sábado, 6 de dezembro de 2014

México resiste à barbárie


Artigo publicado no Brasil Post:

O México cansado do medo

Maurício Santoro
Assessor de direitos humanos da Anistia Internacional

Julio César Mondragón estava feliz. Era um rapaz pobre que queria continuar a estudar e conseguir um emprego para sustentar a filha recém-nascida, Melisa. Em agosto havia começado as aulas numa escola de formação de professores primários que lhe garantia gratuitamente educação, moradia e a possibilidade quase certa de trabalho após a formatura. Mudou-se da Cidade do México para o estado de Guerrero para aproveitar a oportunidade.

Em 26 de setembro de 2014 Julio Cesar tornou-se um dos 43 estudantes mexicanos assassinados após participarem de um protesto na cidade de Iguala. Em novembro, a Procuradoria Geral do México afirmou que os responsáveis foram a polícia municipal e uma quadrilha de traficantes de drogas. A maioria dos corpos foram esquartejados e queimados. Como o México chegou a tal ponto? A resposta passa por uma longa trajetória de impunidade de atrocidades cometidas pelo Estado e pelo conluio entre agentes públicos e crime organizado.

Iguala fica no mesmo estado das belas praias de Acapulco, conhecidas internacionalmente. Contudo, a maioria dos turistas estrangeiros que lotam seus hotéis de luxo não sabem os detalhes da tradição de mobilização política local, que remonta às revoltas camponesas durante o período colonial, atravessa as guerras civis do século XIX e a Revolução Mexicana. Na década de 1960 houve um massacre de camponeses na região que serviu de estopim para lutas de trabalhadores rurais e estudantes, reprimidas pelo Estado com torturas, mortes e desaparecimentos na chamada "guerra suja".

Além da violência política, também floresceram as relações promíscuas entre o Estado e grupos do crime organizado. Guerrero é a região de maior produção de heroína do México. Quadrilhas conquistaram influência considerável junto a políticos e a cidades inteiras.

O papel dos estudantes

Os estudantes assassinados eram alunos da Escola Normal Rural Raúl Isidro Burgos, na comunidade de Ayotzinapa. Eram jovens em sua maioria entre 17 e 22 anos, vindos de famílias pobres e descendentes de indígenas. Desde sua fundação na década de 1920, a escola é famosa pelo ativismo político de seus alunos, um centro de mobilização à frente das principais lutas sociais numa região na qual 70% dos habitantes vivem na pobreza.

Em setembro de 2014 um grupo de 100 estudantes foi até o município vizinho de Iguala, para protestar. Queriam mais verbas para a educação, mudanças nas políticas de contratação de professores e ajuda do governo para viajar até a Cidade do México participar de uma manifestação que lembraria o aniversário do massacre de Tlatelolco (1968). Em manifestações anteriores, haviam acusado o prefeito de Iguala da tortura e assassinato do líder camponês Arturo Hernández Cardona, em maio de 2013. O político temia que a mobilização estudantil prejudicasse a campanha para fazer da esposa sua sucessora no cargo.

Os jovens nunca chegaram até Iguala, foram interceptados na estrada pela polícia da cidade. Embora os detalhes do que ocorreu ainda sejam controversos, sabe-se que houve um confronto no qual seis pessoas foram mortas a tiros e outras 25 feridas. Quarenta e três alunos foram detidos pela polícia e quase todos desapareceram - Julio César foi uma exceção. Seu cadáver, com marcas de tortura, foi largado nas ruas de Iguala.

O caso horrorizou a sociedade mexicana e levou a gigantescas mobilizações em todo o país, cobrando justiça e o aparecimento com vida dos estudantes. O governo federal agiu e nas investigações que se seguiram, as autoridades prenderam mais de 70 pessoas, incluindo o prefeito e a primeira-dama de Iguala.

Segundo a Procuradoria Geral da República, os alunos foram levados pelos policiais até um lixão, em furgões superlotados. Quinze morreram por asfixia. Os demais foram entregues a bandidos do cartel Guerreros Unidos, que os assassinaram. De acordo com as investigações, um dos pistoleiros teria dito ao chefe do bando que os rapazes pertenciam a um grupo rival do crime organizado. Seus cadáveres foram queimados numa grande fogueira.

Consequências da militarização

Conluio entre autoridades públicas e crime organizado (quadrilhas, milícias, paramilitares), chacinas, massacres e guerras sujas e desaparecidos que atravessam ditaduras e democracias também são lamentavelmente frequentes em muitos outros países da América Latina, como Brasil, Colômbia, El Salvador e Honduras. Cerca de 30% dos homicídios do planeta acontecem nesta região, que só tem 10% da população mundial.

No México, esse padrão assustador piorou desde 2006, com a decisão do governo federal em engajar as Forças Armadas diretamente no combate ao narcotráfico. Desde então, houve mais de 100 mil assassinatos no país - aumento de mais de 160% antes da militarização - e 26 mil desaparecimentos. Na procura pelos estudantes, foram encontradas seis covas coletivas, onde estavam 28 corpos. De quem são?

O México é um dos países-chave na campanha "Chega de tortura" da Anistia Internacional que destaca a importância de combater esse crime em meio ao aniversário da convenção da ONU contra ele. A escolha do México como uma das prioridades se deu em função do aumento exponencial das denúncias de tortura no contexto da guerra às drogas - 600%, com 7 mil casos de 2010 a 2013. Apenas sete resultaram em condenações. Isso mesmo: uma em mil .

"Já me cansei do medo", bradam os manifestantes. O México hoje é a América Latina em volume mais alto, lá se mostram de maneira mais dura tendências preocupantes que estão presentes também nos outros países da região. Os protestos impulsionados pelo assassinato dos 43 estudantes tocam problemas estruturais que estão na base desses crimes, mas vão além deles. O desdobramento dessas mobilizações é importante para todos os países latino-americanos.



LinkWithin

Related Posts with Thumbnails