terça-feira, 30 de junho de 2015

Padre de Itaquera reza contra "ofensiva homofóbica"


A notícia foi publicada no Estadão de 25/06/15:

Igreja tem prece contra ‘ofensiva homofóbica’

ISABELA PALHARES

Trecho estava na Oração dos Fiéis da missa do domingo em Itaquera, na zona leste; pároco diz que segue exemplo do papa

SÃO PAULO - Após distribuir folhetos em que pede igualdade de direitos e o fim da criminalização sexual, o pároco Paulo Sérgio Bezerra disse que o papa Francisco “soltou a língua” dos padres e os autorizou a falar sobre temas considerados polêmicos, como orientação sexual. Os folhetos, feitos especialmente para a paróquia, foram distribuídos na missa de domingo na Igreja Nossa Senhora do Carmo, em Itaquera, zona leste da capital.

Na Oração dos Fiéis, há prece para que “a ofensiva homofóbica, fundamentalista e histérica presente no Congresso Nacional seja enfrentada com ousadia e serenidade pelo ascenso das causas libertárias”. Pede ainda que “o diálogo sobre sexualidade leve igrejas cristãs a superar a demonização das relações afetivas” e que “cesse no Brasil a criminalidade sexual”.

Segundo o padre, as preces surgiram de discussão da própria comunidade, após encontros com o tema Provocações da Vida e as Repostas da Fé. “Não sou sozinho, foi a comunidade que assumiu essa posição. Tudo é construído em equipe, acho importante não personalizar essas questões apenas na imagem do padre.”

Coragem. Padre há 35 anos e responsável pela paróquia em Itaquera desde 1982, Bezerra disse que não teme ser punido ou censurado pela Igreja Católica. “São poucos os padres com coragem de tocar nesses assuntos. Sempre fui assim, mas, com esse papa, sinto mais tranquilidade de que não serei punido.”

Ele é conhecido na região por batizar filhos de mães solteiras e de pais em união estável. No ano passado, Bezerra declarou seus candidatos durante a eleição, desobedecendo a determinação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Roberto Francisco Daniel, padre de Bauru excomungado em novembro após defender a união homoafetiva e mudanças na estrutura da Igreja, disse que Bezerra é corajoso por defender esses temas de forma aberta. Para ele, apesar de o papa também ser favorável à tolerância e ao acolhimento dos homossexuais, esse posicionamento não é o do Vaticano. “É uma posição pessoal do papa, que inclusive sofre muita resistência das alas conservadoras da Igreja.”

Para Marianna Chaves, especialista em Direito homoafetivo, a ação de Bezerra contra homofobia é importante para acabar com o estigma das religiões sobre posições intolerantes. “Alguns pastores se apropriaram da Bíblia para reforçar preconceitos, mas não devem representar todos os religiosos.”



segunda-feira, 29 de junho de 2015

Os melhores embaixadores do Brasil nos EUA são os imigrantes

A matéria é da Agência Brasil:

Imigrantes atuam como embaixadores do Brasil nos Estados Unidos

Leandra Felipe

Os imigrantes brasileiros no exterior que formam comunidades passam a representar a cultura e a identidade brasileira na região em que vivem e carregam a identidade dos lugares de onde saíram. Embora o governo brasileiro não tenha dados precisos sobre o número de imigrantes que vivem nos Estados Unidos, o Ministério das Relações Exteriores calcula que existam de 1,3 milhão a 1,4 milhão de brasileiros residentes no país. No Dia do Imigrante, lembrado hoje (25), a Agência Brasil publica uma série de matérias para mostrar um pouco da realidade dos brasileiros nos Estados Unidos.

Na Georgia, por exemplo, a comunidade goiana prega as tradições da região de Goiás. Em Marietta, cidade na região metropolitana de Atlanta, onde vive boa parte dos brasileiros, há vários estabelecimentos comerciais com o nome Goianão. Em uma mesma quadra comercial é possível ver: Goianão Padaria, Goianão Supermercado e Goianão Restaurante.

A pamonha é vendida nos restaurantes brasileiros como Brazilian tamal, nome de uma comida feita com milho, comum no México e em países centro-americanos. Nas redes sociais em Atlanta, a comunidade divulga eventos com “pamonhada” para arrecadar fundos para igrejas e obras sociais.

Na cidade, também há muitas igrejas evangélicas e uma comunidade católica atuante. “As igrejas têm um papel importantíssimo na acolhida aos imigrantes”, avalia o cônsul brasileiro em Atlanta, Hermano Telles Ribeiro.

Em diferentes esferas sociais, os brasileiros se tornam defensores de suas origens e da cultura do seu país. No último sábado (20), a comunidade brasileira católica em Atlanta fez a festa junina na cidade e reuniu brasileiros e estrangeiros.

O norte-americano James Thomaz, 45 anos, mora ao lado da igreja onde a festa foi realizada e foi ao local para comer espetinho. “Eu gosto de como vocês fazem o barbecue [churrasco, em inglês]. Vim ano passado porque vi a festa e voltei para comer de novo”, contou.

A carioca Lucia Moraes Jennings chegou aos Estados Unidos em 1975 para fazer faculdade na Georgia. Ela conta que, na época, eram poucos os brasileiros no estado. Ela se casou com um norte-americano, mas desde e o começo se identificava como brasileira e não abandonou sua identidade.

Em 1987 começou um trabalho para promover a cultura brasileira em Atlanta. “Me vestia de Carmem Miranda e ia fazer palestras em escolas. Mas eu tentava tirar o foco do estereótipo. Não gostava e não gosto quando associam o Brasil somente ao futebol, ao carnaval e à sensualidade da mulher.”

Em 1996, ela resolveu mudar o foco da cultura para a economia. “O Brasil começou a se recuperar economicamente e decidimos trabalhar o aspecto econômico. Com isso, criamos a Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos do Sudeste”, explica Lucia que é executiva da Coca-Cola, empresa que tem sede em Atlanta.

A câmara funciona com voluntários que fazem a ponte entre empresas brasileiras e norte-americanas, identificando parcerias em potencial, abrindo canais de relacionamento e estabelecendo conexões. “Nosso papel é desmistificar e mostrar o potencial brasileiro”, acrescenta.

Lucia diz que nestes 40 anos vivendo nos Estados Unidos não deixou seu “lado brasileiro” morrer, ao contrário, fortaleceu a identidade. “Em parte me sinto embaixadora do Brasil”, diz ela que, neste ano, foi convidada a proferir uma palestra para os imigrantes que recebem o Green Card (visto permanente de imigração) na Suprema Corte. “Para mim foi um grande reconhecimento do meu trabalho e de que levo comigo o exemplo de cidadania brasileira que quero mostrar.”

Do outro lado do mapa, no Nordeste norte-americano, outra brasileira também representa o Brasil, promovendo cidadania. A jornalista e antropóloga Heloísa Galvão, de Ilha Grande, viajou para o país em 1988 para fazer mestrado em Boston e não voltou. Em 1995, ajudou a criar o grupo Mulheres Brasileiras em Boston, uma organização comunitária sem fins lucrativos que presta assistência à comunidade imigrante e também promove a cultura brasileira.

“Nosso primeiro objetivo é informar. Informação gera empoderamento. E se você sabe seus direitos você pode vencer o medo e não se deixar paralisar”, afirma Heloísa, acostumada a lidar com questões migratórias que a comunidade sem documentação enfrenta. Em setembro, o grupo promove o Festival da Independência, considerado um dos maiores festivais independentes de brasileiros nos Estados Unidos.

A cearense Renata Fontenelle, que viajou para os Estados Unidos depois de se casar com um norte-americano, faz questão de reforçar com o filho as tradições brasileiras e o português e levou Fael, de 4 anos para a festa junina de sábado. O garoto, vestido de caipira, fala português fluente graças ao empenho da mãe. “Eu só falo português com ele, coloco filme e desenhos do Brasil e sempre o coloco pra falar com minha família na internet”, diz. “Também cozinho comida brasileira em casa e vou a festas e eventos brasileiros. Ele é americano, mas tem o pezinho lá no Brasil”, acrescenta.



domingo, 28 de junho de 2015

Adolf Eichmann, Hannah Arendt e a banalidade do mal


Quem nos acompanha há bastante tempo já sabe que a filósofa preferida do blog é Hannah Arendt, sobre quem já publicamos vários artigos (clique aqui para lê-los).

Também já tivemos a oportunidade de resenhar seu livro "Eichmann em Jerusalém", um dos textos mais acessados por aqui.

Por isso, recomendamos para sua leitura de domingo mais uma resenha sobre este mesmo livro, que - em essência - não difere muito da que fizemos, mas ambas se complementam nos detalhes. Quem a publicou desta vez foi o IHU:

A problematização do mal no julgamento de Eichmann, segundo Hannah Arendt


“A principal característica do totalitarismo é a de desumanizar, transformar homens em números, em meras engrenagens substituíveis se não renderem o que se espera deles, sejam vítimas ou algozes”, escreve Cristiane Arendt Santos Alves, da equipe do CJCIAS/CEPAT, em síntese elaborada sobre a obra Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, de Hannah Arendt, apresentada na noite do dia 17 de junho, pelo Projeto Abrindo o Livro, nas dependências do Sindicato dos Engenheiros do Paraná, na cidade de Curitiba. 


Eis a síntese.


“Moralmente falando, não é menos errado sentir culpa sem ter feito alguma coisa específica do que sentir-se livre de culpa tendo feito efetivamente alguma coisa”. (Hannah Arendt)

No contexto da Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945), que envolveu setenta e duas nações divididas entre os Aliados e o Eixo, muitos fatos relevantes transformaram a história da humanidade. Tratou-se de uma guerra marcada por fortes ataques aos civis como forma de demonstração de poder, como os ataques com bombas de fósforo, napalm, a bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, e o holocausto que atingiu o povo judeu. Muitos destes ataques aos civis tinham o objetivo de destruir as forças dos países inimigos. Porém, o genocídio que acometeu o povo judeu não tinha nenhuma destas intenções. Ele não anexaria novas terras a nenhum país, não neutralizaria o poderio de fogo de nenhum dos inimigos e mesmo assim foi executado pelos países ligados ao Eixo, coordenados pelo governo alemão com extrema dedicação.

O livro Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, de Hannah Arendt, oferece um relato sobre as condições em que se deu a prisão e os julgamentos de Adolf Eichmann, tenente-coronel da SS (organização paramilitar ligada ao Partido Nazista), que foi responsável pela logística de transportes para a implementação da Solução Final, e as possíveis análises dos resultados deste julgamento.

O livro é uma edição revisada e ampliada a partir da cobertura do processo de Eichmann em Jerusalém, para a revista New Yorker, na qual o relato foi publicado nos meses de fevereiro e março de 1963. Nele Arendt inicia seus relatos a partir do cenário montado em Israel para a realização do julgamento de Adolf Otto Eichmann, desde sua captura em um subúrbio de Buenos Aires, na Argentina, e os métodos nada convencionais utilizados pelo Mossad, o serviço secreto do governo de Israel, que o raptou em 11 de maio de 1960. O julgamento teve início em 11 de abril de 1961, na Corte Distrital, e foi encerrado no dia 29 de maio de 1962, com a leitura da sentença da Corte de Apelação.

A obra é um extenso relato, que descreve o tribunal, com Eichmann em uma cela de vidro, gripado, e os atores envolvidos (juízes, promotores, o advogado de defesa, etc.). Sobre o acusado, faz um denso relato de suas características pessoais, seu comportamento, suas tentativas de ascensão profissional dentro e fora do Partido Nacional Socialista e da SS, demonstrando a forma como ele chegou ao seu cargo no departamento de emigração e transportes, suas tentativas de resolver a questão judaica, através da expulsão deles da Alemanha, e a busca de terras para fundação de um país judeu, onde sonhava em ter um bom cargo.

Em setembro de 1939, com a eclosão da guerra, o governo nazista revela suas reais intenções em relação ao povo judeu. Assim, inicia-se a descrição do envolvimento de Eichmann em cada etapa deste processo.

Fato sobressaliente ocorre em janeiro de 1942, quando a cúpula do partido e os mais altos funcionários públicos alemães se reúnem na Conferência de Wannsee e são acertados os detalhes para viabilizar a Solução Final, que buscava tornar a Europa livre de judeus – judenrein – através dos assassinatos em massa. Os líderes nazistas esperavam receber muitas críticas e acreditavam que precisariam convencer os ministros e funcionários públicos de alto escalão para contribuírem com o plano, mas ocorreu o contrário. Eles aceitaram com muito entusiasmo a ideia, chegando inclusive a disputar entre si as responsabilidades para a execução da Solução Final.

Outro ponto destacado pela autora foi o envolvimento dos Conselhos Judaicos na execução da Solução Final, o capítulo mais sombrio de toda a história. Como os líderes judeus participaram ativamente da destruição de seu povo? Como eles foram levados a tomar atitudes que levaram ao assassinato de 1,1 milhão de judeus? Segundo R. Pendorf (professor da Universidade de Al-Aqsa), citado no livro, “sem a cooperação das vítimas dificilmente uns poucos milhares de burocratas teriam conseguido liquidar centenas de milhares de pessoas”.

Durante o interrogatório da polícia, apresentado no tribunal, Eichamnn declarou que tinha vivido toda a sua vida segundo os princípios morais de Kant, o princípio de que minha vontade deve ser sempre tal que possa se transformar no princípio de leis gerais. Sua defesa alegou que ele simplesmente seguiu ordens de seus superiores, que advinham de Atos de Estado, pelos quais Eichmann não poderia ser responsabilizado. Mas a sequência do julgamento buscou provar o seu envolvimento em cada um dos passos dados para a execução da Solução Final, em cada um dos países envolvidos, com provas documentais e testemunhais. Apontou para o seu conhecimento a respeito da logística de funcionamento dos Centros de Extermínio no Leste, as visitas que realizou a estes locais e suas reações.

Certamente, houve muitos exageros por parte da acusação, ao ponto de colocar Eichmann acima de Heinrich Himmler (comandante militar da SS) e como inspirador de Adolf Hitler, sendo que os documentos mostravam que ele não tinha quase nada a ver com o que acontecia no leste. Sua responsabilidade era providenciar o transporte dos judeus para os campos de trabalhos forçados ou extermínio. Mesmo assim ele não escapou da pena capital.

A defesa de Eichmann teve muitas dificuldades. As provas documentais eram escassas e as testemunhas de defesa não podiam vir a Israel, uma vez que seriam presas, não contavam com auxiliares de defesa como os de acusação. Eichmann foi o auxiliar de seu advogado. Foi acusado de 12 crimes, que demonstravam claramente que sua maior culpa era a de ter sido obediente aos seus superiores, obediência esta louvada como virtude. Segundo a defesa, só os verdadeiros líderes mereciam punição, coisa que Eichmann não era com sua “obediência cadavérica”. Apesar disso, em 15 de dezembro de 1961, a Corte Distrital pronunciou sua sentença de morte. Em março de 1962, iniciam-se os trabalhos na Corte de Apelação, ainda mais visceral que a Corte Distrital, aceitando todas as alegações de que Eichmann nunca recebera ordens superiores. Todas as ordens tomadas provinham de seu julgamento pessoal quanto às questões judaicas. E, em 29 de maio, a Corte de Apelação também pronuncia sua sentença: a pena capital. No mesmo dia o presidente de Israel, Itzak Ben-Zvi, recebe seu pedido de clemência, que é negado. Então, pouco antes da meia-noite, do dia 31 de maio, foi enforcado, cremado e suas cinzas jogadas no Mediterrâneo, fora das águas israelenses.

O livro nos traz uma série de questionamentos em relação à legalidade do julgamento de Jerusalém, as irregularidades e anormalidades que nele ocorreram e acabaram por tornar pequenos os problemas morais, políticos e legais que o julgamento tinha como meta inicial, apresentando o questionamento fundamental: será que o julgamento atingiu o objetivo de fazer justiça? Será que podemos julgar um indivíduo com base em leis retroativas no tribunal dos vitoriosos? Será que o resultado seria diferente se os países do Eixo tivessem vencido a guerra? O rapto foi justificado? Será que uma lei que versa exclusivamente sobre crimes de guerra seria adequada para este caso? As perguntas ainda hoje não foram todas respondidas, ou ainda, as respostas não estão todas certas e nem erradas. Porém, o que diferenciou o julgamento de Jerusalém foi a oportunidade do povo judeu em se defender. Sob certo ponto de vista a justiça foi feita, Eichmann foi acusado, defendido, julgado e punido. Mesmo assim, a humanidade se viu diante de vários novos problemas: o julgamento de Eichmann foi legal? Que castigo seria suficiente para impedir a perpetração de crimes como o genocídio?

A definição de crimes contra a humanidade elaborada em Nuremberg, como atos desprovidos de humanidade, revelou a realidade de que a Solução Final foi um crime sem precedentes, realizada sem nenhum propósito de ganhos de qualquer espécie. Foi uma tentativa de dizimar uma população inteira, realizada por pessoas assustadoramente normais, com uma intenção absolutamente indefinida, em uma conjuntura em que era praticamente impossível distinguir entre o certo e o errado. Nesse contexto, qualquer um poderia estar no lugar de Eichmann, um aluno mediano, em um cargo mediano, querendo se destacar e ser promovido, desempenhando muito bem o seu papel segundo o que era esperado dele e de acordo com a lei vigente, o que de forma alguma o isentaria da sua parcela de culpa. Muito pelo contrário, em se tratando de assuntos políticos, o apoio e a obediência se equivalem.

Mas em todo o caso, o mais inesperado desfecho foi a reação à questão levantada pelo promotor israelense – se o povo judeu podia ou deveria ter se defendido –, uma questão tola e cruel, que acarretou as mais diversas e incríveis reações. Uma delas foram as teorias de “desejo de morte”, das quais a autora foi acusada de deduzir com a elaboração desta obra, na qual, segundo críticos, Arendt conclui que os judeus mataram a si mesmos. Tal interpretação distorce e deturpa a real intenção da obra, que era a de ser um tratado teórico sobre a natureza do mal, de como um homem que não era nenhum gênio, mas um homem comum, focado em obter progressos pessoais, nunca percebeu o que estava fazendo. “Ele não era burro”, simplesmente não refletiu sobre seus atos, e isto é banal, esse distanciamento da realidade, esse desapego moral, isso foi o que se aprendeu em Jerusalém, e isto foi uma lição, não uma explicação, nem uma teoria. A principal característica do totalitarismo é a de desumanizar, transformar homens em números, em meras engrenagens substituíveis se não renderem o que se espera deles, sejam vítimas ou algozes.

O genocídio não era sem precedentes. A história está cheia de exemplos, mas aceitá-lo como algo banal, que simplesmente acontece, abriria precedentes para outros tipos de “limpezas étnico-raciais”. Pois, se na Alemanha da Segunda Guerra se escolheu dizimar uma população por se se tratar de doentes mentais, inválidos, deficientes, homossexuais, ciganos ou judeus, qual seria a próxima motivação? E com relação à desculpa do acusado ter agido como um simples funcionário, isto também não se aplica, pois equivaleria ao criminoso que justifica seus atos nas estatísticas sobre crimes – se eu não o fizesse outro o faria. A justificativa de Ato de Estado também não se aplica, pois um Estado soberano não pode julgar atos de outro Estado soberano, e segundo esta alegação nem mesmo Hitler poderia ter sido acusado, pois esta soberania pressupõe que o Estado está acima das regras às quais os cidadãos estão sujeitos, uma vez que para manter a ordem e o poder, o Estado pode tomar medidas de emergência.

Eichmann agiu dentro dos limites do discernimento dele, sempre guiado por ordens superiores e incapaz de diferenciar o certo do errado, no contexto em que estava inserido. Porém, o que se espera em termos de humanidade é justamente esta característica, de conseguir diferenciar o certo do errado mesmo quando tudo à sua volta lhe diz o contrário.

Com base em tudo o que o livro apresenta, o que fica mais evidente foi a questão levantada pelo promotor Gideon Hausner no questionamento realizado por ele durante o interrogatório das testemunhas: o povo judeu pôde se defender? Por que não se defendeu? E o mesmo aconteceu no julgamento de Eichmann: ele pôde se defender? O povo judeu pela primeira vez pôde levar a julgamento o seu algoz, mas de que forma? As críticas ao governo israelense em relação ao andamento e à conclusão do julgamento foram muitas, assim como as críticas à obra de Arendt. O julgamento estava sendo usado pelas autoridades israelenses para unir a população judia do mundo e consolidar a criação de Israel. Muitas testemunhas puderam, finalmente, falar abertamente dos horrores sofridos nos campos de concentração.

Mas o mal que se esperava encontrar em Eichmann, um mal absoluto, de um conspirador da destruição de um povo, de um facínora nazista, esse mal não foi encontrado. Ele era um burocrata por excelência, preso às suas pequenas atividades, que não refletiu sobre os seus atos, que não teve a capacidade de avaliar as leis e ordens que lhe eram dadas dentro de um contexto humanitário. Aí está a banalidade do mal, na realização de ordens sem se pesar as conseqüências de seus atos, em se tornar mera engrenagem, só mais um, seguindo um curso que nos distancia da nossa humanidade, da nossa capacidade de pensar, valorizando apenas a nossa obediência cega. E quantas vezes essa obediência é tão valorizada como virtude? Para Eichmann, ela foi a razão da pena capital.



sábado, 27 de junho de 2015

Obama canta "Amazing Grace" no funeral de Charleston

O presidente dos Estados Unidos participou ontem, 26 de junho de 2015, da cerimônia fúnebre do pastor Clementa Carlos Pinckney, uma das vítimas do atentado que deixou 9 mortos na Igreja Metodista Episcopal Africana Emanuel de Charleston, Carolina do Sul, de cujo Senado Estadual o pastor Pinckney fazia parte.

Barack Obama fez um longo e emocionante discurso, em que tocou nas feridas ainda abertas do racismo no país, da necessidade de controle de armas e da afronta que representa ver a bandeira confederada (símbolo da escravidão e da Guerra de Secessão que dividiu os EUA no século XIX) tremulando em frente aos edifícios governamentais da Carolina do Sul.

O discurso de Obama mais se pareceu com uma pregação cristã diante de uma plateia maravilhada com seu carisma e sua desenvoltura, tal foi o número de referências bíblicas e doutrinárias, sobretudo sobre a graça de Deus, a que se referiu inúmeras vezes.

A mídia americana não perdeu tempo e já está chamando seu presidente de "Reverendo Obama", principalmente depois que ele encerrou o discurso cantando o hino "Amazing Grace", conforme você pode ver pelo vídeo abaixo.

Quanto termina de cantar o hino, o presidente Obama cita um por um o nome de cada vítima, dizendo que cada uma delas "encontrou a graça de Deus":




sexta-feira, 26 de junho de 2015

Conciliação na Justiça é tão legal assim?


Excelente artigo do Juiz de Direito Dr. Alberto Alonso Muñoz sobre esta estranha febre de que "conciliação é tudo de bom" (que assola o Judiciário), publicado no portal Justificando:

Conciliar é legal… para quem, cara pálida?

Comecemos com uma fábula. Certa vez, o leão invadiu um galinheiro e levou consigo uma dúzia de ovos e seis filhotes recém-nascidos. Desesperada, a galinha tenta reaver sua cria. O leão, claro, resiste e lhe responde que “trate, se quiser, de buscar seus direitos”. Ela contrata o gavião como advogado. Recorrem ao Poder Judiciário, onde encontram a coruja, abarrotada de processos, irritada com mais um processo igual a dezenas de milhares de outros promovidos contra o leão. Desconfia da galinha, que deve estar mesmo a aproveitar-se do processo para se beneficiar.

Às vésperas da audiência, o gavião sugere aceitarem um acordo. Há risco de a coruja julgar o pedido improcedente e ainda condenar a galinha a pagar honorários. Na audiência, a coruja, de péssimo humor em função da constante cobrança por livrar-se de um serviço invencível, pergunta se há proposta de acordo. O leão propõe a devolução de seis ovos e das penas que sobraram. O gavião, interessado em receber imediatamente seus honorários, sugere que a galinha aceite. Aos prantos, ela concorda. O gavião ganha os honorários (dos seis ovos, ficará com dois) e a coruja liquida mais um processo. Quanto ao leão, bem…

Com o incremento do número de processos partir dos anos noventa (salto de cinco para vinte e cinco milhões de processos na justiça brasileira em cerca de dez anos, conforme dados do CNJ), a conciliação (e outros “meios alternativos de solução de controvérsias”) se torna a palavra do momento. Ela “pacificaria o conflito”, permitiria soluções “mais adequadas” do que a via judicial, seria mais célere e livraria o Poder Judiciário de sua excessiva demanda. Nas palavras da ex-ministra Ellen Gracie quando do lançamento dessa campanha pelo CNJ: “Conciliar é legal”.

Pois esse é o discurso ideológico. A característica de qualquer discurso ideológico é que persuade mascarando e distorcendo, ocultando elementos fundamentais da realidade. É assim que o boletim Justiça em Números do CNJ tem apontado anualmente para as reais causas da implosão do Poder Judiciário e para a verdadeira natureza dos conflitos. Sua característica fundamental consiste em envolverem partes em completo desequilíbrio de poder, econômico e processual. É o que explica a existência de “grandes litigantes” (melhor: gigantescos litigados), ocupando o polo passivo de mais de 85% das demandas.

Os números mostram que bancos, prestadoras de serviços (telefonia em primeiro lugar), operadoras de planos de saúde e a Administração Pública são responsáveis pelo maior número de processos. A maior parte dos litígios não consiste, ao contrário do que se diz, em brigas entre vizinhos ou batidas de veículos, como o discurso hegemônico quer fazer crer. Não bastasse, a explosão de litígios, embora se diga ser um fenômeno internacional, não o é. O aumento do número de conflitos, especialmente na Europa, ocorreu duas décadas antes. É muito menor, possui natureza diversa e suas razões, mais diferentes ainda do que aquelas do caso brasileiro, resultado da implantação da gestão social neoliberal entre nós a partir dos anos noventa.

O custo da administração de um processo e o risco da condenação são muito mais lucrativos do que o investimento na qualidade dos serviços prestados, a revisão das cláusulas contratuais abusivas, o cuidado na contratação ou a facilitação da rescisão. É mais vantajosa para a Administração Pública a judicialização do que o pagamento de resíduos de planos econômicos de ilegalidade notoriamente reconhecida pela Jurisprudência. Perceba-se que o ponto crucial é o fator tempo: para a parte mais fraca, o tempo é sempre desfavorável. O tempo do processo está sempre a favor da parte mais poderosa: seja concluindo rapidamente por um acordo, seja delongando o máximo possível. É justamente isso essa ideologia silencia, o que permanece oculto no discurso da conciliação e da responsabilização do demandante pelo excesso de litigiosidade.

Um banco provisiona o valor total de suas derrotas judiciais, repassando-o para a taxa média de juros de suas operações financeiras. A diferença entre a taxa de juros aplicada nas condenações judiciais e aquela praticada na contratação das operações de crédito torna o tempo processual um excelente negócio. Mecanismo semelhante repete-se com a sofrível qualidade dos serviços oferecidos pelas principais prestadores de serviços públicos (e suas correspondentes tarifas), com as reiteradas negativas de cobertura contratual dos planos de saúde e, por fim, com a insistente preferência do próprio Executivo na judicialização.

Captura do Poder Judiciário, eis a palavra. Num quadro como esse, há quem apresente algumas propostas. “Fortalecimento das Agências Reguladoras”: alguém realmente acredita que, diante de um bloco de interesses convergentes tão poderoso, isso realmente é possível? “Aumento do número de juízes”: a solução para os números vergonhosos brasileiros (6,2 por cem mil habitantes em São Paulo, contra 10 em Portugal e 24 na Alemanha) esbarra com as restrições orçamentárias de sempre. “Boa gestão dos Tribunais (especialmente informatização e recursos humanos)”: pois é o próprio CNJ que afirma que já se chegou ao limite do possível e não há como fazer mais com o que se tem.

“Aprovação da dimensão punitiva nas indenizações”: como, diante das poderosíssimas resistências (os projetos encontram-se devidamente engavetados no Senado)? “Reforma do Código de Defesa do Consumidor”: “flexibilização”, ou seja, revogação dos mínimos direitos protetivos, é o que se prende?

Solução? Sejamos realistas: não há. Mas o certo é que o movimento pela conciliação, com seu discurso da “pacificação” e sua crítica à “cultura da judicialização”, revela ser mais um véu ideológico de ocultação da realidade e uma pseudo-solução.

Conciliar é mesmo legal? Em época de administração neoliberal da vida social, é preciso prosseguir com a pergunta: para quem?

Para quem, cara pálida?

Alberto Alonso Muñoz é juiz de direito na Capital de São Paulo, conselheiro da AJD, mestre e doutor em Teoria Geral do Direito pela USP e membro do Conselho Editorial do IBCCrim.



quinta-feira, 25 de junho de 2015

Papa Francisco diz que há casos em que divórcio pode ser "moralmente necessário"


O papa continua provocando calafrios nos setores católicos mais conservadores, e parece que o Vaticano nunca mais será o mesmo depois que Francisco passar por seu trono, segundo informa o Brasil Post:

Papa Francisco diz que separação da família às vezes é 'moralmente necessária'

O papa Francisco considerou hoje (24) que a separação de uma família pode ser "moralmente necessária", como em casos de violência, sem chegar a falar especificamente em divórcio. "Há casos em que a separação é inevitável", declarou o papa durante a audiência geral das quartas-feiras na praça de São Pedro, no Vaticano.
"Algumas vezes, ela [a separação] pode tornar-se mesmo moralmente necessária, quando se trata de proteger o cônjuge mais frágil ou as crianças das feridas mais graves causadas pela intimidação e pela violência, a humilhação e a exploração".
O papa insistiu na necessidade de proteger as crianças. "Apesar da nossa sensibilidade aparentemente evoluída e das nossas análises psicológicas elaboradas, pergunto-me se não estamos anestesiados perante as feridas da alma das crianças", questionou.

"À nossa volta, vemos diversas famílias em situações ditas disfuncionais - não gosto desta palavra - e nos colocamos algumas questões: como ajudar? Como acompanhar a situação de modo a que a criança não se torne refém do pai ou da mãe?", disse o papa.

Estas questões, colocadas durante a última audiência geral antes da pausa de julho, é claramente dirigida aos padres que vão se reunir em outubro, no Vaticano, para o sínodo sobre a família.

Em um documento de trabalho para este sínodo, divulgado ontem (23), o Vaticano reafirmou a indissociabilidade do casamento, ao mesmo tempo que promete facilitar o acesso a procedimentos para anulação do matrimônio e cita a possibilidade de "caminhos de penitência" em condições muito rigorosas, suscetíveis de permitir a comunhão aos divorciados que voltaram a casar.



quarta-feira, 24 de junho de 2015

Os ricos, as babás e o Brasil

Artigo interessante publicado na BBC Brasil:

'Uniforme deixa claro que você é serviçal, dá status para a patroa no shopping', diz ex-babá

A decisão do Ministério Público de SP de investigar um clube de elite por exigir que babás vistam branco no estabelecimento gerou polêmica e abriu um debate nas redes sobre a exigência da roupa branca para as profissionais do ramo.

Inúmeras opiniões, contrárias e a favor, foram expressas, mas uma voz pareceu estar pouco representada: a das babás. O #SalaSocial, da BBC Brasil, quer ouvir a opinião de quem trabalha ou trabalhou como babá. A exigência do uniforme no dia a dia do trabalho é válida, como ocorre em inúmeras profissões, ou pode se transformar em instrumento de segregação?

Veja algumas das opiniões que já recebemos:

  • "Levo para o médico, passeios, balé, judô etc. Eu acredito que devemos ser identificadas pois há muito casos de sequestros, roubos e tráfico de crianças", disse uma leitora em nossa página no Facebook.
  • Para outra leitora, que também já trabalhou como babá, a exigência do clube é "jogada de marketing" para passar "ar elitizado.
  • "Se usar uniforme é por motivo de sujeira durante o dia, não seria então o caso de mães e pais usarem uniforme também? Ou avós, tios e tias?", questionou uma leitora que é babá na Inglaterra.
  • "Sou babá e quando vamos a esses clubes, na sua maioria, exigem uniformes. Há um tratamento diferenciado por parte dos funcionários e dos sócios. É como se não tivéssemos que estar ali. É puro preconceito. Já viajei para outros países e fui muito bem tratada. Não precisei usar uniforme e sempre me posicionei como quem está a trabalho naquele local."
  • "Este é um assunto muito falado entre as babás. Tem patroa que libera e outras que obrigam a usar. Para mim, usar uniforme é normal. É parte da profissão, como a empresa que exige o uso de uniforme. Pessoalmente, acho que a peça de cima sempre precisa ser branca, por questão de higiene. Se suja, você percebe logo e troca, mas com uma peça escura isso fica mais complicado. Mas a parte de baixo não acho necessário. Pode ser uma calça azul ou preta. Ou, quando vai para o litoral, acho que tem que poder usar bermuda."


Destacamos abaixo o depoimento de Silvana Félix, de 41 anos, ao #SalaSocial. Se você trabalha ou já trabalhou como babá e quiser participar do nosso debate, deixe seu comentário abaixo ou em nosso fórum no Facebook.

"Fui babá durante 23 anos, mas, graças a Deus, não sou mais. A babá é quase invisível, tem que saber se fazer de invisível. É diferente de uma cozinheira ou de uma faxineira com seus papéis bem definidos. Dos empregados domésticos, acho que a babá é a que mais fica íntima dos patrões. Você levanta no meio da noite e encontra o patrão de cueca.

Tem horas em que esta intimidade é aceita e tem horas que não é. Não sabemos muito bem qual é o nosso papel. Fiquei cansada desta vida. Você tem que se dedicar muito, só tem folga de 15 em 15 dias.

Trabalhei em cinco casas e em todas tive de usar uniforme. O trabalho de babá é complicado porque não se limita a trabalhar dentro da casa. Os patrões precisam nos levar para onde forem e precisamos estar 'apresentáveis'. É algo cultural. A maioria dos patrões gosta de deixar claro que somos babás e não uma parente ou uma amiga.

Uma vez, vi a babá do Eddie Vedder (vocalista da banda americana Pearl Jam) na praia de biquíni com a patroa. Nem sempre eu podia colocar biquíni. Tem patrão que permite e outros que não permitem, e você tem de ficar de uniforme do lado da piscina. Quando ia viajar, se o patrão dizia para levar maiô, sabia que ia poder entrar na piscina ou no mar. Se não, sabia que ia ter que ficar olhando sentada do lado de fora. Já tive que ir para a praia com o uniforme completo. Nem precisa o patrão dizer isso expressamente. Eles não falam. A babá tem que saber pegar estes detalhes.

Nos clubes, tem que ir de branco, não tem jeito, porque tem muita madame e essa exigência do uniforme. Certa vez, em um clube de elite do Rio, fui proibida de entrar porque calçava chinelos. Era um domingo e eu estava com meus patrões e seus dois filhos, um de dois anos e outro de dez. Inclusive minha patroa estava de chinelo também, e o meu nem era qualquer chinelo, era bem bonitinho até.

Minha patroa reclamou, falou que era um absurdo, disse que os sócios estavam de chinelo porque, no Rio de Janeiro, todo mundo, pobre ou rico, usa chinelo. Mas não teve jeito. Disseram que era a regra do clube. Tivemos que voltar para casa para eu calçar um tênis. Não me senti mal, só achei uma grande besteira.

O uniforme deixa claro que você é serviçal. Serviçal é serviçal. Patrão é patrão. A roupa nos marca. É a mesma coisa no shopping. As patroas gostam de desfilar no shopping com a babá. Ela está pagando por isso e dá status. Não fica bem diante das amigas desfilar com a babá com roupa normal. Já trabalhei para patroa de 20 e poucos anos que exigia que a chamasse de dona ou senhora. Era muito estranho chamar alguém tão mais novo desta forma.

Eu fiz faculdade de Relações Internacionais e, uma vez, encontrei com uma amiga de uma ex-patroa na faculdade. Quando liguei para a casa dela para combinar algo relacionado a um trabalho, a empregada me chamou de dona e eu disse que não precisava disso. No dia seguinte, esta colega me deu uma super chamada, dizendo que a empregada tinha de me chamar de dona também.

Dizem que é bom usar uniforme porque deixa claro que a roupa está limpa, evidenciar o capricho da babá. Mas eu não trabalhava com bebê, mas com crianças maiores. Aí, a roupa branca é péssima porque você tem de deitar no chão, jogar bola. Isso suja muito a roupa, e você precisa trocar toda hora.

Tem preconceito? Tem. Mas é no clube, no restaurante, em tudo quanto é lugar. A tendência é se sentir diminuída. Uma vez, acompanhei a família para a qual trabalhava num almoço de batizado. Os patrões disseram para eu ir para a cozinha para arrumar meu almoço e chamei outra babá para ir comigo. Quando chegamos à cozinha, fomos escorraçadas pela dona da casa, que dizia que aquela não era a hora da gente comer, que estávamos atrapalhando.

Depois, ela levou um prato só para nós duas, com dois garfos. Foi humilhante demais. Disse que não queria comer, e ela me achou petulante. A outra babá começou a chorar. Minha patroa depois me pediu desculpas, mas a outra babá acabou sendo demitida.

Não se trata de aceitar ou não. Por exemplo, quando não falaram o nome das babás da Angélica. A gente não tem nome. Esse mundo de babá é assim. Faz parte entender que neste mundo de ricos e babás é assim. Graças a Deus sei meu lugar. Já fui para vários hotéis e, enquanto os patrões comiam, eu comia sozinha em outro lugar.

Se fosse só isso do uniforme, mas você vê muitas coisas, muitos detalhes. De pessoas que falam com a criança, mas não te dão nem oi. Já vi muitos casos de exploração. De patrões muito ricos que pagam meio salário mínimo para as meninas. Quando fui com uma família para a qual trabalhava para o Canadá, encontrei uma babá que não tinha roupas adequadas para o frio e os patrões não compraram nada para ela. Comigo aconteceu o mesmo. Os patrões disseram que iam comprar roupas de frio para mim e não fizeram isso. Mas eu reclamei e eles compraram, mesmo ficando de cara feia.

Tudo isso já me incomodou, mas me acostumei. Não somos vítimas nem quero ficar fazendo coitadismo. Eu ganhava bem. Ganhei muito dinheiro como babá. Não era uma coitadinha. Nunca questionei o uniforme porque ganhava bem. E com o dinheiro comprava meus livros, fazia minhas coisas.

Acho que no final, quando já não precisava tanto do dinheiro, eu passei a falar mais quando algo me incomodava. Aprendi a ter voz, porque sentar e chorar não vai resolver."

* Depoimento ao repórter da BBC Brasil Rafael Barifouse



terça-feira, 23 de junho de 2015

Papa Francisco pede perdão aos valdenses


A informação é do IHU:

Papa Francisco aos valdenses: ''Da parte da Igreja Católica, peço-lhes perdão''


Um encontro histórico no templo de Turim: pela primeira vez, um papa entra em uma igreja valdense. Um passo fundamental no caminho ecumênico. 


A reportagem é de Federica Tourn, publicada no sítio Riforma.it, 22-06-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.


"É por iniciativa de Deus, que nunca se resigna diante do pecado do homem, que se abrem novos caminhos para viver a nossa fraternidade, e disso não podemos nos isentar. Da parte da Igreja Católica, peço-lhes perdão. Peço-lhes perdão pelas atitudes e pelos comportamentos não cristãos, até mesmo não humanos, que, na história, tivemos contra vocês. Em nome do Senhor Jesus Cristo, perdoem-nos."

O Papa Francisco não tem palavras suaves, quando, no silêncio da Igreja Valdense de Turim repleta de pessoas, pede perdão pelas violências e pelas perseguições do passado. Nenhum desconto para a Igreja Católica, que foi culpada por atos não apenas não cristãos, mas até mesmo "não humanos".

Um reconhecimento formal que ainda soa mais solene pelo lugar em que foi pronunciado e que o moderador da Mesa Valdense, Eugenio Bernardini, comentou positivamente ao término do encontro: "O seu pedido de perdão nos tocou profundamente e o acolhemos com alegria", disse. "Naturalmente, não se pode mudar o passado, mas há palavras que, em certo ponto, é preciso dizer, e o papa teve a coragem e a sensibilidade para dizer a palavra certa."

De fato, é a primeira vez que um papa entra em uma igreja valdense: acompanhado pelo moderador, o bispo de Roma cruzou o limiar do templo de Turim – o primeiro construído depois da concessão dos direitos civis aos valdenses com as Patentes de Graça de 1848 –, depois de 800 anos que iniciaram com a excomunhão e a consequente repressão do movimento valdense por parte da Igreja Católica; oito séculos caracterizados por divisões e divergências teológicas, mas também, mais recentemente, por um caminho ecumênico que deu grandes passos para aproximar as duas Igrejas cristãs.

A fraternidade comum em Cristo, recordou depois o papa, "nos permite compreender o profundo vínculo que já nos une, apesar das nossas diferenças". Uma comunhão ainda em caminho, mas que precede as divergências antropológicas, éticas e teológicas que caracterizam as Igrejas e que encorajam a continuar juntos o percurso, a ir ao encontro de homens e mulheres para testemunhar a alegria do Evangelho.

Um desejo compartilhado pelo moderador que, no seu discurso de boas-vindas ao Papa Bergoglio, retomou passagens da exortação apostólica Evangelii gaudium, para dizer como a unidade cristã pode e deve ser concebida como "diversidade reconciliada": é preciso buscar nas Igrejas diferentes da nossa, disse o pastor Bernardini, "não os defeitos e as falhas – que, sem dúvida, existem –, mas o que o Espírito Santo ali semeou como um dom também para nós".

"Justamente isso é o ecumenismo: o fim da autossuficiência das Igrejas – acrescentou –, cada Igreja precisa das outras para realizar a própria vocação."

O moderador lembrou, depois, que, hoje, assim como na Idade Média, os valdenses querem pregar livremente, pregar na liberdade do Evangelho de Cristo, e também quis nomear dois dos nós que ainda nos dividem: a definição das Igrejas Evangélicas como "comunidades eclesiais", data pelo Concílio Vaticano II, e a questão da hospitalidade eucarística: "O que une os cristãos reunidos em torno da mesa de Jesus – disse Bernardini – são o pão e o vinho que Ele nos oferece e as Suas palavras, não as nossas interpretações que não fazem parte do Evangelho".

Mas o que consubstancia um verdadeiro caminho ecumênico, além da pregação, é o compromisso e a solicitude com relação aos sofrimentos do mundo. Ser operadores e operadoras de paz, exortou o moderador, "não é um ornamento retórico da nossa fé, mas o coração do amor e da reconciliação desejada por Jesus Cristo". Por isso, é fundamental consumir-se para intensificar o diálogo inter-religioso e continuar o testemunho em favor dos refugiados e dos pobres que batem à nossa porta.

O Papa Francisco usou quase as mesmas palavras, na preocupação por quem vive em dificuldade: "Da obra libertadora da graça em cada um de nós, deriva a exigência de testemunhar o rosto misericordioso de Deus que cuida de todos e, em particular, de quem se encontra na necessidade. A opção pelos pobres, pelos últimos, por aqueles que a sociedade exclui nos aproxima do próprio coração de Deus".

Para acolher o Papa Francisco no templo, também estavam presentes o pastor Paolo Ribet e o presidente do Consistório, Sergio Velluto, que transmitiram a saudação da Igreja de Turim, e o moderador da Iglesia Valdense del Río de la Plata, Oscar Oudri, que exortou as Igrejas a continuarem no caminho ecumênico, sem tentações de proselitismo, para realizar o mandato de João: "Sejam um para que o mundo creia".

Quem encerrou o encontro foi a presidente do Comitê Permanente da Obra Metodista, Alessandra Trotta, que enfatizou que a Palavra e o amor de Deus devem estimular os cristãos a derrubar cada vez mais o muro dos egoísmos, das divisões e das solidões. "Continuemos juntos o caminho – resumiu Trotta –, porque lá fora há muito a se fazer."

A visita do papa terminou com a oração do Pai Nosso na versão ecumênica, a troca de presentes – uma reprodução da primeira Bíblia traduzida para o francês em 1535 e as medalhas do pontificado – e o acompanhamento do Coro Semincanto e do Coro Valdese de Turim.

A calorosa saudação dos participantes na cerimônia, que apreciaram a simplicidade e a sobriedade do "irmão em Cristo" Francisco, confirmou a partilha comunitária de um encontro histórico, que reitera a intenção de reforçar um percurso ecumênico fundamental para a evangelização e o testemunho da mensagem cristã, a beleza do amor salvífico de Deus.



Abaixo, a matéria da agência ANSA Brasil:

Francisco pede perdão a valdenses por perseguições

Grupo protestante foi caçado pela Igreja na Idade Média

Durante sua visita a Turim, no norte da Itália, o papa Francisco pediu perdão em nome da Igreja Católica aos cristãos valdenses, confissão protestante perseguida por séculos a partir da Idade Média.

Além disso, na capital do Piemonte, Jorge Bergoglio se tornou o primeiro Pontífice a entrar em um templo dessa religião. "Da parte da Igreja Católica, peço perdão pelos comportamentos não cristãos - até não humanos - que, na história, tivemos contra vocês. Em nome do Senhor Jesus Cristo, nos perdoem", declarou.

A doutrina valdense foi fundada no século 12 pelo comerciante francês Pedro Valdo, que defendia o direito de cada fiel ter a Bíblia em seu próprio idioma, rejeitava a autoridade do Papa e criticava o culto a imagens.

Por conta disso, seus integrantes foram excomungados pela Igreja e aderiram à Reforma Protestante. Concentrado na região italiana do Piemonte, o grupo só ganhou liberdade de culto em meados do século 19.

"Caro irmão Francisco, bem-vindo. O encontramos com alegria como um novo irmão em nosso percurso. Queremos enxergar sua visita, que foi definida justamente como histórica, exatamente nessa dimensão", declarou o pastor Paolo Ribet, anfitrião do Papa em Turim.



segunda-feira, 22 de junho de 2015

Rebeldes tuaregues recusam o radicalismo islâmico no Mali


Outro dia me surpreendi ao perceber que um amigo (dez anos mais novo e com instrução de nível superior) não sabia o que significava a palavra "tuaregue", o que para as crianças dos anos 70 era algo relativamente comum em razão das estórias de deserto nos gibis.

Numa curta e reconhecidamente sofrível definição, "tuaregues" são os povos nômades do deserto do Saara, que não se fixam a nenhum dos países cujas fronteiras foram traçadas pelas potências coloniais europeias, e peregrinam pela imensidão do Norte da África com suas línguas berberes ("berbere" = corruptela do latim "barbărus"), sua escrita peculiar mediante o alfabeto tifinagh (vertical e de origem fenícia), e costumes próprios.

Não deixa de ser curioso perceber que os heróis míticos das caravanas pelas dunas - que povoavam as mil e uma noites das crianças de décadas atrás - tenham sido esquecidos para dar vez aos efêmeros lutadores e jogadores de videogame.

No mundo real, entretanto, os tuaregues que se identificam mais com a República do Mali tiveram que fazer uma escolha entre o radicalismo islâmico e a proteção oficial do governo malinês, segundo noticia a Agência Brasil:

Rebeldes tuaregues e governo do Mali assinam acordo histórico de paz

Distribuição dos povos tuaregues na atual África
A Coordenação dos Movimentos de Azawad (CMA), que integra os principais grupos rebeldes do Norte do Mali, assinou hoje (20) com o governo do país um acordo para a paz e a reconciliação, considerado histórico.

O acordo, assinado entre Sidi Brahim Sidati, dirigente do CMA, e o presidente do Mali, Ibrahim Boubacar Keita, tem como objetivo o regresso da estabilidade ao Norte do país, região desértica dominada pelos tuaregues, que nos últimos anos passaram a conviver com militares islâmicos ligados à Al Qaeda.

O texto-base do acordo foi assinado em 15 de maio na capital Bamako pelo governo maliano. Os rebeldes tuaregues, no entanto, foram adiando a assinatura do texto final, exigindo negociações adicionais.

O acordo visa a estabelecer uma paz duradoura no Norte do Mali que, no final do primeiro trimestre de 2012, ficou sob o controle de grupos jihadistas ligados à Al Qaeda depois de o exército ter sido derrotado pela rebelião tuaregue.

Na época, os tuaregues primeiramente se aliaram aos jihadistas, mas depois foram dominados pelos grupos islâmicos. Os jihadistas foram parcialmente expulsos da zona por uma ofensiva militar internacional lançada em janeiro de 2013. A operação ainda está em curso em áreas no Norte do Mali, que permanecem fora do controle do poder central.



domingo, 21 de junho de 2015

Somos todos poeira das estrelas?


Há mais semelhanças entre o discurso científico e o religioso do que a nossa vã filosofia consegue alcançar, a julgar pela matéria publicada na revista Galileu em 10/07/2014.

Talvez tudo se resuma a uma questão de semântica:

7 fatos que provam que você e o cosmos estão intimamente conectados

A ciência mostra que somos, mesmo, poeira de estrelas

por André Jorge de Oliveira

O que antes pertencia ao domínio da religião e do mito está, cada vez mais, tornando-se consenso na ciência: todas as coisas do Universo estão profundamente relacionadas umas com as outras.

Acredite: conforme os cientistas vão escavando os mistérios da realidade, fica cada vez mais evidente que parece haver uma profunda interdependência entre as coisas. Esta convicção, que já foi muitas vezes trazida à tona pela intuição humana, tem ganhado cada vez mais espaço na comunidade científica.

Existem certos fatos, já familiares à ciência, que podem dar origem a uma espécie de espiritualidade, similar àquela proporcionada pela religião. São descobertas grandiosas que nos recordam que fazemos parte de um grande todo, do qual somos inseparáveis. Elas reforçam a ideia de que a velha distinção homem versus natureza não faz sentido algum.

Separamos sete destes fatos, que têm grande impacto filosófico e podem te fazer olhar de outra forma para a realidade ao seu redor. Confira:

1 – Somos todos poeira das estrelas

A frase, tornada famosa pelo astrônomo Carl Sagan, significa basicamente que todos os elementos que formam os seres humanos, os vegetais, as rochas e tudo o mais que existe no planeta foram formados há bilhões de anos, durante a explosão de estrelas a anos luz de distância daqui. É isso mesmo: elementos pesados como o ferro que corre no nosso sangue, ou o ouro que compõe as nossas jóias, só podem ser sintetizados na natureza em condições extremas de temperatura e pressão – ou seja, quando uma estrela morre e explode violentamente, virando uma supernova. O material formado, então, se espalha pelo espaço interestelar, podendo dar origem a novas estrelas e planetas.

2 – Os átomos do seu corpo já pertenceram a outros seres vivos

A Terra é praticamente um sistema fechado – a matéria que existe aqui não escapa naturalmente para o espaço sideral. Logo, podemos concluir que todos os átomos existentes no planeta estiveram aqui desde o início, e circularam ao longo das eras por incontáveis ciclos químicos e biológicos. Isto quer dizer que os elementos que hoje compõem nossos corpos podem, perfeitamente, ter feito parte de um tiranossauro rex no passado, ou de uma árvore, uma pedra, ou até mesmo de outros seres humanos.

3 – Toda a vida na Terra tem um grau de parentesco

Quando olhamos para a exuberante biosfera que existe em nosso planeta, é difícil acreditar que, nos primórdios da vida, o único ser se resumia a um organismo unicelular. Ao longo de bilhões de anos de evolução, as espécies foram se diferenciando e se adaptando a diferentes ambientes. Mas, por mais distintas que pareçam, todas têm um grau de parentesco umas com as outras, sem exceção. Todas tiveram um ancestral comum em algum momento.

4 – Quimicamente, animais e plantas se complementam

As árvores são nossas "primas", e podem ser compreendidas como complexas fábricas naturais que sintetizam o gás carbônico, eliminando o oxigênio. No nosso caso, o processo é reverso – nós respiramos o oxigênio e expelimos gás carbônico. Podemos dizer então que os vegetais e os animais são, evolutivamente falando, perfeitos uns para os outros, e mantém uma relação de interdependência.

5 – Seu corpo é perfeitamente adaptado para viver na Terra

Não apenas o corpo humano, mas todos os seres vivos do planeta, são minuciosamente moldados para sobreviver no ambiente terráqueo. Se vivêssemos em um lugar com maior gravidade, por exemplo, nossos músculos e estrutura óssea teriam de ser bem mais resistentes para aguentar a pressão. O implacável processo de seleção natural se encarrega de escolher as espécies mais aptas à sobrevivência. De certa forma, toda a vida que conhecemos tem a cara da Terra, porque é perfeita para ela.

6 – No nível quântico, não existem objetos sólidos

Quando tocamos em qualquer objeto, sentimos claramente que se trata de algo sólido, palpável. No entanto, a sensação não passa de um engano de nossos sentidos: são apenas as nuvens de elétrons dos átomos de nossa pele interagindo com as nuvens eletrônicas do objeto. O que se pode chamar de sólido é o núcleo dos átomos, mas eles jamais se tocam. Os átomos são compostos quase que inteiramente de vazio.

7 – Partículas subatômicas podem estar conectadas mesmo a milhões de anos luz uma da outra

Não importa que uma das partículas esteja na Via Láctea e a outra na vizinha Andrômeda – se houver entre elas o chamado entrelaçamento quântico, uma é parte indissociável da outra. Elas se influenciam instantaneamente, superando até mesmo a velocidade da luz. Isto é possível pois o princípio sugere que a matéria universal esteja interligada por uma rede de “forças”, sobre a qual pouco conhecemos, que transcende até mesmo nossa concepção de tempo e espaço.



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