quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Um padre entre duas ditaduras sulamericanas


A matéria é do IHU:

'A Missão' do jesuíta Luis Caravias entre o Paraguai de Stroessner e a Argentina de Videla


Durante a visita pastoral do Papa Francisco ao Paraguai, no meio da multidão que se reuniu para ouvi-lo estava um jesuíta especial. Alguém que viu cumprir-se nas palavras de Francisco o sonho de toda uma vida. Embora em uma determinada época aqueles sonhos lhe estavam custando muito caro, e quem o ajudou nesse momento foi precisamente o jovem Jorge Mario Bergoglio. O padre José Luis Caravias seria o missionário perfeito para um filme: um herói romântico com uma ideia radical de missão, somada a uma pitada de inconsciência que o converte em candidato ideal ao martírio. O padre Caravias tinha também um defeito próprio dos romances, uma dessas características que não agradam os militares. Fundava cooperativas, organizava sindicatos, reivindicava salários dignos para as classes exploradas, apontava o dedo contra os latifundiários e os homens da lei, supondo que naquele tempo houvesse diferença entre uns e outros. 

A reportagem é de Nello Scavo e publicada por Tierras de América, 16-08-2015. A tradução é de André Langer.


Nascido na Espanha em 1935, quando terminou os estudos de jesuíta foi enviado ao Paraguai, onde começou a organizar os camponeses em cooperativas. Até o dia 05 de maio de 1972. “Um dia me fizeram entrar numa camioneta da polícia e me abandonaram em uma estrada de Clorinda (Argentina)”. Da boca do padre Caravias saíam palavras estranhas. “Democracia” era uma delas. No Paraguai, o general Alfredo Stroessner tomou o poder abolindo a Constituição. Foi o mais longevo dos ditadores latino-americanos, que permaneceu no poder de 15 de agosto de 1954 até o dia 03 de fevereiro de 1989, quando foi destronado pelo general Andrés Rodríguez. Duas gerações de cidadãos cresceram sem saber sequer o que significava liberdade de opinião.

Contou sua história em um dos dois blogs que escreve na Paróquia Cristo Rei, em Assunção. A igreja recorda vagamente as reduções, as missões jesuítas onde os filhos de Santo Inácio de Loyola restituíam direitos e dignidade aos índios ameaçados pelos conquistadores. “Conheço bem o Bergoglio. Encontrei-me com ele repetidas vezes em 1975. Foi o meu superior provincial. Ouviu-me e atendeu-me sempre com carinho. Mas eu era um problema para ele”.

Tudo começou três anos antes, em Assunção. “Foi sequestrado por um comando policial e expulso do país sem papéis na fronteira com a Argentina. A ditadura de Stroessner não poupou calúnias para sujar o meu compromisso com as Ligas Agrárias Cristãs, das quais eu era o assessor nacional”. Durante dois anos permaneceu no Chaco argentino, no extremo norte do país. Ali recomeçou do zero. “Consegui formar um sindicato dos lenhadores, cruelmente explorados pelos contratadores de mão de obra da região”.

Também desta vez não lhe perdoaram. Certa manhã, a polícia, que cumpria ordens da Junta encabeçada por Videla, apresentou-se na paróquia onde Caravias morava. Acusaram-no de repassar armas aos lenhadores. Reviraram toda a igreja, mas não encontraram nada. Então, antes de deixar o local, quebraram tudo. “O superior da Companhia de Jesus ordenou que deixássemos imediatamente a região. Pois na próxima vez a própria polícia poderia deixar uma arma plantada por eles mesmos...”. A única alternativa foi ir para Buenos Aires. “Fui para Buenos Aires, ao Teologado de San Miguel, onde passei seis meses estudando Cristologia”. “Lá comecei a incursionar nas “Villas Miseria” atendendo os paraguaios”.

Era previsível que também ali não pudesse trabalhar tranquilo. “Poucos meses depois, Bergoglio me comunicou que tinha informações de que a Tríplice A (paramilitares que preparavam o caminho para a ditadura) tinha decretado a minha morte”.

Antes de deixar a Argentina, Caravias decidiu despedir-se de seus amigos do Chaco. Não foi uma boa ideia. Foi preso junto com a religiosa que o levava no carro. “A verdade é que estavam muito bem informados sobre as minhas atividades”. Parecia “bem fichado”. Sabiam inclusive a hora e com quem tomou um sorvete nessa mesma tarde. Meteram-no num calabouço. “Quão duro me soou o barulho seco da tranca da porta! Não sabia o que seria de mim. É terrível essa insegurança!”

O cheio da cela, o travesseiro imundo, a sujeira. “Quantas pessoas teriam apoiado sua cabeça nesse travesseiro para estar tão sujo!” Foi uma noite insone, não só pelo calor e pela umidade. Antes de amanhecer, tiraram-no arrastado. Explicaram-lhe que ali tudo acabava. No meio da escuridão chegou a ver as armas que apontavam na sua direção. “Fogo”, gritou um, que devia ser o chefe. Era o rito macabro das simulações de fuzilamento. O primeiro passo para quebrar as defesas psicológica dos detidos.

Na manhã seguinte, tiraram-no novamente do calabouço. Pensou que seguramente iria “desaparecer”. Mas, na realidade, alguém interveio para que o libertassem. O jesuíta espanhol foi entregue a um monsenhor alertado por Bergoglio. Três dias depois estava em um avião rumo a Madri. “Pessimista, desanimado, com um terrível complexo de herege em meu coração, comecei o meu segundo desterro”. Mas quando chegou de volta a Espanha, ardia em desejos de voltar a ser missionário na América do Sul.

Bergoglio deu-lhe indicações precisas sobre a maneira de agir durante as conversas telefônicas e na correspondência. Escolheram a metáfora da meteorologia. Caravias perguntava como estava o clima. Bergoglio lhe respondia que a umidade do ar ainda era muito elevada, ou então que “não lhe convém vir porque faria mal à sua saúde”. Anos depois, quando finalmente houve a redemocratização do país, o padre José Luis pôde voltar. “Aqueles que pensavam como eu eram considerados comunistas. Mas Bergoglio foi um padre de coração nobre e me ajudou a fugir de uma morte certa. E por isso sempre lhe serei grato”.



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