Que o Vaticano é um ente político na configuração de Estado soberano, sujeito às intrincadas relações diplomáticas (muitas vezes lascivas) da geopolítica mundial, isso todo mundo já sabia.
Igualmente conhecida é a influência conservadora que o Vaticano procura imprimir nos países que têm maioria da sua população católica, como acontece na América Latina, onde o Brasil está - obviamente - incluído.
Basta recordar as declarações supostamente imparciais e desinteressadas de vários bispos católicos quando chega a época das eleições gerais brasileiras. No que, lembremos a seu favor, são acompanhados por muitos pastores evangélicos.
Diga-se de passagem que não há nada de errado em padres e pastores tentarem influenciar seus rebanhos. O problema ocorre quando tentam travestir ideologia de teologia e apresentar apoios políticos como dogmas de fé.
Entretanto, parafraseando Bismarck, que disse que "leis são como salsichas; é melhor não saber como são feitas", é do senso comum (e de bom tom) fingirmos que não sabemos como são disputados e acordados os jogos políticos na arena (vale-tudo) das relações internacionais.
Agora, portanto, podemos também fingir uma certa surpresa, já que acaba de vir à tona - via Wikileaks - o que muita gente imaginava, mas não tinha como comprovar: o Vaticano atua como braço político dos Estados Unidos, assim meio que fazendo do papa um moleque de recados do Tio Sam.
Justo ele que se autointitula o "vigário" ("substituto", "representante") de Cristo na Terra. Quem diria...
Moral da história: tome cuidado com as salsichas, venham de onde vierem. As notícias transcritas abaixo foram publicadas pelo insuspeito diário conservador O Estado de S. Paulo nos links indicados no título de cada manchete:
Cerca de 130 telegramas mostram que pontificado de Bento XVI agiu nos bastidores para influenciar região, incluindo articulação com EUA para que avião que traria papa ao País em 2007 fizesse escala forçada em Caracas para pressionar Chávez
Jamil Chade
GENEBRA - O regime cubano, a "ameaça" de Hugo Chávez, a crise em Honduras ou mesmo os acordos comerciais do Brasil. O Vaticano sob o pontificado de Bento XVI, longe de ter uma postura de mero espectador, adotou iniciativas políticas nos bastidores para influenciar a situação na América Latina nos últimos anos e defender seus interesses.
É o que revelam mais de 130 telegramas vazados pelo site WikiLeaks, e obtidos com exclusividade pelo Estado, apontando para as entranhas das relações políticas do Vaticano desde 2005 na região latino-americana, que representa mais de 40% de seus fiéis no mundo.
Tentando ter um papel político central no continente, a Santa Sé tratou de algumas das crises no hemisfério com o presidente dos EUA, Barack Obama. Documentos revelam que o cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado do Vaticano, fez propostas concretas para o governo americano sobre a situação em Honduras quando se reuniu, em 10 de julho de 2009, com o presidente Obama.
Num telegrama de 15 de julho de 2009, a embaixada americana na Santa Sé relata um encontro de diplomatas americanos com monsenhor Francisco Forjan em que o Vaticano rejeita chamar a retirada de Manuel Zelaya da presidência como um "golpe de Estado". A Igreja pedia ao governo americano que insistisse com seus parceiros para que explicassem ao público as "ações anticonstitucionais de Zelaya que precipitaram a crise". O líder da Igreja nesse assunto era o cardeal Oscar Rodriguez Maradiaga, arcebispo de Tegucigalpa e hoje considerado como um dos potenciais candidatos a papa.
Um dos temas mais constantes nas reuniões entre diplomatas americanos e cardeais do Vaticano é a situação de Cuba. Um telegrama de 19 de agosto de 2009 revela que uma viagem de cardeais e bispos americanos a Cuba naquele ano não era apenas uma visita episcopal. A meta era também a de pressionar o governo de Havana em relação aos prisioneiros políticos, um pedido de Washington.
O telegrama escrito pela representação americana em Cuba conta que o cardeal de Boston, Sean O’Malley, um dos que estarão no conclave, reuniu-se com o presidente da Assembleia Nacional de Cuba, Ricardo Alarcón. O documento revela que os cardeais e bispos relataram ponto a ponto ao governo americano como havia sido a conversa com Alarcón. "Apreciamos o fato de a delegação (de religiosos) ter levantado os problemas de prisioneiros políticos", indicou o telegrama.
No dia 15 de janeiro de 2010, o Vaticano fez uma sugestão concreta ao governo americano para enfraquecer o regime cubano: baratear os custos de ligações entre Cuba e os EUA. A proposta foi apresentada por monsenhor Nicolas Thevenin, conselheiro político de Bertone. "Isso poderia ter um impacto positivo na promoção de uma mudança política", indicou.
A Venezuela de Hugo Chávez é apresentada pela Santa Sé como a grande preocupação na região. Para Accattino, um endurecimento da posição dos EUA diante de Cuba poderia acabar ajudando Chávez, "o novo sucesso de Fidel Castro na América Latina". "A diferença é que ele tem os recursos do petróleo", alertou. O Vaticano, em diversas conversas com diplomatas americanos, deixou claro que Caracas vinha pressionando a Igreja e transformado a Santa Sé em um de seus alvos de crítica.
Pressão contra Chávez. Três anos antes, no dia 1.º de fevereiro de 2007, o embaixador americano em Caracas, William Brownfield, e o cardeal Jorge Urosa Savino se reuniram na casa do núncio apostólico na capital venezuelana para discutir a possibilidade de que o papa Bento XVI usasse sua viagem que faria naquele ano ao Brasil para pressionar Chávez. Uma viagem oficial a Caracas estaria descartada pelo Vaticano. "Chávez não o convidaria", disse o cardeal.
Os dois passaram a debater a possibilidade de que o avião que traria o papa de Roma a São Paulo, em maio, fizesse uma parada de 45 minutos em Caracas, com a justificativa de reabastecer. Nesse período, o papa receberia bispos e faria uma declaração. "O cardeal concordou que qualquer parada teria uma importância simbólica", indicou o telegrama, apontando para a reação positiva de Savino. A escala acabou não ocorrendo.
Jamil Chade
GENEBRA - 'Desde o início do pontificado de Bento XVI, em 2005, a tendência política na América Latina vem chamando a atenção da Igreja, de acordo com telegramas divulgados pelo Wikileaks.
Num telegrama de 3 de abril de 2006, a diplomacia americana na Santa Sé revela a intervenção da Igreja, pedindo uma ação dos EUA sob o governo de George W. Bush na América Latina. No dia 28 de março daquele ano, o cardeal mexicano Juan Sandoval se encontraria com o embaixador americano na Santa Sé. "Sandoval repetiu o que alguns de nossos interlocutores no Vaticano estão apontando quanto às preocupações sobre líderes de esquerda na América Latina - Castro, Chávez, Evo Morales, Nestor Kirchner, Bachelet, e talvez Lopez Obrador - e chamou isso de uma tendência perigosa", indicou o telegrama. "Ele nos pergunta se o presidente Bush poderia ajudar", aponta.
Segundo o governo americano, Washington já teria tratado disso com as autoridades no Vaticano e indicou que Bush também já teria falado do assunto com a Nunciatura Apostólica em Washington.
Haiti - O esforço do Vaticano em ter um papel político chega até mesmo ao Haiti. Num telegrama de 10 de janeiro de 2010, a diplomacia americana revelava como a Santa Sé estava preocupada com a possibilidade de que o ex-padre e ex-presidente Jean Bertrand Aristide retornasse a Porto Príncipe.
Figuras do alto escalão do Vaticano, como Peter Wells e Ettore Balestrero, teriam acionado religiosos com contatos com Aristide, que na época vivia na África do Sul, para convencê-lo a não voltar ao Haiti.
Num telegrama da embaixada americana junto ao Vaticano, logo após a vitória de Joseph Ratzinger no conclave de 2005, um cardeal americano revelaria ao governo de Washington. Bento XVI nao dará nenhum sinal ou nem tomará decisões em relação à América Latina apenas para ganhar simpatia ou aplausos.