O Concílio ortodoxo “que cambaleia” e os sinais dos tempos
O Santo e Grande Concílio ortodoxo, meio cambaleando, começa hoje [domingo, 19 de junho] na ilha de Creta. (1) E, independentemente do jeito que terminar, já pertence à categoria dos eminentes sinais dos tempos. Visto na perspectiva da fé dos Apóstolos, o cabo de guerra que surgiu “in extremis” no âmbito do encontro de comunhão que estava sendo preparado há décadas pelas Igrejas que compartilham o mesmo tesouro apostólico e sacramental mostra, pelo menos por um momento, o vertiginoso caminho pelo qual procede sempre na história a promessa da salvação cristã, encomendada aos sucessores desses mesmos apóstolos.
A reportagem é de Gianni Valente e publicada por Vatican Insider, 19-06-2016. A tradução é de André Langer.
As últimas notícias sobre as decisões e os pronunciamentos dos líderes das Igrejas ortodoxas são muito sugestivas. O Santo e Grande Concílio começa com a presença dos líderes de 10 das 14 Igrejas autocéfalas ortodoxas, sob a presidência do Patriarca Ecumênico de Constantinopla, Bartolomeu.
Do ponto de vista dos grupos e dos equilíbrios de força, tem um peso relevante a participação da Igreja ortodoxa da Sérvia (que no começo tinha se negado a participar), a qual, em seu último comunicado oficial, se reserva o direito de abandonar o encontro caso este se negar a “considerar todas as questões, problemas e diferenças” expressadas durante as últimas semanas pelos quatro patriarcas ortodoxos (de Antioquia, Bulgária, Geórgia e Rússia) que decidiram não participar.
Com a decisão manifestada na segunda-feira passada, o Patriarcado de Moscou de alguma maneira deixou cair a máscara e mostrou-se com o verdadeiro artífice das iniciativas que, coagulando diversos mal-estares e reservas, apostavam na suspensão ou em dar outra direção, “in extremis”, à máquina conciliar que já estava em andamento.
O Patriarca de Moscou, Kirill, em sua última mensagem oficial dirigiu-se intencionalmente aos “Primados e representantes das Igrejas ortodoxas locais que se reúnem em Creta”, sem utilizar a expressão “Concílio”, para dar a entender que esta reunião era “um encontro que pode servir para a preparação do Santo e Grande Concílio”, negando ao encontro de Creta a categoria de Assembleia Conciliar.
Além disso, o Metropolita Hilarion de Volokolamsk, presidente do Departamento de Relações Exteriores do Patriarcado de Moscou, homem chave na política eclesiástica do aparelho ortodoxo russo, em uma entrevista, fez algumas advertências pessoalmente ao Patriarca Bartolomeu, indicando que o “Primus inter pares” entre os primados ortodoxos “dará prova de prudência” e destacando que “se se convoca o Concílio apesar da ausência de ao menos quatro das Igrejas locais, constituirá uma brutal transgressão do regulamento do próprio Concílio, que estabelece que deve ser convocado pelo patriarca ecumênico com o consenso de todas as Igrejas”.
Enquanto isso, a partir de Kiev, os círculos nacionalistas ucranianos tratam de aproveitar a confusão e o Parlamento pede oficialmente ao Patriarca Bartolomeu para que reconheça a autocefalia da Igreja ortodoxa ucraniana (atualmente sujeita com um estatuto de autocefalia à jurisdição do Patriarcado de Moscou), patrocinando um “Concílio de unificação pan-ucraniana” com o qual possam unir-se “todas as Igrejas ucranianas ortodoxas”.
No entanto, em Creta, a máquina midiática do Concílio, nas mãos de órgãos da imprensa estadunidenses, começa a inundar a rede de comunicados e informes feitos de acordo com padrões já acordados em nível global para encontros e “quermesses” religioso-espirituais para todos os gostos.
Nas últimas notícias, a questão do Concílio ortodoxo e seu semi-naufrágio ou seu desejado “êxito midiático”, seguem sendo apresentados principalmente como uma questão político-eclesiástica. Os comentários e narrações da mídia, com poucas exceções, ressaltam as estratégias, alianças, provas de força, pressões, sintonias mais ou menos claras entre os aparelhos político-clericais.
Nos tribunais da rede que infestam a blogosfera católica, as manipulações mais descaradas e interesseiras usam como pretexto os problemas ortodoxos para confeccionar condenações baratas sobre as dinâmicas da sinodalidade eclesial, tão citadas pelo Papa Francisco. Mas estes informes “déjà vu” que elucubram sobre as mutáveis alquimias do poder eclesiástico ou sobre os erros táticos (verdadeiros ou não) dos diferentes aparelhos clericais raramente intuem a raiz profunda das tribulações ortodoxas.
Podem ajudar muito mais as intuições manifestadas por Bartolomeu em uma antiga entrevista de 2004 à revista italiana 30Giorni, na qual o patriarca ecumênico, ao falar sobre o cisma entre a Igreja de Roma e a de Constantinopla, disse que a origem distante dessa divisão está nas “primeiras manifestações do pensamento mundano na Igreja”. Se os ortodoxos sempre reconheceram em tal infiltração a matriz da pulsão “hegemônica” do Papado ocidental, agora parece muito mais claro que tal pulsão não só não foi neutralizada por um ou outro modelo abstrato de eclesiologia “institucional” e pode facilmente servir-se das dinâmicas e dos instrumentos sinodais.
Em relação ao caso das Igrejas ortodoxas, a referência à penetração do pensamento mundano nas dinâmicas eclesiais tem muito pouco a ver com a tradicional e dócil sintonia com os poderes civis nacionais que os polemistas católicos sempre reprovaram na Ortodoxia. Os problemas do Santo e Grande Concílio não dependem de Putin, que paradoxalmente, justamente perseguindo seus interesses, poderia ter sido capaz de favorecer um resultado mais fecundo para o caminho e para a missão apostólica das Igrejas ortodoxas.
Pelo contrário, o que criou muitos obstáculos foi o peso morto do orgulho clerical enquanto tal, a “hybris” que contamina os aparelhos eclesiásticos cada vez que as Igrejas, em qualquer nível, constroem e perseguem um modelo de auto-suficiência e de auto-afirmação no cenário do mundo. Nenhuma das instâncias eclesiais é imune a esta tentação de uma desnaturalização semelhante, como repetiu em várias ocasiões o Papa Francisco ao fazer alusão à gangrena do “mundanismo espiritual”.
Neste momento, devemos admitir que esta atitude ameaça particularmente a Igreja russa. Considerando apenas as últimas duas semanas (e inclusive o que aconteceu antes do início das convulsões sobre o Concílio ortodoxo), o Patriarca Kirill disse que a Igreja russa tem agora, nada mais e nada menos, a tarefa de “mudar a atitude em relação à fé e ao cristianismo em muitos países da Europa e da América”, para voltar a dar uma relevância global ao cristianismo (19 de maio).
O Metropolita Hilarion, por sua vez, apresentou, em 19 de abril passado, a Rússia atual como a única nação de destaque na qual se “expandem a fé e a Igreja”, descrevendo um Ocidente completamente aniquilado pelo ateísmo e o secularismo, com uma inversão total de papéis com relação aos tempos da União Soviética. Em um ataque de triunfalismo identitário, o próprio Hilarion, no final de maio, disse que o Patriarcado de Moscou ocupa “o segundo lugar no mundo” em número de fiéis, atrás apenas da Igreja católica, separando conceitualmente os fiéis russos de todos os outros cristãos ortodoxos.
Apenas aqueles que amam com sincera gratidão a grande aventura cristã que começou com o batismo do Grande Príncipe Vladimir sentem a urgência de informar aos irmãos russos a deriva de retrocesso a que parecem tão expostos neste momento. Mas o escorregão pelo Concílio ortodoxo antes de mesmo de começar deve fazer pensar que não apenas entre os líderes da Ortodoxia russa se rarefez a percepção do tempo escatológico vivido pela Igreja de Cristo.
“Os Primados das Igrejas que colocam em primeiro lugar questões mundanas como o primado de honra”, disse em meio às convulsões pré-conciliares Theodoros II, Patriarca ortodoxo de Alexandria, “deveriam descer de seus tronos suntuosamente decorados e visitar a África, para ver o que quer dizer ser pobres e humildes filhos de Cristo”.
Como já aconteceu em outros momentos da história, o tropeço inicial do encontro conciliar ortodoxo, seu “fracasso” em termos de estratégia humana, vivido à luz da cruz, da descida aos infernos, da Ressurreição e do Pentecostes, poderia sugerir novas vias de fuga para abandonar a soberba clerical e andar mais rapidamente para Cristo.
Como disse Matta el Meskin – o pai da renovação dos monges coptas durante um rico congresso organizado pela comunidade monástica de Bose –, a unidade entre os cristãos, embora pertençam à mesma confissão, nunca nasce como espírito de “coalizão” para sentir-se mais fortes, para unir forças contra inimigos verdadeiros ou imaginários e dar maior relevância e poder à Igreja e aos homens da Igreja. Sempre nasce acompanhada da perda do instinto de conversação e da pretensão de caminhar na história por força própria, como uma realidade autossuficiente.
A unidade em Cristo dos cristãos, escreveu Matta el Meskin, “é um estado de fragilidade divina perante o mundo, seguindo o exemplo de seu Mestre, que renunciou ao seu poder infinito para ser crucificado por qualquer pessoas que ele amava e na maneira como a amava. E todos os problemas que dividem a Igreja – acrescentou Matta – demonstram exatamente que o Senhor não está presente no meio da assembleia. E sua ausência nos obriga a voltar a colocar em questão a finalidade da reunião, o método da busca e as intenções dos membros reunidos [...] O problema da unidade encontra-se clara e decisivamente no problema da presença do Senhor”, porque “só o Senhor ‘pode fazer de dois povos um só, tendo derrubado os muros que os separam (cf. Ef 2, 14)’”.