A notícia foi publicada no Estadão em 19/07/17:
Sob investigação há 6 anos, abrigo a 76 km de SP tem 14 mortes em um mês
9 delas apresentavam quadros de diarreia e vômito, acompanhados de desnutrição; vítimas moravam em sítios da Missão Belém
SÃO PAULO - Ao menos 14 pessoas que viviam em um centro de acolhida de uma missão ligada à Igreja Católica, que recebe usuários de drogas e moradores de rua em Jarinu, no interior paulista, morreram nos últimos 30 dias. Pelo menos nove delas apresentavam quadros de diarreia e vômito, acompanhados de desnutrição, desidratação ou intoxicação alimentar. Outros 19 foram internados com esses sintomas, mas sobreviveram. As causas dos óbitos ainda estão sendo investigadas.
As vítimas moravam nos sítios da Missão Belém, a 76 km da capital. O espaço recebe, em sua maioria, dependentes vindos da Cracolândia. A entidade, fundada pelo padre Gianpietro Carraro em 2005, atua no Brasil, na Itália e no Haiti e atende 2 mil pessoas. Só nas quatro propriedades de Jarinu, são 850.
Segundo informações dos boletins de ocorrência dos óbitos, aos quais o Estado teve acesso, metade das vítimas eram idosas e a maioria vivia nos sítios da Missão Belém há anos. Eram ex-dependentes químicos, ex-moradores de rua ou pacientes com problemas psiquiátricos rejeitados pela família.
A primeira das 14 mortes aconteceu no dia 18 de junho. A vítima, de 56 anos, teve um mal súbito após receber medicações. Três dias depois, mais um óbito foi registrado, desta vez de um homem de 50 anos internado há oito em Jarinu. Ele foi o primeiro hospitalizado a apresentar diarreia e vômito.
Nas semanas seguintes, casos do tipo aumentaram. Do dia 3 de julho até esta terça-feira, 18, o Hospital de Clínicas de Campo Limpo Paulista, município vizinho de Jarinu, recebeu 25 internos da Missão Belém, dos quais 6 morreram. De acordo com a Prefeitura do município, a maioria dos pacientes chegou ao local “em avançado estado de desidratação, desnutrição e intoxicação alimentar, em alguns casos associados a doenças crônicas, HIV e sequelas de acidente vascular cerebral (AVC)”.
A Vigilância Municipal de Jarinu, órgão vinculado à Prefeitura, diz ter feito fiscalizações no local antes e depois das mortes, mas afirma não ter encontrado sinais aparentes de contaminação. Segundo a Prefeitura, o órgão espera resultados de análises de amostras de água e fezes enviadas ao Instituto Adolfo Lutz e a contaminação por rotavírus já foi descartada pelo órgão. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), toda a cidade de Jarinu - com cerca de 28 mil habitantes - tem média de 14,4 óbitos por mês.
Regulamentação
Desde 2011, a Missão Belém é alvo de investigação do Ministério Público e da Prefeitura de Jarinu. Segundo a promotora Aline Morgado da Rocha, o local funciona, na prática, como uma comunidade terapêutica, mas não tem licença para desempenhar tal atividade. O estabelecimento não tem nem licença de funcionamento da prefeitura.
Norma da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) prevê que espaços que recebam usuários de drogas em regime de residência devem ter licença segundo as leis municipais. Também precisam contar com responsável técnico de nível superior e mecanismos de encaminhamento à rede de saúde.
Para o psicólogo e professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Marcos Garcia, há um “limbo legal” no oferecimento deste tipo de serviço. “Alguns têm cadastro como assistência social ou equipamento de saúde, mesmo não seguindo as normas do Sistema Único de Saúde (SUS).”
‘Se Deus levou, não temos culpa’, diz coordenador
O coordenador da Missão Belém, Marcio Antonio dos Santos, afirmou que muitos dos abrigados já chegam ao local doentes e observou que nem sempre é possível reverter seus problemas de saúde. Os boletins de ocorrência dos óbitos mostram, porém, que parte deles já vivia no local há anos.
“Tem uns que sobrevivem e outros não conseguem. O que fazemos de melhor é não deixar ele morrer na rua, como indigente e sem nada. Mas se Deus decide levar, já não é problema nosso. Se Deus levou, não temos culpa”, disse.
O coordenador alegou que os efeitos do crack podem ser os responsáveis pelas mortes e não houve registro de intoxicação alimentar, embora o Hospital de Campo Limpo Paulista tenha confirmado a informação à reportagem. “(As vítimas) estavam com problemas cardiovasculares, problemas ligados ao longo uso de bebida e outros”, diz ele.
O Estado procurou o padre Gianpietro Carraro, fundador do grupo, mas o religioso respondeu por mensagem que não poderia dar entrevista por estar em missão no Haiti. A assessoria de imprensa da Arquidiocese de São Paulo informou que a Missão Belém é independente juridicamente e, por isso, não irá se manifestar.
VÍTIMAS E DATA DE REGISTRO
- Edson Luiz Ambrozio, de 56 anos, em 18 de junho.
- Marco Cesar de Moraes, de 50, em 22 de junho
- Ismael Francisco Nunes, de 53 anos, em 28 de junho
- Natal Aparecido de Moraes Funck, de 63, em 1º de julho
- Nicodemos Dias Soares, de 78 anos, em 3 de julho
- Jamilton José Cerqueira da Silva, de 50, em 4 de julho
- Gonçalo Galdino da Silva, de 55 anos, em 5 de julho
- Otaviano Gomes da Silva, de 81, em 6 de julho
- Nivaldo Santoja, de 56, no dia 7
- João Crisostomo da Luz Neto, de 75 anos, em 10 de julho
- Luiz Carlos Vieira, de 62, anos, em 12 de julho
- Iolando da Silva, de 70, no dia 12 de julho
- Wlademir Picoralle, de 64 anos, no dia 13 de julho
- Um desconhecido, nesta terça, 18 de julho