Em pouco tempo o dia se tornara noite. A chuva forte castigava a cidade, e juntamente com o barulho dos automóveis, abafava os pequenos sons produzidos ali, naquele momento. Havia um bom tempo que aquela cidade não recebia uma chuva tão forte, havia tempo que seus cidadãos não paravam para pensar sobre a força da natureza. Agora, eram obrigados, pois tudo que tinha vida naquela cidade poluída e fria, se escondia. Enquanto isto, a água limpava seus becos imundos, cancelava compromissos, aumentava aflições.
Nestas horas, pequenas coberturas se tornavam pequenos oásis às avessas. Não muito longe, em uma rua pouco movimentada, havia um destes. Ali, se encontrava um mendigo, que por não ter nem como se cobrir, estava encharcado. Estava completamente sozinho no momento, para não falar de sua fome, o que tornava sua situação mais desesperadora. Não é fácil ser mendigo em cidade grande. Principalmente um adulto. As pessoas costumam achar que mendigar é uma opção. Algumas, vendo seu estado lastimável, acreditam que ele antes de tudo é um bêbado. Mesmo que fosse, cinco reais para tomar sua pinga não chega aos cem reais, mínimo que alguns gastariam em uma noitada acompanhada de garrafas de uísque e mulheres. O que nos faz pensar que as pessoas devem acreditar que o mendigo não tem o direito à diversão, ou que mendigos devem prestar contas do dinheiro que recebem como doação, enquanto os próprios cidadãos não prestam contas do que fazem com seu dinheiro para seus patrões, aqueles que pagam seus salários.
Mas o grande problema é que há mesmo mendigos que fazem qualquer coisa com este dinheiro mesmo, até comprar drogas. Há pessoas que se disfarçam de mendigos. Realmente, não é fácil ser mendigo hoje em dia. Antigamente os mendigos eram mais verdadeiramente mendigos. Será que o mundo possui menos mendigos hoje, ou será que descobriram que são mendigos mesmo tendo uma situação melhor? Não se sabe, e isto não importa agora... Aquele mendigo não trabalhava não por preguiça, mas por que é realmente difícil encontrar emprego hoje em dia. Principalmente quando não se tem uma aparência boa, quando não se cheira bem, e quando não se tem nem um lar. Estas coisas custam dinheiro, e ele não tinha isto. Aquele mendigo estava em uma situação não muito boa... Estava encharcado, com frio, com fome, e agora, bastante sozinho. Talvez para fugir um pouco da realidade, ele fechava os olhos, e murmurava algo. Pelo menos ele tinha certa honra, já que alguns buscavam meios mais destrutivos para fugir desta realidade. Mas também é raro que algum mendigo tivesse algum estudo. Ele sabia ler e escrever, sabia falar bem e sabia que alguns meios de fugir desta realidade que parecia mentira não valia a pena.
Naquela hora, passava pela rua um senhor. Estava abrigado por um guarda-chuva, mas não conseguiu continuar por que a chuva tinha ficado mais forte. Resolveu parar na mesma cobertura onde aquele pobre mendigo se abrigara. O homem estava bem vestido, e tinha um ótimo comportamento. Na verdade, aquele homem poderia ser considerado facilmente como um dos maiores filantropos da cidade. Seu amor ao próximo era invejável. Sua cordialidade era insuperável. Seu amor ao próximo era tão grande, que não conseguia ver as pessoas sofrendo à sua volta. Foi por isto que há muitos anos atrás, abandonou suas crenças em um deus. Não conseguia imaginar como qualquer deus poderia deixar pessoas sofrerem. Decidiu que faria tudo o que estivesse à sua disposição para ajudar ao próximo.
E ali estava seu mais novo próximo. Molhado, faminto e com frio. Aquela situação deixou o senhor comovido. Imediatamente retirou seu casaco e o entregou ao mendigo:
- Por favor, meu bom homem, tome isto. Você precisa mais dele do que eu.
- Puxa, muito obrigado.
Enquanto vestia o casaco, meio sem-graça ainda por receber a ajuda daquele homem, chegava outra figura tentando se esconder da chuva. Rapidamente entrou para baixo da cobertura, e ficou em um canto, em silêncio. Parecia estar apressado, pois olhava para o seu relógio, depois olhava para o céu, como se quisesse anular a chuva com uma cara feia. Por fim, o mendigo terminou de vestir o casaco. Logo o senhor puxou assunto:
- E então, está um pouco melhor agora?
- Estou sim, obrigado.
- Olha, tudo o que tenho aqui são 50 reais. Quero que fique com eles. Assim que a chuva passar, você pode comprar alguma coisa para se aquecer, e comer também.
- Puxa, muito obrigado senhor. Nem sei como agradecer. Deus lhe pague.
O senhor hesitou um pouco em continuar. Mas logo continuou:
- Não se preocupe em me agradecer. É o mínimo que eu poderia fazer para ajudar.
- Olha, eu não posso dar nada em troca, mas eu tenho certeza que Deus há de dar muito mais para o senhor.
Ele poderia seguir ignorando o que o mendigo dizia. Ele não era um homem de discutir por pouca coisa. É verdade que já travou muitos debates em sua vida, mas ele não precisava discutir com aquele homem, que ao seu ver, precisava de atenção, não de refutação. Porém, achava importante mencionar seus pontos de vista, para que aquele homem entendesse que há crenças e crenças, e além delas, há a descrença. Um bom cidadão certamente tem consciência da liberdade das pessoas, e queria passar aquilo ao mendigo, como uma lição de vida.
- Bem, meu amigo, eu não acredito em deus. Aceito seus agradecimentos, não precisa se preocupar em retribuir-me.
Aquilo fez com que o mendigo interrompesse os agradecimentos. Passou a segurar o queixo, indicando claramente que estava refletindo no que lhe foi dito. O senhor intimamente tinha ficado feliz, pois obtivera o planejado. O outro homem que estava com eles finalmente olhou para os dois.
- Ah, desculpa, eu não sabia...
- Não tem problema...
O mendigo continuava a pensar sobre o que aconteceu. A curiosidade tomou conta dele, que não resistiu e perguntou:
- Senhor, por que o senhor não acredita em Deus?
- Meu bom homem, você mesmo é um exemplo do motivo pelo qual não acredito em deus. Veja seu estado. O que deus fez por você? Por que ele deixaria que você ficasse neste estado, sem ter o que comer, o que vestir, onde morar... Por que ele permitiu que você vivesse sem sua dignidade como ser humano, já que você é uma criatura dele, e ele deveria te amar? Sabe, eu não podia acreditar que um deus bondoso como pregam por aí, pudesse permitir tamanho sofrimento de pessoas como você. Deixei de acreditar em deus por isto. E agora, sou eu mesmo que tento ajudar as pessoas que encontro nesta situação. Não espero que deuses resolvam isto por mim.
Isto chamou a atenção do outro homem que estava com eles. Logo ele se aproximou, dizendo:
- A paz do Senhor para todos.
Os dois homens olharam para ele.
- Não pude deixar de ouvir a conversa dos dois. Eu sou bispo de uma pequena igreja aqui perto, e estava indo para lá quando fui pego pela chuva. Meu carro acabou parando por causa da água. Fiquei com medo de ficar lá dentro e alguma enchente o levar, por isto vim para cá. Bem, se estão falando de Deus e sobre as enfermidades, gostaria de conversar com vocês também. É um assunto que muito me interessa.
O senhor não estava disposto a discutir naquela hora... Muito menos com bispos de pequenas igrejas. Eles costumam ser inflexíveis, quando não dispostos ao ridículo.
- Não estamos exatamente conversando sobre algo, pelo menos não ainda.
- Bem, mas eu escutei você dizer que Deus não poderia permitir que tais pessoas sofressem, e ainda assim amá-las.
- Sim, foi o que eu disse.
- Bem, acho que a primeira coisa que eu deveria deixar claro é que todos os seres humanos possuem livre-arbítrio. Não só os seres humanos: seres angelicais também. Foi por isto que alguns anjos deixaram de servir ao Senhor, e passaram a agir contra ele. Estes são os demônios. Infelizmente eles querem nos prejudicar de todas as formas, por isto pessoas como este senhor aqui sofrem. São os encostos, e eles só abandonam a vida de uma pessoa em um ritual de libertação espiritual. Nossa igreja costuma ajudar muitas pessoas como ele, que entram com enfermidades espirituais graves, e saem de lá curadas. Hoje são pessoas muito prósperas, e dão seu testemunho de que Deus está cumprindo suas promessas.
- Ah, entendi... E prosperidade é sinônimo de bênçãos?
- Sim, claro. Ou você acha que o sofrimento destas pessoas é obra de Deus? Está claro que quem está agindo neste homem é Satanás.
- Então este homem aqui não é abençoado?
- Provavelmente não. O que não o impede de ser curado.
- Mas por que ele simplesmente não é abençoado? Por que deus tem que limitar estas bênçãos?
- Ora, por que a pessoa tem que querer. Isto é liberdade. E quando ela quiser, estamos de portas abertas. Além disto, se a pessoa é dizimista, ela pode exigir que Deus cumpra suas promessas. Pois quando pagamos o dízimo a Deus, Ele fica na obrigação de cumprir Sua Palavra.
O senhor depois de raciocinar um pouco, respondeu então.
- Acho que estou te entendendo. Basicamente, você está me dizendo que seu deus só age por contrato, é isto? Você vai lá, paga o devido valor, então deus resolve te ajudar...
- Bem, não é exatamente desta forma...
- Ora, foi o que eu entendi. O engraçado disto tudo é que enquanto seu deus é obrigado a fazer o que você quiser, o diabo está livre para agir, atentando todo mundo. Aliás, ele tem muito tempo livre, não é? Ele não tem coisa melhor para fazer do que espumar pela boca, se debater e xingar a mãe do pastor não?
- Puxa, seu entendimento é lamentável. Para sua sorte, você deve ser uma pessoa que confia muito na força de seu trabalho. Por isto pode gozar de uma boa situação, mesmo sem Deus no coração...
A discussão se tornava cada vez mais intensa, enquanto o mendigo só observava. Pensava bastante sobre a situação que estava passando, e depois de algum tempo, começou a sorrir. O sorriso era tão sincero, que sua felicidade se destacou mais que a discussão que estava sendo travada ali. Por isto mesmo, os dois perceberam e por um momento deixaram de discutir. O senhor resolveu perguntar ao mendigo:
- Senhor, o que houve? Por que a alegria?
- Bem, eu estava pensando aqui... Senhor bispo, antes de tudo, gostaria de agradecer o senhor por tentar defender Deus. Talvez Ele nem precise, já que ele é o Todo-poderoso, além de saber até que teríamos esta discussão hoje. Se Ele deixa pessoas pensarem como este senhor aqui, é por que Ele já possui uma resposta na ponta da língua para eles. Ele com certeza é mais sábio que nós dois. E se isto for verdade, então não precisamos nem falar nada. Ele é melhor defensor que qualquer um de nós.
O bispo ficou calado, hesitante. O mendigo continuou...
- Sobre eu ser ou não abençoado, eu podia pensar qualquer coisa disto. Mas nada me tira da cabeça que tudo isto é inveja. Inveja por que nosso Senhor Jesus Cristo não veio ao nosso mundo como um bispo, mas veio como um pobre. Ele nasceu em uma manjedoura, por que não tinha lugar para ele e seus pais na estalagem. E quando foi adulto, era como eu, pois não tinha sequer lugar para reclinar a cabeça. Eu não acho que Nosso Senhor tinha encosto, ou não era abençoado, mesmo por que era Ele quem abençoava as pessoas, Ele quem expulsava demônios. Mas eu entendo, deve incomodar muito isto mesmo. Incomoda o fato que o Filho de Deus escolheu ser igual a mim, não igual às pessoas abençoadas na sua igreja. Talvez por isto eu já ouvi quando mendigava perto de suas igrejas, as mais variadas formas de se esconder a pobreza de Jesus. E pra falar a verdade, eu nunca ouvi falar que algum apóstolo de Cristo tenha morrido rico.
O bispo, ficou sem reação. Já o senhor do lado deles, sorria sarcasticamente... O mendigo, virou-se para este e continuou...
- Senhor, eu tenho que te devolver isto.
Pegou os 50 reais, e os devolveu junto com o casaco. O senhor então se assustou.
- Meu amigo, por que está me devolvendo isto. São para você. Não vai aceitar só por que sou ateu?
- Não, não é isto.
- Então? Por quê não fica com ele?
- Olha, senhor... O senhor me deu isto, por que achou que eu estava sofrendo. De fato, justamente quando o senhor chegou, eu perguntava a Deus se merecia tudo aquilo. Se merecia o frio, a fome... Quando eu perguntei ao senhor por quê o senhor não acreditava em Deus, e o senhor respondeu, eu comecei a pensar... Só os mendigos que sofrem? Só eu sou o exemplo de sofrimento? Então percebi que o senhor só poderia dizer que eu estava sofrendo, se acreditasse que o senhor não estava sofrendo. No fim das contas, o senhor me vê da mesma forma que o bispo.
- Mas eu não me considerei melhor que você. Eu ofereci ajuda, por que estou preocupado com você.
- E o bispo disse que a igreja dele está com as portas abertas a todos, oferecendo ajuda que julgam necessária a todos que precisam. Mudou apenas a forma de ajudar e o tipo de ajuda, não é? Agora, é muito fácil um desdenhar do tipo de ajuda que o outro oferece. Se o senhor achasse que a ajuda espiritual do bispo é a melhor ajuda, o senhor poderia ser bispo. Se ele achasse que a ajuda filantrópica fosse a melhor, ele poderia ser ateu.
O homem ficou calado.
- Quando pedi ajuda a Deus, pedi de coração. Talvez agora eu tenha uma resposta... Se me julgam pelos trapos que visto, com justiça me verão como um mendigo. Mas se não podem distinguir meus tesouros, como poderiam me chamar de rei?
Os dois se entreolharam.
- Tesouros?
- Sim, tesouros. A verdade mais sagrada é que ninguém neste mundo ficará eternamente com riquezas estas de metal e papel. Isto já poderia ser usado para provar que estas não são riquezas reais.
- Então, o que é seu tesouro? – Perguntou o bispo.
- Senhores, – disse levantando – muita gente por aí não se contenta apenas com um prato de arroz e feijão. Muita gente fica enjoada de comer a mesma coisa todo dia. Muita gente não consegue comer em determinado nível de restaurante. Muita gente não consegue comer certos tipos de comida. Eu não sou assim, meus amigos. Eu realmente passo fome, mas eu sei apreciar um simples pedaço de pão. Um prato de arroz e feijão nem precisa ter a mistura, para me dar grandes alegrias. Como em qualquer lugar, e aprecio qualquer companhia. Eu sei o valor real da comida.
Deu uma pausa e continuou.
- Da mesma forma, posso dizer com toda a certeza do mundo, que eu tenho maior facilidade em dizer se aqueles que se aproximam de mim são sinceros. Seja para me ajudar, seja para me criticar. Ninguém precisa fingir para mim, pois eu não tenho nada para lhes oferecer. Eles podem ter raiva, podem ter compaixão, eu geralmente posso dizer como eles se sentem. Vocês podem dizer isto? Podem dizer quem são seus verdadeiros amigos? Podem dizer quem é sincero com vocês? Talvez, mas eu tenho mais facilidade que vocês. Por que as pessoas que eu encontro, e que me oferecem comida, são as minhas melhores amigas. Eu tenho toda a certeza que elas se preocupam comigo, que elas só desejam o meu bem. Quando elas conversam comigo, elas conversam com a verdadeira intenção de me ajudar, e não de fingir que são minhas amigas, para depois me prejudicar em algo.
Mais uma pausa.
- Tenho doenças, tenho frio, tenho fome e às vezes me sinto sozinho. Mas de tudo isto consigo entender mais e mais, o valor da vida, da amizade, dos bens, melhor do que quando eu tinha dinheiro. Então, enquanto há ricaços por aí, esbanjando dinheiro para conseguir achar alguma coisa que o entretenha, eu me distraio com as coisas mais simples. Até as coisas mais pequenas são capazes de me dar alegrias. Os meus sonhos são os mais reais, pois geralmente são os mais simples. A minha vida é a mais valiosa, por que só tenho ela. Infelizmente, eu tive que perder tudo para entender isto.
Então, concluindo, disse o mendigo:
- É por isto que sou tão rico. Porque hoje encontrei a mim mesmo. Porque percebi significado nas mínimas coisas. Tudo me alegra, por que fui redimido. Sofremos? Sim, mas as melhores coisas são as que custam mais caro.
Deixou os dois parados na cobertura, enquanto corria pela chuva, de braços abertos, pulando de alegria, como jamais se viu antes. Aquela chuva que era dele também.