quarta-feira, 2 de setembro de 2009

As crônicas de Marvin - 15

Está com sede? Quer água?

9 de setembro de 2051, 19:00


Depois de muitos dias de ócio, era tempo de fazer alguma coisa responsável. Bem, pelo menos para mim aquilo não despertava tanta responsabilidade assim, mas eu tinha que continuar levando o plano adiante. Pelo menos eu teria a chance de fazer um enorme bem naquele dia.
E que dia... Tudo parecia misteriosamente mais alegre. A seca dava seus últimos suspiros, e a cidade empoeirada agradecia. Mas nada se comparava com o sentimento de ser querido por alguém.
O salão do Reino já estava cheio. Pessoas de diversas partes vieram para presenciar o discurso inédito de Estêvão. Eu já estava prevendo alguma coisa estranha durante esta reunião. Mas antes de iniciá-la, eu tinha que proceder conforme o plano. Eu tinha que checar se tudo iria correr bem. Afinal de contas, não havia participado de uma perseguição de motos à toa. Assim, antes de entrar, fiz questão de conversar com aquela mulher...
- Posso confiar em você? – disse a ela.
- Sim, claro... Seu segredo está bem guardado.
- Muito bem. Eles não podem saber que estou manipulando a Torre... Se queremos acabar com ela, teremos primeiro que convencer seus membros que tudo que ela pregou sobre si mesma é errado.
- Tudo bem, eu entendo... Mas é preciso mesmo mentir para eles?
Por um instante, observei sua fisionomia. Ela parecia muito preocupada, como se travasse uma verdadeira batalha moral.
- Elizabete... eu sei o que você está pensando... e sei que você deve estar considerando, como as TJs, que a mentira seja totalmente imoral. De fato, eu concordo plenamente com isto... Mentir nunca foi bom. É por isto que é sempre uma escolha complicada... Mas antes de analisar apenas a mentira, por que não vemos também as intenções? Estamos mentindo para prejudicar ou para ajudar?
- Eu não sei... mas do ponto de vista deles, nós os estamos prejudicando...
- Sim, vendo por este lado, sim. Mas mesmo que estivéssemos prejudicando, em qual das duas escolhas estaríamos fazendo maior mal? É melhor deixar uma pessoa sofrendo as angústias da solidão até que ela deseje a própria morte, ou enganar todos sobre suas convicções?
- Humm... talvez enganar todos...
- Olha, infelizmente nem sempre temos as melhores alternativas para escolher... Ainda mais em um mundo onde há sempre alguma coisa errada para ser corrigida... Não vivemos em um mundo ideal e muitas vezes o fato de não vivermos em um mundo ideal nos impede de tomar escolhas ideais. Isto porque as nossas escolhas ideais acabam trazendo um mal bem maior do que outras escolhas que reputamos como imorais, inaceitáveis... É difícil, eu sei. O fato é que um bom juiz, alguém que possa julgar nossos atos com justiça, deveria ser alguém que tenha acesso aos nossos pensamentos mais íntimos, que possa de fato dizer nossas reais intenções. Tudo que podemos é julgar as aparências, e a mentalidade de tomar estas aparências como a única coisa a ser julgada é que gera fariseus, nazistas ou preconceituosos. Mas nós conhecemos nossas intenções. Nós podemos saber que elas são boas e por isto podemos ter a mente tranquila. Ter a mente tranquila porque embora estejamos fazendo algo que não seja bom à primeira vista, estamos buscando um final que seja o melhor possível...
Assim ela voltou a sorrir, concordando em parte com o que eu disse... Eu também não poderia exigir que ela concordasse completamente comigo. Mas já estava contente por tê-la alegrado.
- Muito bem, Elizabete... Vamos... Eu te anuncio, e você fará o que combinamos antes, certo?
- Está bem... Marvin?
- Sim?
- Não pude deixar de notar... Você de repente me falou de juiz...
Sorri levemente para ela...
- Eu não sei o que dizer... Às vezes sou mais religioso mesmo... Mas não sei te dizer o que sou.
Acompanhei-a até perto do salão. Alguns dos moços que ficavam de fora para olhar os carros, ou cuidar das pessoas que chegavam durante o discurso nos olhavam meio apreensivos. Em certo ponto, deixei a Elizabete e me dirigi ao púlpito. O irmão Osvaldo então anunciou:
- Irmãos, hoje antes do discurso de nosso irmão Estêvão, teremos um pronunciamento do irmão Marvin.
Assim, subi até a frente. Cumprimentei o irmão e me aproximei do microfone. Logo algum jovem se aproximou, para ajustar a altura dele. Todos me olhavam atentamente. Amanda estava lá no fundo, e rapidamente trocamos olhares. Tudo em mais alto sigilo.
- Irmãos, boa noite.
- Boa noite. – disseram em coro.
- Bem, depois de algumas visitas às casas dos irmãos, eu fiquei comovido com a situação de uma irmã. Por isto resolvi ajudá-la. Devo confessar que não foi uma tarefa muito simples.
Todos ficaram mais curiosos.
- Irmã Ana Clara?
Ela, no meio do salão, me olhava assustada, tentando entender o que se passava.
- Sim? – dizia ela, se levantando.
Um jovem corria com outro microfone para o lado dela, enquanto eu continuava.
- Irmã, se não me engano, sua filha abandonou a organização há três anos, não é mesmo?
- Isto mesmo... – dizia ela triste, acabando de pegar o microfone.
- Bem, eu fui à casa dela, para conversar.
Então todos ficaram surpresos.
- Você foi à casa da minha filha?
- Sim. E conversei com ela sobre várias coisas. E nossa conversa foi tão produtiva que ela resolveu voltar para a organização. Por isto estou aqui anunciando a volta de sua filha Elizabete, que está na porta do salão...
Evitei cuidadosamente a palavra arrependimento. De fato, depois de nossa conversa ela resolveu voltar para a organização, não por arrependimento, mas por amor à sua mãe. Uma conversa que eu teria que ter a sós com ela. Não poderia me dar ao luxo de espiões me bisbilhotanto enquanto revelava todo meu plano para Elizabete. No fim, tudo valeu a pena. Aquela senhora tristonha já não se cabia de felicidade. Faltavam-lhe as palavras, e de fato eram desnecessárias ali. E muito embora a grande maioria das pessoas ali presente não desse a mínima para aquela senhora, todos se comoveram diante daquele abraço, do choro de saudade. A felicidade é contagiosa.
Enquanto eu descia do púlpito, Estêvão subia. Ele não pôde evitar o comentário.
- Ei, ótimo trabalho.
- Muito obrigado. – respondi com um sorriso.
Mesmo que eu não controlasse a Torre de Vigia, eu saberia que tal ato sairia todo ano em uma Sentinela. Ajuda a excitar os ânimos de todos. Fui caminhando até o fundo, onde me sentei ao lado de Amanda.
- Foi incrível o que você fez... – disse ela, sem me olhar.
- Ah, obrigado. – respondi da mesma forma.
E agora, eu ficava me imaginando que tipo de discurso faria o Estêvão. Conhecendo a peça, eu imaginava que não seria boa coisa. Ele fez questão de não comentar qual seria o tema do discurso nem mesmo comigo. Assim, o irmão Osvaldo tomou o microfone e anunciou:
- Irmãos, aproveitando o clima de alegria, vamos agora escutar um discurso bíblico feito pelo irmão Estêvão. O título será revelado por ele.
Assim, o irmão Osvaldo desceu do púlpito e foi ao seu lugar, enquanto o Estêvão tomava o microfone. Aguardou um pouquinho enquanto um jovem ajustava a altura do microfone. A ansiedade tomava conta de mim... O que ele iria aprontar?
- Muito bem, irmãs e irmãos. Desejo a todos uma boa noite. Gostaria agora de iniciar o discurso público entitulado, “Água encanada, é para os cristãos?”.
- Quê????????? – exclamei imediatamente, com a surpresa.
Todos me olharam no mesmo instante, como se eu tivesse dito o que todo mundo queria dizer...
- Ahhh, puxa, que ótimo tema!!! – exclamei com um sorriso amarelo.
Mas que raios de discurso o Estêvão queria fazer? Ele ficou louco? Então Estêvão retomou seu discurso...
- Irmãos, é notório que vivemos nos últimos dias deste atual sistema de coisas. Por isto mesmo, devemos sempre nos examinar, para sabermos se caminhamos ainda na fé. O mundo está sempre tentando impor seus costumes a nós cristãos. Devemos agradecer a Jeová Deus por estar sempre nos orientando através de sua Organização na Terra, o Escravo Fiel e Discreto.
Ele deu um breve intervalo aí, para dar mais um suspense... Uma introdução genérica, eu diria.
- Bem, hoje decidi alertar os irmãos sobre mais um ponto que devemos prestar bastante atenção. Este diz respeito à toda infra-estrutura que o mundo nos oferece.
Infra-estrutura?
- Gostaria de chamar a atenção para um dos luxos que a modernidade nos oferece, e que tem acarretado muitos danos ao homem: a água encanada.
Mas o que ele está falando?? Pirou mesmo.
- Será que os homens fiéis usavam água encanada? Vamos verificar isto na palavra de Deus, a Bíblia...
Estou começando a entender agora o que Estêvão quer fazer. Ele quer se aproveitar da extrema falta de capacidade de analisar um fato dentro de seu contexto histórico, que as testemunhas de Jeová possuem. Sim, de fato elas cometem sérios anacronismos sem nem mesmo ficarem envergonhadas...
- Vamos abrir a Bíblia em Gênesis, capítulo 26, versículo 18.
Logo se ouvia o barulhinho de folhas virando. Quando este estava bem menor, Estêvão continuou:
- O texto diz: “E Isaque passou a cavar novamente os poços de água que tinham cavado nos dias de Abraão, seu pai, mas que os filisteus haviam tapado depois da morte de Abraão; e voltou a dar-lhes por nomes os nomes que seu pai lhes dera.”
Então Estêvão fechou o livro e continuou...
- Como os irmãos podem ver, antigamente se usava poços, e não água encanada ou trazida por aquedutos. É interessante notar que o uso de aquedutos era muito difundido entre os pagãos, alcançando seu maior desenvolvimento entre os romanos, povo que não só cultuava toda sorte de deuses, mas também perseguiram por muito tempo os cristãos. Finalmente quando um imperador romano se tornou cristão, Constantino, ele pôde introduzir vários costumes pagãos. Inclusive o uso de água encanada.
Podia-se ver a cara de surpresa de todos os irmãos no salão. Mas também, o pobre do Constantino já levou culpa de mais coisas do que o próprio diabo. Era só falar no nome dele, e todo mundo passava a valorizar mais o discurso.
- Até os dias de hoje, pode-se ver o fascínio pelos aquedutos romanos. Falando sobre a cidade de Segóvia, a famosa enciclopédia chamada “Desciclopédia” trata do tema dos aquedutos, com as seguintes palavras: “O Aqueduto de Segóvia é praticamente a única coisa conhecida pelos próprios moradores dentro da cidade”. Esta enciclopédia ainda completa, dizendo: “Mas como sem ele Segóvia se torna um lugar inútil, ele continua existindo”. Como vocês podem ver, a influência do aqueduto é tão grande, que chega a transformar uma cidade inteira, que se vê inutilizada sem o tal aqueduto. É um grande desrespeito ao que diz as Escrituras em Deuteronômio capítulo 6, versículo 5: “E tens de amar a Jeová, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de toda a tua força vital. 6 E estas palavras que hoje te ordeno têm de estar sobre o teu coração”.
Putz... Ele pegou o jeito jeovista de fazer discursos direitinho... O pior de tudo é que ninguém desconfiou de nada ainda...
- Irmãos, o uso de aquedutos não era praticado nem mesmo nos tempos de Jesus. Pois o que podemos ler? Vamos abrir nossas Bíblias no evangelho de João, capítulo 4, versículo 6.
Mais uma vez o som das folhas. Quando este diminuiu, Estêvão continuou.
- O texto diz: “De fato, ali se achava a fonte de Jacó. Ora, Jesus, cansado da jornada, estava sentado junto à fonte, assim como estava. Era cerca da sexta hora”.
Esperou então os irmãos voltarem suas atenções para ele.
- Como vocês podem ver, Jesus aproveitou a ocasião de estar em uma fonte, para evangelizar. Imaginem vocês quantas pessoas deixam de ser evangelizadas de forma igual hoje, depois da invenção romana?
Era um raciocínio meio doido, mas ninguém fez nenhuma objeção... Afinal ele era um “profeta”...
- Mas irmãos, não vamos nos limitar a este texto. Por favor, vamos ler o texto de Gênesis capítulo 24, versículos 13 e 14...
Mais uma vez o barulhinho de folhas.
- O texto diz: “Eis que me acho de pé junto a uma fonte de água e vêm saindo as filhas dos homens da cidade para tirar água. O que tem de acontecer é que a moça a quem eu disser: ‘Por favor, inclina o teu cântaro para que eu possa beber’, e que deveras disser: ‘Bebe, e darei de beber também aos teus camelos’, esta é a que tens de determinar ao teu servo, a Isaque; e deste modo deixa-me saber que usaste de amor leal para com o meu amo”. Agora, irmãos, imaginem se naquela época houvesse apenas aquedutos. Aquele pobre escravo morreria procurando uma esposa para Isaque, e não encontraria jamais!! Com isto a promessa feita por Jeová não se cumpriria. Como o povo de Deus seria prejudicado com isto!
Todos olharam mais uma vez, assustados. O que seria deles agora?
- Então, irmãos, acredito que o uso de água encanada nos dias atuais nada mais é do que um costume bárbaro habilmente introduzido por Satanás, o diabo, para nos fazer cada vez mais distantes uns dos outros. Jesus mesmo disse em João, capítulo 17, versículos 20 e 21 que “Faço solicitação, não somente a respeito destes, mas também a respeito daqueles que depositam fé em mim por intermédio da palavra deles; fim de que todos sejam um, assim como tu, Pai, estás em união comigo e eu estou em união contigo, para que eles também estejam em união conosco, a fim de que o mundo acredite que me enviaste”. Se não estamos unidos, como o mundo acreditará nisto?
Eu via mais rostos assustados ainda...
- Irmãos, depois de todas as informações dadas aqui, acredito que seja questão da consciência de cada um adotar o proceder correto. Boa noite.
Puxa vida, esta história de consciência mata qualquer um de raiva...
Despedindo-se então, Estêvão desceu da tribuna, enquanto o irmão Osvaldo se dirigia ao microfone. Dava para ver ele engolindo seco, ansiando por água de poço, antes de informar o próximo evento.
- Irmãos, passemos agora para o estudo da Sentinela...
O estudo foi normal como qualquer outro estudo da Sentinela... O discurso foi estranho, eu diria. E certamente foi sarcástico, bem no estilo do Estêvão. Ele parece ser o tipo de pessoa que não mede esforços para fazer alguma coisa.
No fim da reunião, o Estêvão veio me chamar em um canto. Achei aquilo estranho, mesmo assim fui para lá.
- Marvin, alguma coisa errada está acontecendo...
- O que houve, Estêvão?
- Acaba de chegar uma carta de Betel...
- Uma carta de Betel?
Me lembrei então que ali havia algo muito suspeito acontecendo...
- Mas o que diz esta carta?
- Não sei ainda, mas o Osvaldo vai ler agora lá na frente.
De fato, o irmão Osvaldo já estava lá na frente, com a carta nas mãos. Olhávamos atentamente para ele, enquanto ele anunciava:
- Irmãos, gostaria agora de anunciar a leitura de uma carta de Betel, enviada para nós. A carta diz: “Caros irmãos, como é de conhecimento de todos, há algum tempo lançamos uma ordem para localizar e comunicar aos anciãos sobre qualquer pessoa que tenha esboçado dúvida sobre o ensino do Escravo acerca de Jesus Cristo. Aqueles que tivessem alguma dúvida sobre o assunto, deveria ser sabiamente repreendido. Achamos por bem mudarmos a forma de repreensão, para demonstrar maior amor com os irmãos novos na fé. Por este motivo, não deverão mais ser desassociados os irmãos que apresentarem tais dúvidas, mas que seus privilégios sejam retirados, e novos estudos sejam conduzidos a eles.”
Assim muitos irmãos ficaram felizes com a notícia, alguns não gostaram muito.
- Você ouviu isto, Marvin?
- Sim, claro!!!
- E por que você fez isto?
- Ei, eu não fiz nada... Como é que eu anularia meu próprio plano?? Tem uma coisa muito errada nesta história!
- Claro que tem... E é melhor descobrirmos logo...
Eu tinha desconfiado de Estêvão, mas agora ele me parecia muito sincero...
- O negócio é o seguinte... Há algo de errado acontecendo em Betel. E diante da situação, acho que seja melhor a gente fazer uma visita àquele lugar imediatamente.
- É... Eu também concordo...

Ponto de vista alternativo, 10 de setembro de 2051, 00:00

Em uma sala escura, em algum lugar da cidade, alguns homens se encontravam mais uma vez. Desta vez não parecia estarem todos ali, já que a reunião havia sido convocada de última hora.
- Senhores, nosso encontro aqui hoje não será muito demorado. Na verdade, tenho apenas um anúncio a declarar.
- Hummm, o que seria, Moshe? Foi hoje que nossa carta foi lida em todas as congregações, não é?
- Sim, mas não é isto que gostaria de comentar com vocês... Gostaria de dizer que o jovem Marvin está decidido a nos fazer uma visita...
- Quer dizer que ele está vindo?
- Sim.
- Você tem certeza? – disse outro vulto.
- Claro... Nosso espião ouviu ele dizer isto... Em breve estaremos cara a cara... Não esperava que ele viesse aqui, mas já que ele se dispôs... Melhor para nós...
- Finalmente poderemos descobrir como ele faz aquilo... – disse um dos vultos.
- Sim. Portanto estejam preparados...
- Certo, Moshe. – disseram juntos.
- Mais uma coisa... Noah, acredito que você seja a melhor pessoa para recebê-lo. Você faria as honras??
Em um canto da sala, aquela figura enigmática parecia contente com isto.
- Mas é claro, Moshe. Tenho certeza que ele me contará tudo...

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