Vítima de complicações do mal de Parkinson e recusando quaisquer terapias paliativas nos últimos meses de vida, faleceu ontem na Itália, aos 85 anos de idade, o cardeal-arcebispo emérito de Milão, D. Carlo Maria Martini, um dos prelados mais influentes na Igreja Católica na segunda metade do século XX, conhecido dentro e fora da igreja por sua maneira digna e respeitosa de conviver e dialogar.
Pensador brilhante e escritor profícuo, quando via que era necessário, não tinha receio algum em confrontar abertamente os papas João Paulo II ou Bento XVI, que mesmo assim tinham por ele profundo respeito.
Em 2008, destacamos aqui no blog - no artigo "Semper reformanda" - o seu elogio a Lutero e o chamado a uma nova Reforma na Igreja Católica. A notícia abaixo vem pelo IHU:
Em 2008, destacamos aqui no blog - no artigo "Semper reformanda" - o seu elogio a Lutero e o chamado a uma nova Reforma na Igreja Católica. A notícia abaixo vem pelo IHU:
Martini e o cristianismo aberto, sofrido e dialogante
A morte do cardeal provocou grande emoção na Igreja e no mundo secular, com o qual o incansável bispo biblista sempre buscou o debate.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no sítio Vatican Insider, 31-08-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Com a morte do cardeal Carlo Maria Martini, desaparece um grande protagonista da vida da Igreja dos últimos 30 anos. Arcebispo de Milão por 22 anos, Martini foi muitas vezes considerado quase o antagonista de João Paulo II, o papa que o havia escolhido para enviado com apenas 52 anos à frente da maior diocese da Europa, entre as mais importantes do mundo.
O cristianismo de Martini sempre foi considerado aberto, sofrido, dialogante. Basta lembrar o que significou a "Cátedra dos não crentes", através da qual o cardeal queria dialogar com quem não crê, com quem está em busca, com que é dilacerado pelas dúvidas. Mas não devemos esquecer que o cardeal emérito de Milão, falecido nessa sexta-feira depois de uma longa doença, foi o arcebispo da "Palavra de Deus", da meditação, da oração, da eucaristia. E, portanto, seria errado querer esmagá-lo apenas sob o clichê do "bispo liberal", pronto para servir de contraponto ao papa e à doutrina oficial.
É verdade que, muitas vezes, nos anos do pontificado de Wojtyla – que coincidiram quase inteiramente com as do seu episcopado –, Martini expressou aberturas ou se mostrou possibilista em certas matérias, quase querendo marcar uma diferença com a linha romana. Mas também é verdade que muitas vezes as suas frases ou declarações foram enfatizadas para contrapô-lo a João Paulo II, apresentando-o durante ao menos dez anos como o mais "papável", candidato de ponta da ala liberal.
Enquanto outras afirmações – basta pensar nas palavras proferidas em defesa da vida e contra o aborto, a favor da igualdade escolar ou para propor uma integração atenta e inteligente dos muçulmanos presentes na cidade que não tinha nada a ver com um certo "bonismo" – passaram quase despercebidas.
Mesmo com relação a Bento XVI, seu coetâneo, professor como ele, Martini não deixou de marcar algumas diferenças. E não só por ter apresentado, como o fez, objeções ao livro Jesus de Nazaré (certamente apreciadas por Ratzinger mais do que muitos elogios indistintos). O cardeal jesuíta, a respeito dos divorciados em segunda união, reconhecimento das uniões gays e bioética, de fato, manifestou posições que geraram discussão também nos últimos anos e pareceu possibilista, para além da própria doutrina moral católica.
No entanto, hoje, o que mais chama a atenção, mais do que a "Cátedra dos não crentes" ou da "Escola da Palavra", dos seus inúmeros livros – que ele confidenciava nunca ter escrito, tendo sido quase sempre degravações dos seus discursos – foi talvez o modo pelo qual ele enfrentou a sua doença, o mal de Parkinson, o mesmo mal que havia dificultado os últimos anos do Papa Wojtyla.
Martini, cada vez mais impedido na fala e nos movimentos, se consumiu lentamente, parecendo ainda mais essencial. Ele sempre havia sido capaz de palavras profundas e nunca banais, palavras de esperança até mesmo para quem estava distante da fé. Mas o sofrimento do último período o tornou próximo e companheiro de estrada para muitos doentes.
Seria equivocado, ao recordá-lo no dia em que morreu, falar da sua recusa à obstinação terapêutica por ele manifestada nos últimos tempos, como se isso representasse o último contraponto de Martini diante da doutrina "oficial". Vale a pena lembrar que a Igreja não é favorável à obstinação terapêutica, e que o Papa Wojtyla também não quis voltar ao Hospital Gemelli após a última crise.