus é Deus, que o Pai e o Espírito Santo são modos de Jesus se revelar ao mundo, é herética da mesma forma. Como poderia o mundo ficar sem se relacionar com Aquele que o sustém? Deus deixaria de manter o mundo pelos 3 dias? Assim, a Trindade se impõe como doutrina não por uma manobra político-ideológica, mas como uma necessidade teológica absoluta para explicar a nossa salvação.