quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O evangelho de Lucas - parte 38

Até agosto de 2008, publicamos aqui no blog uma série de estudos sobre o evangelho de Lucas, e por uma série de razões que não vêm ao caso agora delinear, paramos no capítulo 22, e deixamos os dois últimos capítulos, 23 e 24, para depois. Só que este "depois" se prolongou demais no tempo e, alertados e gentilmente intimados pelo irmão Robson, do blog Doutores de Almas, voltamos a compartilhar as nossas impressões sobre o final do evangelho de Lucas, que, para que a leitura não fique muito extensa, dividiremos em quantas partes forem necessárias para tratar essa riqueza de detalhes com a profundidade que lhe for pertinente.

CAPÍTULO 23:1-26

O capítulo 23 do evangelho de Lucas começa com as intrigas políticas da Jerusalém da época. Hoje é difícil imaginar isso, mas a Judeia era um território ocupado que tinha pouca importância ao Império Romano. Era visto muito mais como um fardo a ser suportado no complicado jogo geopolítico e militar do primeiro século. Para os fariseus, entretanto, Jerusalém era todo o seu mundo, o seu microcosmos, sobretudo diante da impossibilidade de voltarem ao esplendor dos reis do passado, em especial Davi e Salomão. Havia um rei do povo judeu, Herodes, um fantoche tolerado pelo Império, que servia de joguete aos interesses superiores, além de um governador designado pelo imperador, Pilatos, que tinha a palavra final sobre o povo judeu, a não ser que se tratasse de um cidadão romano, como no caso de Paulo, que apelou a esta condição (que ele detinha) para se defender das muitas perseguições e – afinal - ser julgado em Roma (Atos 16:37; 22:25; 25:11 e 26:32).

O temor do Sinédrio era, portanto, que Jesus colocasse em risco o seu pequeno mundinho de vãs honrarias e lautos banquetes, e eles sabiam que não conseguiriam que Pilatos o condenasse à morte com base apenas naquilo que entendiam como blasfêmia contra sua religião. Por isso reúnem um número grande de fariseus (v. 1) para ir à presença do governador romano, com o objetivo claro de impressioná-lo quantitativamente. Afinal, ali estava a nata da elite religiosa e social do território ocupado. Ainda que o v. 1 se refira a “toda a multidão” (ARC) ou “toda a assembleia” (ARA), é muito provável que dela não participasse José de Arimateia, ou ainda – improvável, mas não descartável - que ele tivesse ido à presença de Pilatos na esperança de contra-argumentar a favor de Jesus, tanto que posteriormente (vv. 50 a 52) vai pessoalmente à presença do governador para pedir o corpo de Jesus. Como, no plano do Sinédrio, eles sabiam que era quase impossível que Jesus fosse condenado à morte por blasfêmia - uma tecnicalidade religiosa que eles próprios sabiam que Jesus não havia cometido -, formularam a acusação a Jesus com base em 3 crimes que ele teria cometido (v. 2), o que era uma gritante mentira, já que o Mestre havia tomado atitude contrária àquela de que era acusado:

1) “perverter a nação contra César” – Jesus não buscou a confrontação direta com o poder político (Mateus 12:19)
2) “proibir dar o tributo a César” – Jesus ensinou a “dar a César o que é de César” (Lucas 20:25)
3) “dizendo-se o Cristo, e o rei” no lugar de César – Jesus não negou que havia nascido para ser o rei dos judeus, mas deixou claro que seu reino não era deste mundo (João 18:36) e que ainda não havia chegado a hora de implantá-lo na Terra (João 6:15; Lucas 19:11-27; Atos 1:6,7)

A única acusação que Pilatos dá algum tipo de importância era se, de fato, Jesus dissera ser o rei dos judeus (v. 3), mas diante da resposta enviesada do Mestre (“Tu o dizes”), trata-se de desvencilhar rapidamente do problema, dizendo que não via nenhuma culpa naquele homem (v.4), atitude que não serviu para acalmar os ânimos dos fariseus presentes, que seguiram acusando-o de insuflar uma rebelião do povo desde a Galileia e por toda a Judeia (v. 5). A palavra Galileia soou como música aos ouvidos do acomodado Pilatos, que, certificando-se de que Jesus era, de fato, galileu (v. 6), vê nesta condição uma chance de ouro de não entrar em encrenca alheia e se livrar do problema, já que Herodes Antipas, o responsável por aquela região, se encontrava em Jerusalém naquele exato dia para as festividades da Páscoa (v. 7), e a lei romana preceituava que o criminoso fosse julgado no local onde havia cometido a suposta infração. É interessante observar como a narrativa de Lucas passa a ter um ritmo frenético, com tudo acontecendo muito rapidamente, e no versículo seguinte (v. 8), Jesus já está na presença de Herodes, que se alegra muito ao vê-lo, provavelmente movido pela curiosidade sobre aquela pessoa de quem certamente havia ouvido falar, já que a fama do Mestre se espalhara por todo o seu território. Herodes, aparentemente, queria checar se Jesus era realmente uma ameaça ao seu poder político, pelo que O interrogou com muitas perguntas, não obtendo resposta alguma (v. 9), mesmo diante da incitação explícita dos seus acusadores (v. 10). Aliás, Herodes foi a única pessoa a quem Jesus se recusou a dizer qualquer palavra, o que deve ter incomodado muito o rei, que não só o desprezou como escarneceu dele, vestindo-o com uma “roupa resplandecente” (v. 11), provavelmente uma roupa velha sua que estava destinada a ser descartada. O silêncio de Deus é uma arma poderosíssima e deve tê-lo desconcertado por completo. Foi com esta vestimenta que Herodes devolveu Jesus a Pilatos, e naquele dia ambos reataram não exatamente a “amizade”, mas uma relação minimamente amistosa que superou os problemas pessoais que haviam tido a princípio (v. 12). O processo contra Jesus serviu de quebra-gelo entre os dois governantes políticos da Judeia, um pelo Império invasor, e outro representando a nação judaica, tudo isso motivado pelo poder religioso, o Sinédrio.

Os eventos daquele dia continuaram se atropelando e não restou a Pilatos outra alternativa senão reunir os sacerdotes e o povo (v. 13) que, àquela altura, certamente havia sido acrescido de muitas pessoas que passavam por Jerusalém e, por mera curiosidade talvez, queriam saber aonde ia terminar aquele processo. Mal sabiam eles que, naquele canto perdido do Império Romano, testemunhariam o maior acontecimento da história da humanidade. Pilatos já antecipa o seu veredito (v. 14), dizendo que não havia encontrado nenhuma culpa em Jesus (o que é um testemunho jurídico de sua impecabilidade). Como reforço à sua opinião, cita ainda o próprio Herodes, que também não havia encontrado nada contra o acusado (v. 15), pelo que decide castigá-lo (o que é estranho, já que não o havia considerado culpado de nada, talvez só para agradar a multidão com gotas de sangue do Cordeiro) e soltá-lo (v. 16), aproveitando-se ainda do costume de soltar um preso na Páscoa (v. 17) para agradar os judeus. Claramente, Pilatos estava se cercando de todas as garantias (para si mesmo) de que não condenaria um inocente, mas foi pego de surpresa pela reação da plateia que, muito provavelmente já preparada de antemão, pediu-lhe que soltasse Barrabás (v. 18). Seu plano foi por água abaixo. O relato de Mateus é mais completo a respeito deste episódio (Mateus 27:16-26). Tudo indica que seja de Marcos, o primeiro evangelho a ser escrito, que vem a Lucas (23:19) a informação de que Barrabás estava preso porque havia participado de um motim (algum tipo de rebelião civil), no qual cometeu um homicídio (Marcos 15:7). João é mais econômico ao descrever Barrabás, dizendo que ele era um “salteador” (João 18:40), mas é provável que ele já fosse uma pessoa conhecida por sua militância política no pequeno contingente populacional de Jerusalém, daí não se poder descartar a possibilidade de que muitos dos que agora clamavam por ele de fato o conheciam e viram naquele imbróglio uma oportunidade de salvá-lo em detrimento de um inocente que se apresentava como profeta e não havia feito mal a ninguém. Pilatos se mantém reticente quanto à escolha do povo, e ainda tenta argumentar reiteradamente (vv. 20-23) visando salvar alguém que – a seus olhos – era inocente, mas diante do tumulto e – provavelmente – da ameaça de rebelião num momento em que a cidade estava cheia de peregrinos, se inclina pelo caminho mais fácil e rápido e “decidiu atender-lhes o pedido” (v. 24) levando-o, visivelmente a contragosto, a soltar Barrabás e entregar Jesus ao sacrifício (v. 25). As traduções protestantes perdem um detalhe interessante do v. 24 ao traduzi-lo como "DECIDIR atender-lhes o pedido". Na verdade, existe aqui um termo jurídico grego, ἐπικρίνω (epikrinō), utilizado somente uma vez em todo o Novo Testamento, e que significa a sentença definitiva do processo (ou da "farsa judicial") que condenou Jesus à morte. As traduções católicas são mais felizes nesse particular, ao frisarem esse verbo: a Bíblia do Peregrino diz que "Pilatos DECRETOU que se fizesse o que pediam" e a Bíblia de Jerusalém conta que "Pilatos SENTENCIOU que se atendesse ao pedido deles". Termina ali o grotesco espetáculo de Pilatos na sentença condenatória de Jesus, mas ele voltaria mais tarde ao liberar o corpo de Cristo para que José de Arimateia o sepultasse (v. 52).

Começa então o cortejo da crucificação de Jesus, e Lucas segue narrando tudo de forma muito rápida e concisa, pelo que já coloca a cruz nas costas de Simão, o cireneu, no versículo seguinte (26). Jesus havia sido tão surrado e os acontecimentos haviam sido tão extenuantes que não mais lhe restavam forças físicas para prosseguir. Isto devia ser óbvio para os seus executores e revela, por outro lado, a sua mais completa humanidade. Tudo indica que este homem de nome Simão era proveniente de Cirene, cidade próspera de origem grega que ficava no Norte da África, e que hoje está em ruínas no território da Líbia. A exemplo de tantos outros peregrinos de lugares tão distantes, ele provavelmente estava em Jerusalém para as festividades da Páscoa judaica. Devia ser também um homem de compleição física forte, já que foi forçado a carregar a cruz para Jesus, o que talvez revele também que os soldados reconheceram nele –pela vestimenta ou pela cor da pele, por exemplo - um estrangeiro, com quem se sentiam mais à vontade para submeter a essa tarefa obrigatória. Simão terminou participando “por acaso” do maior drama da humanidade. A tradição cristã supõe que, posteriormente, ele tenha se tornado cristão, a partir da inferência do texto de Marcos 15:21, em que o outro evangelista o identifica como “pai de Alexandre e de Rufo”. Não há nenhuma certeza de que esse Alexandre seja o mesmo de Atos 19:33 ou Rufo seja aquele a quem Paulo manda uma saudação especial no final de Romanos (16:13). Existe também uma suspeita remotíssima de que o “Simeão de sobrenome Níger” (“Simeão, o Negro”) a que se refere Lucas em Atos 13:1 seja o mesmo Simão Cireneu, mas se ambos fossem a mesma pessoa o fato teria sido obviamente registrado pelo detalhista Lucas que escreveu tanto o evangelho como o livro de Atos.



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