O capítulo 4 de Eclesiastes começa com um libelo contra a injustiça e toda forma de opressão, e com uma conclusão pessimista bem ao estilo do Pregador, que considera mais feliz quem já morreu (v. 2) e ainda mais feliz ainda quem ainda não nasceu, e portanto não viu o que se faz "debaixo do sol" (v. 3).
Estes versículos devem ser lidos ainda na esteira do término do capítulo 3, em que, nos últimos versículos, o Pregador dá a "receita" da vida feliz, que é "alegrar-se o homem nas suas obras, porque essa é a sua recompensa" (3:22).
Por isso, o Pregador volta a falar do trabalho no v. 4, e diz que todo o progresso e todas as obras das mãos do homem e de sua inteligência provêm de um sentimento básico humano, que é a inveja.
Esta é uma maneira bem simples de revelar algo que hoje, quase 3.000 anos depois do Pregador ter escrito Eclesiastes, é um dado comprovado pela História recente, ou seja, a competição entre pessoas, povos e nações é a força motriz do progresso e desenvolvimento econômico.
Esse fenômeno já foi devidamente observado, por exemplo, desde "A Riqueza das Nações", de Adam Smith (1776), até "A Vantagem Competitiva das Nações", de Michael Porter (1989), que são duas obras referenciais nessa questão.
Além disso, mais estritamente no campo da filosofia, o Pregador já percebia, mais de 25 séculos antes de Nietzche, o poder da inveja nas relações humanas, algo que o filósofo austríaco somente escreveria em 1887, na sua "Genealogia da Moral".
De fato, Nietzche e Salomão têm uma visão profundamente existencialista do mundo e a grande diferença entre ambos é que o primeiro tem limites muito bem estabelecidos, o aqui e agora, enquanto o último sempre recorre à transcendência e mantém a eternidade em perspectiva (e um Controle Maior além do nosso vão "comando das circunstâncias").
Por isso Salomão insiste tanto em dizer que "também isto é vaidade e correr atrás do vento".
Nos versículos seguintes (5 e 6), ele contrasta dois ditados da "sabedoria" popular do seu tempo, que estão melhor traduzidos na versão da Bíblia do Peregrino:
5 É que "o néscio cruza os braços e vai-se consumindo".
6 Sim; mas "é melhor um punhado com tranqüilidade, do que dois com esforço".
Assim, até hoje temos a visão de que é tolo, preguiçoso, vagabundo, quem não trabalha duro e prefere cruzar os braços, daí o provérbio antigo dizer que ele não consome o que produz, mas se consome a si mesmo ("come a própria carne" na Almeida Revista e Atualizada).
Obviamente, o Pregador não está falando de canibalismo, como as outras versões portuguesas podem dar a entender ao leitor mais afoito, mas Salomão está justamente contrastando com o ditado seguinte (do v. 6), em que reforça o valor da tranquilidade, do trabalho sem esforço exagerado (e inútil), algo que também recentemente vem sendo redescoberto pelos filósofos, como Domenico de Masi e seu "Ócio Criativo".
Dentro desse espírito, o Pregador critica o homem solitário, sem família, que, no entanto, não pára de trabalhar, mesmo não tendo a quem deixar o fruto do seu suor (v. 8).
Ele não gosta da solidão na vida e no trabalho, pois diz que "melhor é serem dois do que um, porque têm melhor paga do seu trabalho" (v. 9).
Obviamente, nem sempre é possível que dois empregados tenham um melhor salário do que quando somente um é contratado, mas o que o Pregador valoriza não é a recompensa material pelo trabalho, mas o fato de ter alguém com quem compartilhar, não só o trabalho em si, mas também o seu fruto.
Se alguém cair e estiver só, não haverá quem o levante (v. 10), e se estiverem trabalhando ao relento, como era comum na Palestina daquela época, onde as atividades pastoris predominavam, não poderiam dormir lado a lado na noite fria do deserto (v. 11), aproveitando o calor dos seus corpos.
Da mesma maneira, se fossem dois, eles podiam se defender melhor dos inimigos, fossem eles outros homens ou animais. Toda essa analogia, é claro, aponta para o valor da família no contexto agropastoril daquela época e daquele lugar.
Aqui o Pregador faz uma comparação com o "cordão de três dobras" (v. 12), e muitos estudiosos enxergam nessa metáfora uma referência não só ao fato de que, quando há dois unidos em Espírito, ali está um terceiro, Deus, como também um símbolo da Trindade, lembrando também que Jesus disse que "onde se acham dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles" (Mateus 18:20).
O capítulo 4 finaliza com uma espécie de autocrítica do Pregador, provavelmente já idoso, mas que se compara a um "rei velho e insensato que já não se deixa admoestar", dizendo que um "jovem pobre e sábio... que saia do cárcere para reinar ou nasça pobre no reino" é melhor do que ele (vv. 13-14).
Mesmo que todo o povo siga o jovem que ficará no lugar do rei, ele também envelheceria e o ciclo se repetiria na mesma monotonia do começo do livro (1:4-11).
É interessante observar que, após a morte de Salomão, o seu reino seria dividido em Sul (Judá), governado por seu filho Roboão; e Norte (Israel), governado por Jeroboão (1ª Reis 11 e 12), e a gota d'água que faltava para esse divisão foi exatamente o fato de Roboão, herdeiro por direito ao trono de todo Israel, ter-se recusado a seguir o conselho dos anciãos, preferindo ouvir os seus amigos de infância.
O próprio Salomão, digamos, envelhecera mal, impondo muitos tributos e obrigações a todo o povo, e já não se deixava admoestar, mas o mesmo fez seu filho, Roboão, levando o reino que seu pai construíra à divisão irreversível, e as 10 tribos que formaram o reino do Norte posteriormente foram apagadas do mapa e da bênção de Deus.
A tradição rabínica tem uma interpretação, relatada por John Gill, que me parece pertinente para este contraste entre o rei ancião e o jovem pobre e sábio:
Daí, penso eu, podemos fazer uma analogia com os ensinos de Paulo sobre a nova criatura (2 Coríntios 5:17, Gálatas 6:15) e o homem velho (Romanos 6:6, Efésios 4:22, Colossenses 3:9), o que remete também à pergunta de Nicodemos a Jesus: "Como pode um homem nascer, sendo velho?" (João 3:4).
Este, digamos, despojamento da velha criatura, e sua substituição pelo novo homem, envolve o risco, também, de chegarmos a um ponto em que pensamos que já sabemos tudo, que não precisamos mais ser ensinados nem admoestados.
Talvez por isso mesmo, na carta à igreja de Éfeso, Jesus lhes tenha dito que haviam deixado o primeiro amor (Apocalipse 2:1-7).
Leitura seguinte: Revisitando Eclesiastes - capítulo 5
Os judeus, na sua Midrash, Jarchi e outros, interpretam isto, alegoricamente, como a imaginação do bem e do mal nos homens, o princípio da graça, e a corrupção da natureza; um é o novo homem, o outro é o velho homem; o novo homem é melhor que o velho Adão: o Targum aplica isto a Abraão e Ninrode; aquele é o jovem pobre e sábio, que temeu a Deus, e o adorou desde cedo; o último é o rei velho e tolo, que era um idólatra, e se recusava a ser advertido por sua idolatria.
Daí, penso eu, podemos fazer uma analogia com os ensinos de Paulo sobre a nova criatura (2 Coríntios 5:17, Gálatas 6:15) e o homem velho (Romanos 6:6, Efésios 4:22, Colossenses 3:9), o que remete também à pergunta de Nicodemos a Jesus: "Como pode um homem nascer, sendo velho?" (João 3:4).
Este, digamos, despojamento da velha criatura, e sua substituição pelo novo homem, envolve o risco, também, de chegarmos a um ponto em que pensamos que já sabemos tudo, que não precisamos mais ser ensinados nem admoestados.
Talvez por isso mesmo, na carta à igreja de Éfeso, Jesus lhes tenha dito que haviam deixado o primeiro amor (Apocalipse 2:1-7).
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