sábado, 10 de dezembro de 2016

De madame a mendiga, as duas vidas de D. Aninha


Anotem o nome dela: Sarah Teófilo é o nome da jornalista que escreveu este primor de artigo que foi publicado no Estadão de 03/12/16.

Faltam adjetivos para qualificar esta brilhante matéria. Uma dolorosa exaltação à humanidade que nos une, tremenda homenagem a D. Aninha, que se alegraria ao lê-la, esteja onde estiver.

Saboreie, então, esta obra-prima do jornalismo brasileiro (sim, ainda se produz isso por aqui):

As duas vidas da dona da rua: de proprietária de R$ 4 mi em imóveis a moradora de rua em Moema

A história de Ana Helena Furman, que de proprietária de R$ 4 milhões em imóveis em Moema se tornou moradora de rua – e acabou assassinada dentro de uma casa que um dia foi dela

Da manhã à noite, Aninha perambulava por um trecho da Avenida Jandira, em Moema, perto da Avenida Ibirapuera. Chegava à lanchonete Premium logo que abria, às 6 horas, e sentava-se ao fundo, antes da chegada de qualquer um – preferia que não notassem que ela não tinha casa, vinha direto da rua. Bebia um chá e comia pão puro, e logo saía bater perna. Passava pelo ponto de táxi da esquina, pelo bar, pela lotérica, cumprimentava quem encontrasse. Aninha era aquela moradora de rua que fica por perto, um rosto familiar, conhecida de todos por ali.

Mas, até 2008, a moradora de rua era a própria dona da Avenida Jandira, no valorizado bairro da zona sul de São Paulo. Ana Helena Furman, 48 anos, detinha dois comércios, metade de uma lanchonete e o sobrado amarelo da esquina – um patrimônio avaliado em R$ 4 milhões. De uns anos para cá, ela decidiu se desfazer dos imóveis. Um a um, vendeu tudo a preço baixo. “Só trazia coisa ruim”, justificou. A drástica decisão só não a impediu de continuar por ali. À noite, invadia o sobrado amarelo que antigamente era seu (abria a porta com uma faca), deitava-se sobre uns lençóis brancos no chão mesmo, perto da porta, e assim permanecia em casa, mesmo que não fosse mais dela.

Uma trajetória que já era inusitada, de proprietária a mendiga da rua – e que foi interrompida por tragédia. No fim de setembro, Aninha foi encontrada morta, sobre os mesmos lençóis onde até há pouco dormia, com a cabeça esmagada a pancadas com um pedaço de madeira. O noticiário contou na época, sem detalhar, que uma “ex-moradora foi assassinada dentro de casa em Moema”. Dizia-se que a ex-proprietária se tornara moradora de rua depois de se desfazer dos imóveis – e mais não se falou, nem da influência de Aninha na Jandira, e nem de como a vizinhança tinha apreço por ela. Ninguém da rua foi convidado a opinar sobre o fato de que, da noite pro dia, perdera a figura querida e ganhara um assassinato.

Todos por ali conheciam a mulher magrinha, de 1,55 metro. Muitos sabiam da trajetória dela, dos tempos de madame (em que mal cumprimentava o pessoal) e de como se tornara moradora de rua (quando, para surpresa do povo, foi se tornando afável). Na Jandira, ela ganhava comida, num bar ou na lanchonete Premium – contentava-se com pouco, e o único resquício dos tempos de bonança era o chá diário, do qual não abria mão. Eduardo Torres, um dos taxistas, franze o cenho como quem sente dor ao falar dela. “Ela foi se transformando, ficando mais legal, e falando mais com o pessoal.”

Aninha herdara os imóveis do pai, Horácio Furman, e naquele tempo vivia dos aluguéis. Mal conversava com o pessoal quando ainda era a “Dona Ana”. “Ela passava sem dar muita bola. Descia para falar com os inquilinos, ou cobrar o aluguel, e deixava o táxi parado, com o velocímetro rodando”, diz o taxista Martinho Nóbrega, há 18 anos no ponto da Jandira. Ela se vestia bem na época, com roupas “chiques”, mesmo sem extravagância. Por três meses, viveu no Hotel Bourbon Convention Ibirapuera. Nessa época, a Jandira era só seu meio de vida. O pessoal da rua sabia só que ela “era sozinha”, que não tinha filhos e não gostava de falar da família. Certa vez, deixou escapar que os Furmans vieram da Rússia no começo do século 20, e se estabeleceram em São Paulo e no Paraná. Depois que ela foi morta, soube-se que era filha única de Edithe e Horácio Furman – uma família de muitas posses, mas de relações conturbadas.

“Quando os Furmans chegaram a Moema, a região não valia quase nada. Nem bonde chegava lá. Compraram terrenos e depois imóveis e esses bens ficaram na família desde então”, diz Horácio Furman, de 81 anos, primo e homônimo do pai de Aninha. “Não sei o que pode ter acontecido com Ana para que decidisse vender tudo. Só sei que os pais dela ficaram pouco tempo juntos, se separaram quando ela era pequena. Depois, o contato da mãe e filha (Ana) foi quase zero com o pai”, complementa Alan Peter Blau, que foi próximo do pai de Ana. Só voltaram a ter contato com a família quando Horácio (o pai) morreu, há pelos menos 20 anos, e tiveram de tratar da herança.

Família era tabu para Aninha – ela não tinha filhos e o pouco que falava era que já haviam brigado muito por causa das posses e que “dinheiro era uma merda, especialmente quando envolve família”, segundo a memória de Helena Fukini, cabeleireira num salão de beleza perto dali. Com uma relação familiar assim, ela mal entrou nos 40, em 2008, e começou a se desfazer do que tinha. Um a um, foi vendendo os imóveis herdados, sempre pelo preço venal. Dizia que estava “cansada de inquilino” e que não queria mais nada, nem mesmo que a imobiliária cuidasse. Chegou a oferecer o sobrado amarelo – o mesmo onde foi assassinada – por R$ 20 mil de entrada para o taxista Eduardo. “O resto você vai pagando devagar. Larga de ser bobo!’, ela dizia”, relembra o taxista. O sobrado acabou vendido por R$ 150 mil – 10% do valor do imóvel hoje, avaliado em R$ 1,5 milhão.

Vendeu, mas, pelo visto, não aceitou bem o fato de que não seria mais dona da Jandira. Mesmo sabendo que o novo proprietário do sobrado havia proibido, ela continuou dormindo ali, geralmente no vão entre uma escada e a porta da rua. Despertava e passava a maior parte do dia nos comércios da rua, unidades que também haviam sido dela. E mantinha o orgulho intacto. Dono de um bar quase na esquina da Ibirapuera com a Jandira – que ainda está no nome de Hilda Furman, tia de Aninha – o comerciante Walter Rocha conta que, certa vez, uma juíza passou pelo local e disse que a ajudaria. Nervosa, Aninha rejeitou tudo o que a mulher falava e disse que ninguém tinha nada a ver com sua vida. “Ela era muito boa de cabeça, não era doida. Mas, ultimamente, não aceitava a vida que levava. Não é fácil ser morador de rua”, diz.

Um dia, o novo dono do que havia sido sua casa soube que Aninha passava as noites no sobrado e chamou a polícia, que a expulsou. Esse parece ter sido o estopim para que os moradores e frequentadores da Jandira a acolhessem e não a largassem mais. Fizeram uma vaquinha para pagar alguns dias de pensão para a mulher. Quanto menos tinha, mais despertava compaixão. “Ela não queria mais saber de valores materiais, dizia que davam dor de cabeça. E ela parecia viver em paz com isso. Só fui descobrir que um dia foi rica depois que morreu”, conta Helena.

Aninha retribuía a ajuda da vizinhança. Na hora do almoço, trabalhava (sem receber salário) como entregadora da lanchonete, levando marmita pra gente da região. No decorrer do dia, fazia as vezes de office-boy: os comerciantes, da lotérica, do bar, do ponto de táxi, confiavam a ela boas quantias (R$ 1mil, R$ 2 mil, até R$ 5 mil) para que depositasse no banco. Com os trocados que recebia por um serviço ou outro comprava suas poucas coisinhas. Não aceitava doações em dinheiro. “Um dia, fui dar R$ 20, mas ela não aceitou. Disse que ‘não queria esmola’”, explica Walter. De resto, Aninha vivia do tratamento dos antes desconhecidos que agora a conheciam bem, desde que se livrou do que tinha e passou a ser valorizada pelo povo da rua.

Os pequenos serviços às pessoas de quem ela dependia agora enchiam os seus dias. Almoçava (pouco) na lanchonete Premium. Comia carne vermelha, mas dizia preferir frango, e evitava gordura. De vez em quando chupava um picolé, ou comia um chocolate – a sobremesa ela fazia questão de pagar. Além dos serviços que fazia para a rua, comprava bolos no supermercado abaixo da Avenida Ibirapuera, cortava em pedaços, os embalava em uma mesa da lanchonete Premium e revendia aos pedaços pela região. Outras vezes fazia sanduíches naturais. Usava touca e luvas para embalar os alimentos, com cuidado. Mais de uma vez os taxistas enganaram a fome com os petiscos da moradora da rua.

Aninha tinha um jeito requintado, elegante, falava inglês. Funcionários da lanchonete contam que ela conversava com os gringos, quando por acaso aparecia algum pela área. Andava sempre limpa, mesmo sem casa e um chuveiro. Simples, com roupas doadas, mas vaidosa. Passava um batom sempre que possível. E se engordava um quilo sequer, o desespero se instaurava. “Teria ajudado mais se soubesse que ela estava numa situação tão difícil, teria chamado ela para tomar banho lá em casa, por exemplo”, lamenta Marlene Pereira, a mais próxima de Aninha na rua – e que, depois do assassinato, passou a depositar flores à porta do sobrado que havia sido da antiga dona de metade da rua. “Mas ela dizia que não queria incomodar com nada. Ela reclamava de dor e cabeça, mas, quando a gente oferecia, não aceitava nenhum remédio”, conta Marlene.

Nos últimos tempos, ela relutava em se afastar de sua rua. A amiga Helena lhe ofereceu emprego no salão de beleza, um salário mínimo para “oficializar” a ajuda que ela já prestava ali. Aninha negou por razões geográficas. “Gosto de ficar na minha área”, justificou – e olhe que o salão fica a menos de 200 metros de onde a moradora da rua costumava circular. Conhecidos diziam que, até os últimos dias, ela continuava a se referir aos imóveis como se ainda fossem dela. Zelava pelos espaços, não gostava que os ambulantes colocassem a muamba em frente à porta do sobrado.

O pessoal da Jandira conta que, um dia, Aninha chegou a impedir uma tentativa de estupro em sua rua. Ela teria evitado que o Pedrão, vendedor de panos de prato do semáforo na esquina com a Ibirapuera, abusasse de uma moça perto dali. Daquele dia em diante, segundo conta a amiga Marlene, ganhara um inimigo. “Ela dizia que ‘aquele homem a odiava’ e de vez em quando se desentendiam.” Ana não gostava, por exemplo, quando Pedrão deixava os produtos no meio da calçada, pelo que lembram os vizinhos.

Mas era um desentendimento mais profundo do que poderiam prever – e foi o que resultou no fato que, há dois meses e meio, chocou aquele pedaço da cidade. Pedro Vieira da Silva, o Pedrão, confessou ter matado Aninha a pancadas enquanto ela dormia sobre os lençóis brancos, no chão do sobrado amarelo. Pedrão não explicou suas motivações a contento, disse apenas que “teve um surto”, então a polícia não descarta que o crime tenha sido encomendado e continua a investigar. Conforme o delegado Nilton Montoro, do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), Pedro mostrou laudos de problemas psiquiátricos e hoje responde o processo em liberdade. O pessoal da rua não se conforma que ele continue andando pelas ruas de Moema (mas sumiu da Jandira).

A história triste da dona da rua que perdeu tudo e acabou assassinada poderia ter um final ainda pior – sem família para reclamar o corpo, Aninha poderia ter se tornado mais uma das 1.585 pessoas não reclamadas, enterradas como indigentes pela Prefeitura de São Paulo de 2014 para cá. Mas uma mobilização capitaneada por Celina da Silva, funcionária da lanchonete Premium, deu à moradora pelo menos a oportunidade de um fim mais digno. Foi à polícia, ao Instituto Médico Legal (IML), e fez o reconhecimento do corpo, o que evitou que Ana fosse parar numa cova rasa, sem identificação. Celina também levantou uma nova vaquinha, desta vez para que Ana tivesse um túmulo próprio, no Cemitério Jardim São Luiz. Levou ainda um batom para passar em Aninha, mas não foi possível encontrar a boca no rosto da mulher.

Do dia do enterro para cá, a amiga Marlene tem cuidado da memória de Aninha, para que continue sendo lembrada na rua onde passou a maior parte da vida – a cada uma ou duas semanas, deposita rosas brancas na porta do sobrado amarelo. Os moradores insistem também para que as investigações sobre a morte dela não parem. A imagem do corpo estirado pra lá da portinha amarela ficou na cabeça dos que vivem e trabalham por ali. Pela fresta, ainda é possível ver os lençóis com que a dona da rua forrava o chão. Ana deixou memórias boas – mas também espanto e horror. As flores deixadas por Marlene vão secar. O sobrado amarelo será ocupado por outro. Um investigador do DHPP teve tanta dificuldade para levantar a história da moradora de rua que, ao chefe, resumiu como “se ela não tivesse existido”. O povo da Jandira, ao acolhê-la em vida e depois ao impedir que Ana Helena Furman tivesse seu fim como indigente, conseguiu provar o contrário.



Um comentário:

  1. Me entristece demais uma história como essa, uma alma pura e totalmente desligado a bens materiais. Até onde chega a maldade do homem...

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