sábado, 31 de outubro de 2009

O pastor soberbo, por Lutero

Hoje faz exatos 492 anos que Martinho Lutero pregou as suas famosas 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg. 

Assim, o dia 31 de outubro de 1517 é considerado o marco oficial do começo da Reforma Protestante, embora outros movimentos já houvessem existido, e o próprio Lutero venha a romper definitivamente com a Igreja Católica apenas alguns anos depois. 

Em 2017, portanto, comemoraremos os 500 anos da Reforma Protestante, mas talvez cheguemos lá com outra Reforma profunda na Igreja evangélica, especialmente a brasileira, hoje tão soberba e entregue a símbolos e práticas pagãs.

O momento é, então, propício para que lembremos das palavras do próprio Lutero, comentando Tito 1:7, em que Paulo diz que o bispo (pastor) não deve ser soberbo (αὐθάδης - authadēs) nem irascível. 

Queira Deus que seus ensinamentos contribuam para que voltemos aos eternos valores genuinamente cristãos defendidos pela Reforma:




Não soberbo. Essas são preciosidades que se encontram na casula sacerdotal. Tal qualidade adere, naturalmente, a todas as honras. Authadis refere-se à ideia de que sou agradável a mim mesmo; [e aquele que se agrada a si. Trata-se daquela disposição inflexível e entediada de quem olha para si mesmo no espelho e despreza os outros. As formas de como a soberba se manifestas são descritas neste dito: ela espelha a própria pessoa e se infla devido às dádivas que recebeu de Deus frente à outra pessoa que as não possui; ela quer ser temida e notada. A este vício opõe-se Cristo que “se esvaziou”, Fp 2.7. O apóstolo poderia ter dito: “Eu sou santo, tu és pecador; eu sou filho de Deus, tu, do diabo”. Mas, ao invés disso, diz “se esvaziou”. “Mas tenho pena de ti; farei com que tu sejas santo e filho de Deus, e com que eu assuma a posição contrária”. Assim deve agir um bispo. Ao ver um irmão ignorante, que não pense: “Eu sou mais douto e o outro nada é”, “considerado em relação a mim, é um rei camponês”. Tal soberba não é nobre, mas própria de camponeses, como, por exemplo, quando um camponês possui cem florins no seu cofrinho e se esforça para que todos saibam disso. Se tens uma habilidade, sabe que não a tens para zombar do próximo e insultá-lo, mas, sim, para edificá-lo. É assim que agem nossos entusiastas: eles próprios querem saber tudo, e insinuam que nós nada sabemos. Se, contudo, eu sei alguma coisa, sendo um fiel despenseiro, devo sabê-lo em prol do irmão, de modo que, simplesmente, compartilhe-o com ele, não buscando, nisso, favores, proveito e elogios, mas de tal sorte que seja sequioso pela salvação do irmão. Trata-se, pura e simplesmente, de conceder-lhe parte naquilo que ele próprio não possui, e não de agradar a si mesmo. Esta última atitude é, segundo Paulo, submeter as dádivas e os dons de Deus a uma rapina. A dádiva e o dom me foram dados para que sirvam ao próximo. Se eu quero, porém, que os outros me olhem , então, transformo o que me foi concedido num objeto de rapina. Devo distribuir e conceder os dons a outrem e, no entanto, tomo-os exclusivamente para mim. Desse modo, deleito-me em ser louvado e chamado de homem piedoso e douto. Se, por outro lado, sou considerado culpado de alguma coisa, fico logo irado. Este é o maior dos vícios, um defeito inenarrável. Ele carrega consigo a vanglória, a inveja, o espírito do amor a si próprio e o roubo das dádivas de Deus. É uma “cebola vestida com túnica”. Quando algum pregador possui um dom maior em comparação com outro, ele não quer mais ensinar, a menos que seja liberto da vanglória, essa peste. Eu mesmo fiz isso, a fim de remover a vanglória que se acha no meu coração. Certamente, todo e qualquer um deve fazê-lo. É possível reconhecer outros pecados, mas não esse. Quando o Senhor torna um homem douto, também o constitui para que não agrade a si mesmo, para que não se vanglorie nem seja um ladrão da glória de Deus. Se o fazes, cometes uma abominação e um sacrilégio, Rm 2.5. Alegrar-se apenas com aquilo que considera seus próprios dons, nada é senão somatório de sacrilégios. Quem faz isso não se preocupa com as pessoas a quem serve. Cristo, porém, exige de nós que essas virtudes, ainda que ínfimas, etc., nos sejam atribuídas por causa do serviço. Um bispo é alguém que não agrada a si mesmo, mas, sim, a outrem; isso, porém, quando o faz para a boa edificação.

Todo o homem soberbo é “iracundo”. Diz-se que as virtudes são encadeadas entre si. O mesmo também ocorre com os vícios. Aquele que agrada a si mesmo, deleita-se consigo e com os dons recebidos, facilmente se ofende com o defeito de um irmão. Portanto, quando um bispo é constituído como objeto de admiração em meio aos irmãos, dentre os quais alguns são firmes e cultos, notando-se, porém, uma grande diferença do lado oposto; e quando, além disso, tem ao seu redor lobos e é constituído no meio de diabos, torna-se impossível que não seja tentado, a todo instante, por várias tentações e que se não lhe apresente um grande motivo para irar-se. Deve cuidar, particularmente, de não mostrar-se irascível diante dos irmãos, ou seja, ele deve ser manso e bondoso, de sorte que possa tolerar as fraquezas, e todas as enfermidades de suas almas. Aquele, porém, que agrada a si mesmo, fica ofendido tão logo as coisas não aconteçam conforme os seus propósitos. Caso veja alguém um pouco relutante, logo quer excomungá-lo, como fazem os nossos bispos. Que não se levantem murmúrios e queixas contra eles acerca de sua tirania! Ao contrário, deve haver um afeto paterno e materno no bispo. Pedro o expôs da seguinte maneira: “Não como dominadores dos que vos foram confiados” [1 Pe 5.3], como se o rebanho fosse sua própria herança e como se quisessem, simplesmente, dominar na Igreja, de forma que tudo suceda conforme se enfurece e vocifera sua própria cabeça, de modo que o bispo possa gloriar-se a cada palavra, etc. Como já disse, foi assim que agiu o papa, e assim agem nossos bispos. “Não”, diz Paulo, “porque dominemos, mas como vossos servos por causa de Cristo” [2 Co 4.5]. Não fui constituído para governar qualquer cristão na condição de senhor; antes, fui constituído como servo. Somente um é o Senhor. Embora sejam servos, devemos obedecer-lhes e, diante deles, humilhar-nos por causa do Senhor. Por outro lado, eles devem servir-nos e suportar até mesmo nossa fraqueza por causa do Senhor. Por conseguinte, aquele que agrada a si próprio não pode deixar de ofender-se e exercer a tirania. Se alguém é constituído bispo, é preciso que seja uma pessoa honrada e de boa reputação. Se não fosse assim, a Palavra seria desprezada. Pois quem ouviria uma pessoa reprovável, principalmente entre aqueles a quem lidera? Caso isso ocorresse, estaríamos, de imediato, numa situação de perigo, visto que a carne e o sangue são tomados de pruridos pelos louvores, submetendo-os a seus propósitos. De outra parte, se meu irmão não me elogia, é ele quem peca. “Se és louvado, estás em perigo; se não és, é teu irmão que está”, diz Agostinho em seu comentário ao Sermão do Monte. Portanto, é necessário que o Espírito Santo esteja presente para que sejamos moderados em relação ao outro, de modo que o bispo conceda a glória a Deus, e que aquele que o ouve honre o bispo por causa de Cristo, Hb 13.7. Assim, pois, deve meditar o pastor, o bispo: embora te encontres numa posição superior e tenhas recebido dons melhores, os juízos de Deus, não obstante, são incompreensíveis. Pode acontecer que Deus volte seu olhar para alguém numa situação muito inferior, e que o mais baixo lhe seja agradável, mesmo que te encontres numa posição elevada. É possível que um só denário lhe agrade mais do que dez mil talentos. Um exemplo disso encontra-se em Lucas [7.36-48]: obras de inestimável valor são realizadas, tratando Deus publicamente com todo louvor. A pecadora, por sua vez, não faz nada disso. Cristo rejeita as obras esplêndidas e magníficas do fariseu. Ele proclama e gaba o que fez a pecadora e coloca sobre o miserável fariseu o fardo de muitos pecados. Sim, sim, assim tu és! Portanto, que toda pessoa o tema; ele despreza os soberbos, e dá atenção aos humildes, não fazendo acepção de pessoas. Por isso, nossa humildade não é monástica, pois esta é a soberba e a humildade em si mesma e não a humildade em Cristo. Trata-se de uma simulação de humildade. Os mais humildes são, na verdade, soberbos no mais alto grau. A vossa humildade, porém, certamente, possui os mais altos dons e, contudo, teme a Deus, visto que ele julga maravilhosamente. Eu poderia perecer com meus dons, fama e honra. Aqueles que conhecem a Cristo, associam-se a ti de maneira apropriada. Quem conhece a Cristo, deve ser honrado e ter os irmãos em alta estima. Porém, não deve fazer uso dessas coisas, mas passar de largo, como se não as visse, pensando, ao contrário: “Eu sou um servo e me empenharei para servir ao irmão, mesmo ao menor”. Desse modo, ele deve humilhar-se por meio de Cristo. Quem tiver esse sentimento, não pode ser soberbo, pois esse espírito não tolera a soberba. Ele diz: seguramente, sei mais do que outros, mas de que adianta isso se alguém cai por causa de uma única palavra minha, etc.? Assim, o pavão soberbo acaba largando suas penas. “Eu me gloriarei em ti e não em meus dons, pois te conheço e te compreendo”. Por esses meios, a soberba fica proibida.


(LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. vol. 10. Interpretação do Novo Testamento. Gálatas-Tito. Ed. Sinodal-Ed. Concórdia, São Leopoldo, Porto Alegre, 2008, pp. 580-583)

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