quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Como o nome "Deus" justifica (quase) tudo na política brasileira


Uma visão interessante de Ronilso Pacheco, em artigo publicado no The Intercept Brasil:

UM GOLPE (BEM) DADO EM NOME DE DEUS

ACABOU. DILMA ROUSSEFF está destituída do cargo de Presidente da República. Sem que Deus fosse usado como “fiador” de uma mudança necessária por exigência da ética, da moral, dos bons costumes e da ordem, muito provavelmente, todo o embate ético-político que se arrastou desde o auge do poder de Eduardo Cunha na presidência da Câmara até agora, com a queda definitiva de Dilma, não aconteceria – ou poderia ter outro fim.

Não esqueçamos que a advogada Janaína Paschoal, que junto com os juristas Hélio Bicudo e Miguel Realle Jr. protocolou o pedido de impeachment aceito contra a então presidente, disse, absolutamente segura de sua crença, que foi Deus quem iniciou o processo de impeachment. Na verdade, ela disse:

“Foi Deus que fez com que várias pessoas, ao mesmo tempo, cada uma na sua competência, percebessem o que estava acontecendo com nosso país e conferisse a essas pessoas coragem para se levantarem e fazerem alguma coisa a respeito.”

Por que é tão importante garantir que “Deus” esteja presente nas ações políticas tomadas numa disputa?

A esquerda política brasileira nunca fez questão de justificar suas escolhas, objetivos, programas e projetos a partir de “Deus”. A “presença de Deus” na esquerda no Brasil (assim como em toda a América Latina) sempre se deu via movimentos como a chamada Teologia da Libertação católica ou via teólogos protestantes progressistas. Para a direita e o campo conservador, Deus é central. Ele é o legitimador de todas as disputas que eles empreendem.

Quando Eduardo Cunha dizia que aborto era uma pauta que só passaria por cima do seu cadáver, ele não tinha preocupação em defender isso com ideias. Ele pressupunha que, ao barrar o aborto, ele estaria defendendo a vida, e quem dá a vida é Deus. E ele sabe que, para o senso comum, este argumento basta. Aqui, o “argumento Deus” é capaz de neutralizar, ou deixar em segundo plano, qualquer desvio de conduta, atitude desonesta ou, quiçá, criminosa, de qualquer parlamentar.

É preciso ter nítida a ideia de que se está “do lado de Deus” para, mesmo sabendo que se está tão comprometido na Lava Jato quanto qualquer parlamentar petista,condenar as ações de parlamentares do PT ou mesmo vociferar sobre ética e moral contra Dilma Rousseff – ainda que ela não esteja envolvida.

Se o parlamentar fala em nome de Deus (leia-se da sua relação com a igreja), é irrelevante que a sua trajetória política o desqualifique nitidamente para reivindicar a ética, a justiça e a moral. Quando você diz defender os valores “instituídos por Deus”, você pode dizer, por exemplo, que luta para que o Brasil não se torne uma Venezuela ou não seja tomado pelo “bolivarianismo” sem precisar explicar absolutamente nada sobre o que isso significa.

É certo que o debate do julgamento para o impeachment está quase restrito ao campo da gestão e da economia, mas parece ser mais fácil impedir que o acusado reaja quando quem acusa está blindado pela imagem de quem está “do lado de Deus”.

Complexo é pensar que, hoje, podemos usar o adjetivo “evangélico” (ou protestante, aqui tanto faz) tanto para parlamentares como Pastor Everaldo, Magno Malta e (também agora) Jair Bolsonaro e também para figuras como Martin Luther King Jr. E isso não é simples, porque é tão destoante que se torna quase um erro gramatical colocar o último na mesma frase que os outros três.

Uma igreja negra nos Estados Unidos foi determinante para forçar o fim da segregação racial, enfrentar o Estado e abrir caminho para a conquista dos direitos civis dos negros, e, consequentemente, ampliar o caminho em direção para a garantia dos direitos de outros grupos sociais. Uma igreja negra na África do Sul, com Desmond Tutu e Allan Boesak à frente, foi determinante para forçar o fim do apartheid e fortalecer a luta que tinha Nelson Mandela como a figura principal. Em ambos os países, a igreja se tornou o refúgio de negros perseguidos, sem direitos, local de sua formação, autonomia e empoderamento.

A escolha dos cristãos negros e negras do sul estadunidense era transitar entre a não violência, proposta e defendida pelo Dr. King, e o apoio integral às ações enérgicas do movimento Black Power, às ações dos Panteras Negras, libertação da ativista Ângela Davis. A igreja negra na África do Sul e seus teólogos apontavam para a violência de Estado em Soweto. Tanto nos Estados Unidos quanto na África do Sul, o “Deus” reconhecido pela Teologia Negra (bem como pelas igrejas alinhadas com a Teologia da Libertação na América Latina) era aquele do êxodo do povo vindo da escravidão no Egito, liberto na travessia do Mar Vermelho, que se identificava com os homens e mulheres negros escravizados pela Europa e nos Estados Unidos e com os todos os pobres na era pós-escravocrata.



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