A matéria é do Estadão:
Religioso, Bach via em música profana
'divertimento do espírito'
Compositor criou mais música profana do que sacra em seus anos vividos em Leipzig
João Marcos Coelho*
A imagem que temos hoje de Johann Sebastian Bach (1685-1750) é a de um compositor capaz de introduzir estudantes na música com as tecnicamente fáceis Invenções a Duas e Três Vozes e o Pequeno Livro de Ana Magalena Bach, mas também de desafiar os maiores virtuoses com o Cravo Bem Temperado, sem esquecer a grandiosidade das 200 cantatas, da Missa em Si Menor e da Arte da Fuga, obra abstrata sem indicação de instrumentação.
Alfa e ômega para os músicos, Bach é o Himalaia do público. Sua imagem convencional é a do homem profundamente religioso que compunha uma cantata por semana como responsável pela música em um punhado de pequenas cidades espalhadas por um raio de cem quilômetros – carreira provincial que culminou na Igreja de Santo Tomás, em Leipzig, em seus derradeiros 27 anos.
Um retrato curiosamente desmontado por um dos maiores especialistas na sua música sacra, o inglês John Eliot Gardiner, responsável pela gravação de todas as cantatas, as paixões, a Missa e o Oratório de Natal. Sua devoção a Bach é tamanha que sua gravadora chama-se SDG, as iniciais da expressão que Bach costumava colocar no pé de seus manuscritos: Soli Deo Gloria. Mesmo num ritmo alucinante de gravações e concertos, comemorou seus 70 anos, em 2013, concluindo e lançando na Inglaterra seu livro Música no Castelo do Céu.
Herdamos do século 19 a imagem que temos de Bach, diz Gardiner, como o organista e compositor de cantatas, religioso por excelência. Alguns números desmentem isso: ele compôs, em 27 anos de atividade em Leipzig, 800 horas de música sacra; e 1.200 horas de música profana em dez anos à frente do Collegium Musicum. Numa peça publicada em 1738, Bach acrescentou ao costumeiro “Soli Deo Gloria” o seguinte: “Para a glória de Deus e o legítimo divertimento do espírito (...) se não se leva isso em conta, não há música verdadeira.”
O capítulo sobre o Bach profano o mostra divertindo-se semanalmente no Café Zimmermann, comandando uma orquestra para dar autênticos shows aos cultores da bebida que, então recém-chegada à Europa, era sinônimo de droga quase proibida. Bach interessou-se pela música profana por causa das constantes brigas com o Conselho da cidade, que lhe tolhia as iniciativas e cortava verbas. De outro lado, seus 20 filhos exigiam que ele se multiplicasse: comercializava instrumentos. Os shows no Zimmermann complementaram sua renda. Ele dirigiu o Collegium Musicum entre 1728 e 1737; nos dois anos seguintes foi “artista convidado” e em 1739 retomou a titularidade até 1741. Anualmente, fazia 61 apresentações no Café: no verão, das 16 às 18 horas, na parte externa, com as mesas ao ar livre; no inverno, à noite, na parte fechada. Para dar mais brilho, compôs as quatro aberturas orquestrais e adaptou para cravo solista concertos originais para violino de Antonio Vivaldi. Um dos hits bachianos era a Cantata do Café, música e versos deliciosos cantando o nirvana que proporcionava a novíssima bebida. Um pesquisador imaginou o repertório desses concertos: Bach esbanjando técnica no estonteante Prelúdio e Fuga em Dó Menor do Cravo (BWV 847); a Suíte para Orquestra em Ré Maior (BWV 1068); e o Concerto em Fá Maior para Cravo, Duas Flautas Doces e Cordas (BWV 1057), que nada mais é do que um arranjo do Concerto de Brandenburgo no. 4, com o próprio solando e liderando os músicos.
Este Bach profano revive no recentíssimo CD Bach Trios (Nonesuch), aventura fascinante de três músicos notáveis: o bandolinista californiano Chris Thile, 35 anos, que surgiu com o grupo de bluegrass progressivo Nickel Creek; o violoncelista Yo-Yo Ma, 61 anos, há décadas superstar que rompeu fronteiras artísticas; e o contrabaixista Edgar Meyer, de 56 anos. Três músicos de experiências, formações e personalidades muito diferentes, que comprovam o acerto da afirmação do jovem compositor californiano Timo Andres, 32 anos, em seu texto no encarte: “Junte aleatoriamente um grupo qualquer de músicos numa sala: independente de seus instrumentos, histórias pessoais e personalidades, eles vão acabar encontrando um fundamento comum tocando Bach.”
Como Bach, que intercambiava melodias em textos ora profanos, ora sacros, e brincava literalmente com todas as músicas do mundo europeu que o rodeava, este trio nos convida a um show bachiano num formato tipicamente barroco, o da trio sonata, em que dois ou três instrumentos melódicos eram acompanhados pelo cravo, que fazia a base harmônica (o chamado baixo contínuo). Aqui, o bandolim ora arpeja como o contínuo, por exemplo, no Prelúdio Coral para Órgão BWV 650; ora assume o comando melódico como no Vivace Inicial da Trio Sonata BWV 530 que abre o CD. O violoncelo de sonoridade ampla democraticamente dá bastante espaço ao bandolim, mas por momentos brilha de modo intenso, como em outro Coral para Órgão, BWV 639.
Tudo aqui é muito conhecido. As melodias frequentam o inconsciente coletivo. Talvez o ponto culminante da perfeita integração entre eles ocorra na Sonata BWV 1029, original para viola da gamba. Na seção central da fuga, uma linha contínua é tocada pelos três instrumentos sucessivamente, como se fosse uma corrida de revezamento, em que é perfeita a passagem do bastão (oops!, da melodia) de um para outro. Isto sim é música que alimenta a alma, como queria o “Soli Deo Gloria” de Bach. Mas sem esquecer que a música é também um “legítimo divertimento do espírito”. Pois só assim “há música verdadeira”.
Para o nosso deleite, "A Arte da Fuga", BWV 1080 - T. Koopman and T. Mathot:
Uma caricatura de leve para humanizar Bach. |