sábado, 11 de dezembro de 2010

Quando tirar os sapatos...

Abaixo segue uma crônica de Michal Kepp, publicada no caderno Equilíbrio do jornal Folha de S. Paulo de 07/12/10, em que ele dá um enfoque bastante humano (e interessante) ao ritual de se tirar os sapatos, atitude que geralmente carrega um simbolismo muito mais religioso, como no caso de Moisés (Êxodo 3:5) e Josué (Josué 5:15):

Basta tirar os sapatos

Ficar descalço chama a atenção para furos nas nossas meias. Mas a vulnerabilidade nos humaniza

"GENTE INTERESSANTE" não é um clube exclusivo.

Qualquer um pode entrar, porque todos são interessantes para alguém. O grau de interesse depende do que a pessoa revela de si, e não do quanto ela mostra. Não precisa fazer um striptease. Basta tirar os sapatos e esperar os resultados.

Sim, tirar os sapatos traz riscos: chama a atenção para os buracos nas nossas meias.

Mas ser vulnerável humaniza e pode convencer o outro a também tirar os sapatos. A maioria precisa de um empurrãozinho para fazer isso.

Nas festas, uso álcool. Nas minhas crônicas, tiro bem mais do que os sapatos, porque o público está distante e normalmente é simpático.

Por isso, aos leitores já revelei minha transa com uma prostituta, a vez que botei no jornal um classificado amoroso, minhas dificuldades de lidar com a adolescência dos meus enteados, meu derrame e alguns dos meus defeitos (mas não os piores). Eu já escrevi até sobre meu pelo corporal. Mas, mesmo assim, eu nunca tiro tudo.

Todas essas confissões têm o propósito de provocar alguma reação: risos, lágrimas, raiva ou reflexão. Enfim, comover aqueles que conseguem se identificar comigo e se sentir menos alienados, menos solitários. Às vezes, essa cumplicidade se confirma em um e-mail que diz: "Sua crônica expressou algo que sempre senti e queria dizer, mas nunca consegui"."

Há pouco tempo, eu contei a um amigo que, durante uma viagem recente à minha cidade natal, visitei, pela primeira vez, o túmulo da minha mãe, que morreu quando eu tinha dez anos. E quando vi a lápide me emocionei tanto que a abracei como se fosse seu corpo. Daí ele me contou que há dois anos, no Peru, ele visitou a montanha onde ocorreu o acidente aéreo que matou seus pais quando ele tinha 13 anos. Quando viu uma cruz enorme fincada no lugar do desastre, ele se debruçou no solo diante dela e abriu os braços para dar nos seus pais o mesmo abraço simbólico que dei em minha mãe. Foi uma das raras vezes que ele se abriu comigo.

Ele tirou os sapatos porque eu tirei também. E quando duas pessoas começam a se expor, ambas ficam mais interessantes.

Uma pessoa pode ser interessante antes de abrir a boca. Pode ser também que ela nunca tire os sapatos e só revele que prefere se esconder.

Mas quem não corre o risco de se expor também paga um preço. Afinal, uma pérola só tem valor fora da ostra.


MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 27 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)

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