sábado, 31 de maio de 2008

Eclesiastes - capítulo 4

Leitura anterior: Eclesiastes - capítulo 3

O capítulo 4 de Eclesiastes começa com um libelo contra a injustiça e toda forma de opressão, e com uma conclusão pessimista bem ao estilo do Pregador, que considera mais feliz quem já morreu (v. 2) e mais feliz ainda quem ainda não nasceu, e portanto não viu o que se faz "debaixo do sol" (v. 3). 

Estes versículos devem ser lidos ainda na esteira do término do capítulo 3, em que, nos últimos versículos, o Pregador dá a "receita" da vida feliz, que é "alegrar-se o homem nas suas obras, porque essa é a sua recompensa" (3:22). 

Por isso, o Pregador volta a falar do trabalho no v. 4, e diz que todo o progresso e todas as obras das mãos do homem e de sua inteligência provêm de um sentimento básico humano, que é a inveja. 

Esta é uma maneira bem simples de revelar algo que hoje, quase 3.000 anos depois do Pregador ter escrito Eclesiastes, é um dado comprovado pela História recente, ou seja, a competição entre pessoas, povos e nações é a força motriz do progresso e desenvolvimento econômico, como muitos já escreveram, desde "A Riqueza das Nações", de Adam Smith (1776), até "A Vantagem Competitiva das Nações", de Michael Porter (1989), que são duas obras referenciais nessa questão. 

Além disso, mais estritamente no campo da filosofia, o Pregador já percebia, mais de 25 séculos antes de Nietzche, o poder da inveja nas relações humanas, algo que o filósofo austríaco somente escreveria em 1887, na sua "Genealogia da Moral". 

De fato, Nietzche e Salomão têm uma visão profundamente existencialista do mundo e a grande diferença entre ambos é que o primeiro tem limites muito bem estabelecidos, o aqui e agora, enquanto o último sempre mantém a eternidade em perspectiva (e um Controle Maior além do nosso vão "comando das circunstâncias").

Por isso Salomão insiste tanto em que "também isto é vaidade e correr atrás do vento". Nos versículos seguintes (5 e 6), ele contrasta dois ditados da "sabedoria" popular do seu tempo, que estão melhor traduzidos na versão da Bíblia do Peregrino:

5 É que "o néscio cruza os braços e vai-se consumindo".
6 Sim; mas "é melhor um punhado com tranqüilidade, do que dois com esforço".

Assim, até hoje temos a visão de que é tolo, preguiçoso, vagabundo, quem não trabalha duro e prefere cruzar os braços, daí o provérbio antigo dizer que ele não consome o que produz, mas se consome a si mesmo ("come a própria carne" na Almeida Revista e Atualizada). 

Obviamente, o Pregador não está falando de canibalismo, como as outras versões portuguesas podem dar a entender ao leitor mais afoito, mas Salomão está justamente contrastando com o ditado seguinte (do v. 6), em que reforça o valor da tranqüilidade, do trabalho sem esforço exagerado (e inútil), algo que também recentemente vem sendo redescoberto pelos filósofos, como Domenico de Masi e seu "Ócio Criativo". 

Dentro desse espírito, o Pregador critica o homem solitário, sem família, que, no entanto, não pára de trabalhar, mesmo não tendo a quem deixar o fruto do seu suor (v. 8). 

Ele não gosta da solidão na vida e no trabalho, pois diz que "melhor é serem dois do que um, porque têm melhor paga do seu trabalho" (v. 9). 

Obviamente, nem sempre é possível que dois empregados tenham um melhor salário do que quando somente um é contratado, mas o que o Pregador valoriza não é a recompensa material pelo trabalho, mas o fato de ter alguém com quem compartilhar, não só o trabalho em si, mas também o seu fruto. 

Se alguém cair e estiver só, não haverá quem o levante (v. 10), e se estiverem trabalhando ao relento, como era comum na Palestina daquela época, onde as atividades pastoris predominavam, não poderiam dormir lado a lado na noite fria do deserto (v. 11), aproveitando o calor dos seus corpos. 

Da mesma maneira, se fossem dois, eles podiam se defender melhor dos inimigos, fossem eles outros homens ou animais. 

Aqui o Pregador faz uma comparação com o "cordão de três dobras" (v. 12), e muitos estudiosos vêem aqui uma referência não só ao fato de que, quando há dois unidos em Espírito, ali está um terceiro, Deus, como também um símbolo da Trindade, lembrando também que Jesus disse que "onde se acham dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles" (Mateus 18:20).

O capítulo 4 finaliza com uma espécie de autocrítica do Pregador, provavelmente já idoso, mas que se compara a um "rei velho e insensato que já não se deixa admoestar", dizendo que um "jovem pobre e sábio... que saia do cárcere para reinar ou nasça pobre no reino" é melhor do que ele (vv. 13-14). 

Mesmo que todo o povo siga o jovem que ficará no lugar do rei, mas ele também envelheceria e o ciclo se repetiria na mesma monotonia do começo do livro (1:4-11). 

É interessante observar que, após a morte de Salomão, o seu reino seria dividido em Sul (Judá), governado por seu filho Roboão; e Norte (Israel), governado por Jeroboão (1 Reis 11 e 12), e a gota d'água que faltava para esse divisão foi exatamente o fato de Roboão, herdeiro por direito ao trono de todo Israel, ter-se recusado a seguir o conselho dos anciãos, preferindo ouvir os seus amigos de infância. 

O próprio Salomão, digamos, envelhecera mal, impondo muitos tributos e obrigações a todo o povo, e já não se deixava admoestar, mas o mesmo fez seu filho, Roboão, o que levou o seu reino a se dividir, e as 10 tribos que formaram o reino do Norte posteriormente foram apagadas do mapa e da bênção de Deus.

A tradição rabínica tem uma interpretação, relatada por John Gill, que me parece interessante para este contraste entre o rei ancião e o jovem pobre e sábio:


Os judeus, na sua Midrash, Jarchi e outros, interpretam isto, alegoricamente, como a imaginação do bem e do mal nos homens, o princípio da graça, e a corrupção da natureza; um é o novo homem, o outro é o velho homem; o novo homem é melhor que o velho Adão: o Targum aplica isto a Abraão e Ninrode; aquele é o jovem pobre e sábio, que temeu a Deus, e o adorou desde cedo; o último é o rei velho e tolo, que era um idólatra, e se recusava a ser advertido por sua idolatria.

Daí, penso eu, podemos fazer uma analogia com os ensinos de Paulo sobre a nova criatura (2 Coríntios 5:17, Gálatas 6:15) e o homem velho (Romanos 6:6, Efésios 4:22, Colossenses 3:9), o que remete também à pergunta de Nicodemos a Jesus: "Como pode um homem nascer, sendo velho?" (João 3:4). 

Este, digamos, despojamento da velha criatura, e sua substituição pelo novo homem, envolve o risco, também, de chegarmos a um ponto em que pensamos que já sabemos tudo, que não precisamos mais ser ensinados nem admoestados.

Talvez por isso mesmo, na carta à igreja de Éfeso, Jesus lhes tenha dito que haviam deixado o primeiro amor (Apocalipse 2:1-7).



Leitura seguinte: Eclesiastes - capítulo 5


quinta-feira, 29 de maio de 2008

Melhor desligar o celular na igreja...

quarta-feira, 28 de maio de 2008

"Semper reformanda"

Muita gente já sabia que o Cardeal Martini era uma referência do reformismo e da modernização no Vaticano, inclusive o cardeal de São Paulo, D. Odilo Scherer, diz espelhar-se nele (ver matéria da Época), mas agora ele está deixando mais claras as suas opiniões, conforme a matéria abaixo, publicada no El País e reproduzida no UOL:


Cardeal Martini pede reforma da Igreja


O influente religioso elogia Lutero, defende o debate sobre o celibato e a ordenação de mulheres e reclama uma abertura do Vaticano em termos de sexo

Juan G. Bedoya
Em Madri

"A Igreja deve ter o valor de se reformar." Essa é a idéia principal do cardeal Carlo Maria Martini (nascido em Turim em 1927), um dos grandes eclesiásticos contemporâneos. Com elogios ao reformador protestante Martinho Lutero, o cardeal pede à Igreja Católica "idéias" para discutir, até a possibilidade de ordenar "viri probati" (homens casados, mas de fé comprovada) e mulheres. Também pede uma encíclica que termine com as proibições da Humanae Vitae, emitida por Paulo 6º em 1968 com severas censuras em matéria de sexo.

O cardeal Martini foi reitor da Universidade Gregoriana de Roma, arcebispo da maior diocese do mundo (Milão) e papável. É jesuíta, publica livros, escreve em jornais e debate com intelectuais. Em 1999 pediu diante do Sínodo de Bispos Europeus a convocação de um novo concílio para concluir as reformas postergadas pelo Vaticano II, realizado em Roma entre 1962 e 1965. Agora volta à atualidade porque se publica na Alemanha (pela editora Herder) o livro "Colóquio Noturnos em Jerusalém", como testamento espiritual do grande pensador. É assinado por Georg Sporschill, também jesuíta.

Sem disfarces, o que Martini pede às autoridades do Vaticano é coragem para reformar-se e mudanças concretas, por exemplo, nas políticas sobre o sexo, um assunto que sempre desata os nervos e as iras dos papas, já que são solteiros.

O celibato, afirma Martini, deve ser uma vocação, porque "talvez nem todos tenham o carisma". Espera também a autorização do preservativo. E nem sequer o assusta um debate sobre o sacerdócio negado às mulheres, porque "encomendar cada vez mais paróquias a um pároco ou importar sacerdotes do estrangeiro não é uma solução". Lembra ao Vaticano que no Novo Testamento havia diaconisas.

Vários jornais europeus divulgaram a publicação de "Colóquios Noturnos em Jerusalém", salientando a exortação do cardeal a não se afastar do concílio Vaticano II e a não ter medo de "confrontar-se com os jovens".

Exatamente sobre o sexo entre jovens, Martini pede para não desperdiçar relações e emoções, aprendendo a conservar o melhor para a união matrimonial. E rompe os tabus de Paulo 6º, João Paulo 2º e o atual papa, Joseph Ratzinger. Diz: "Infelizmente, a encíclica Humanae Vitae teve conseqüências negativas. Paulo 6º evitou de forma consciente o problema para os padres conciliares. Quis assumir a responsabilidade de decidir sobre os anticoncepcionais. Essa solidão na decisão não foi, em longo prazo, uma premissa positiva para tratar dos temas da sexualidade e da família."

O cardeal pede um "novo olhar" para o assunto, 40 anos depois do concílio. Quem dirige a Igreja hoje pode "indicar uma via melhor do que a proposta pela Humanae Vitae", afirma.

Sobre a homossexualidade, o cardeal diz com sutileza: "Entre meus conhecidos há casais homossexuais, homens muito estimados e sociais. Nunca me pediram, nem teria me ocorrido, condená-los."

Martini aparece no livro com toda a sua personalidade, de uma curiosidade intelectual sem limites. A ponto de reconhecer que quando era bispo perguntava a Deus: "Por que não nos dá idéias melhores? Por que não nos faz mais fortes no amor e mais valentes para enfrentar os problemas atuais? Por que temos tão poucos padres?"

Hoje, aposentado e doente - acaba de deixar Jerusalém, onde vivia dedicado a estudar os textos sagrados, para ser tratado por médicos na Itália -, limita-se a "pedir a Deus" que não o abandone.

Além do elogio a Lutero, o cardeal Martini revela suas dúvidas de fé, lembrando as que teve Teresa de Calcutá. Também fala sobre os riscos que um bispo tem de assumir, referindo-se a sua viagem a uma prisão para falar com militantes do grupo terrorista Brigadas Vermelhas. "Os escutei e roguei por eles e inclusive batizei dois gêmeos filhos de pais terroristas, nascidos durante um julgamento", relata.

"Eu tive problemas com Deus", confessa em determinado momento. Foi por não conseguir entender "por que fez seu filho sofrer na cruz". Acrescenta: "Inclusive quando era bispo algumas vezes não conseguia olhar para o crucifixo porque a dúvida me atormentava". Também não conseguia aceitar a morte. "Deus não poderia tê-la poupado aos homens, depois da de Cristo?" Depois entendeu. "Sem a morte não poderíamos nos entregar a Deus. Manteríamos abertas saídas de segurança. Mas não. É preciso entregar a própria esperança a Deus e crer nele."

De Jerusalém a vida se vê de outra maneira, sobretudo as parafernálias de Roma. É o que conta Martini: "Houve uma época em que eu sonhei com uma Igreja na pobreza e na humildade, que não dependesse das potências deste mundo. Uma Igreja que desse espaço para as pessoas que pensam mais além. Uma Igreja que transmitisse valor, especialmente a quem se sente pequeno ou pecador. Uma Igreja jovem. Hoje já não tenho esses sonhos. Depois dos 75 anos decidi rezar pela Igreja".

Nunca mais o "erro de Galileu"

O cardeal Martini sempre se empenhou em estabelecer um terreno comum de discussão entre leigos e católicos, confrontando também aqueles pontos nos quais não há consenso possível. Com essa intenção abriu um dos debates mais saborosos entre intelectuais contemporâneos, publicado em 1995 na Itália com o título de "In cosa crede qui non crede?" (Em que crêem os que não crêem?). Tratava-se de uma série de cartas trocadas entre o cardeal e o escritor Umberto Eco, sobre temas como quando começa a vida humana, o sacerdócio negado à mulher, a ética, ou como encontrar, o laico, a luz do bem. Um setor da hierarquia católica assistiu à controvérsia com indisfarçável incômodo, mas uma década depois o mesmo cardeal Ratzinger, hoje papa Bento 16, enfrentou um debate semelhante com o filósofo alemão Jürgen Habermas sobre a relação entre fé e razão.

O cardeal Martini lamentou em 1995 que sua Igreja vivesse mergulhada em "desolada resignação sobre o presente". Também admitiu diante de Eco o medo da ciência e do futuro. Então o fez "com tesouros de sutileza", ele mesmo reconheceu. Dava como testemunho a prudência de Tomás de Aquino em semelhantes compromissos, por medo de Roma, que esteve a ponto de castigar quem hoje é um de seus guias mais ilustres.

O cardeal, já aposentado - quer dizer, mais livre do que quando exercia responsabilidades hierárquicas -, se expressa no novo livro com a sutileza que usou no debate com Umberto Eco, mas coloca sobre a mesa pontos de vista surpreendentes para seus pares, como o controle da natalidade e os preservativos. Soam também como chicotadas seus elogios a Martinho Lutero e o desafio a Roma para que empreenda com coragem algumas das reformas que o frade alemão reclamou em seu tempo.

No fundo de suas manifestações de hoje, em que o cardeal às vezes parece angustiado - com um sentimento mais trágico de sua fé -, surge o debate interminável do confronto entre a Igreja de Roma e a ciência e o pensamento moderno. Novamente é um jesuíta quem volta a colocar a discussão, para desgosto do Vaticano. A vantagem de Martini é que não está mais ao alcance de nenhuma pedrada. O também jesuíta George Tyrrell, o erudito tomista irlandês, foi castigado sem contemplações e suspenso de seus sacramentos. Inclusive teve negada sua sepultura em um cemitério católico quando morreu em 1909. Seu pecado: reivindicar, como Martini, o direito de cada época a "adaptar a expressão do cristianismo às certezas contemporâneas, para apaziguar o conflito absolutamente desnecessário entre fé e ciência, que é um mero espantalho teológico."

O que buscam todos esses pensadores católicos é espantar qualquer risco de cometer outra vez o erro de Galileu. É outra exigência do cardeal.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

O evangelho de Lucas - parte 28

No capítulo 17 de Lucas, temos uma continuação da narrativa do capítulo anterior. No entanto, como diz o evangelista, agora Cristo se dirige aos seus discípulos.

É impossível que não venham tropeços. Assim começa o ensino de Cristo, por isto entendemos que muito do que aconteceu durante toda a história humana, e por que não dizer também da história da igreja, é causada por isto. O ser humano é um pecador desde a queda de Adão, por isto sempre haverá tropeços, como Paulo falará mais adiante:

(Rm 3:9) Pois quê? Somos melhores do que eles? De maneira nenhuma, pois já demonstramos que, tanto judeus como gregos, todos estão debaixo do pecado;
(Rm 3:10) como está escrito: Não há justo, nem sequer um.
(Rm 3:11) Não há quem entenda; não há quem busque a Deus.
(Rm 3:12) Todos se extraviaram; juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só.
(Rm 3:13) A sua garganta é um sepulcro aberto; com as suas línguas tratam enganosamente; peçonha de áspides está debaixo dos seus lábios;
(Rm 3:14) a sua boca está cheia de maldição e amargura.
(Rm 3:15) Os seus pés são ligeiros para derramar sangue.
(Rm 3:16) Nos seus caminhos há destruição e miséria;
(Rm 3:17) e não conheceram o caminho da paz.
(Rm 3:18) Não há temor de Deus diante dos seus olhos.


Por isto, é de se esperar que venham tropeços, até na igreja, confirmando assim as palavras de Cristo e dos próprios apóstolos. Talvez o maior tropeço já inventado pelo homem é que a igreja cristã esteja livre dos tropeços, e seja constituída por santos irrepreensíveis. Pessoas que alegam isto o fazem para atrair pessoas com vãs filosofias, se igualando aos fariseus, que condenavam as pessoas como pecadoras, enquanto estes se justificavam diante dos homens (Lc 16:15), com "evidências" como as riquezas, o que foi combatido no capítulo anterior.

Mas Cristo disse que seria melhor que uma pedra fosse amarrada a seus pescoços, e fosse jogada ao mar. Este era um tipo de condenação comum da época, que evidentemente está em contraste com o relato sobre Lázaro do capítulo anterior. Aqui não há espaço para o aniquilacionismo: se o fim de todo condenado por Deus é a aniquilação, então não há vantagens ou desvantagens em nenhum tipo de morte, pois no fim das contas, todos deixarão de existir para sempre.

Talvez para mostrar aos seus discípulos que este "espírito de santidade", ou esta falta de humildade é sim uma pedra de tropeço, Ele ensina aos seus discípulos ali o perdão. E para tal, usa a palavra "irmão", não um homem qualquer, mas um irmão, uma pessoa que congrega com você, uma pessoa da igreja. E neste ponto nosso Senhor demonstra como devemos agir: quando um irmão pecar, que ele seja repreendido. E toda a repreensão deve buscar o arrependimento, por isto quando esta pessoa se arrepender, você tem a obrigação de perdoar. Você sabe que sempre haverão tropeços. Não façamos como alguns que humilham, excluem e pisam em pessoas que pecaram e se arrependeram.

Para reforçar ainda mais a questão do perdão, Jesus diz que se o seu irmão pecar 7 vezes em um dia, e 7 vezes disser para você "arrependo-me", você tem que perdoar. Observem como deve ser nosso proceder. Não devemos sequer imaginar se aquela pessoa se arrependeu de coração, se ele está fingindo arrependimento. Devemos perdoá-lo por que ele disse que se arrependeu. Somente Deus esquadrinha o coração dos homens, portanto não devemos pretender fazer isto na questão do perdão. Se houve ou não arrependimento sincero, que Deus julgue isto.

Neste momento os discípulos pediram para Jesus dar-lhes mais fé, talvez por imaginar que a tarefa de perdoar assim seja muito difícil. No entanto, Jesus nos diz que a fé do tamanho de um grão de mostarda, a menor semente conhecida, seria suficiente para operar milagres. O que nosso Senhor quiz dizer aqui, é que não é a quantidade de fé que é importante, mas sim sua qualidade. Devemos ter uma fé autêntica.

O que é esta fé autêntica? Cristo passa a falar para seus discípulos, que é esperado que o servo não faça nada esperando estar em dívida com seu senhor, mas que tudo que ele faz é algo que seu senhor já havia mandado. Somos servos inúteis, por que sempre fazemos aquilo que nos foi mandado, e nada mais. Estamos sempre em dívida, não é Deus que está em dívida conosco. A fé autêntica portanto reflete a humildade. Perdoamos os irmãos, por que é isto que Deus espera de nós. Não devemos ser como os fariseus que iniciaram este diálogo, que se achavam santos demais, e esperavam com isto recompensas terrestes como riquezas (por isto foram chamados de gananciosos no capítulo anterior).

A narrativa então passa para outro local, definido como a divisa entre Samaria e Galiléia. Neste local, 10 leprosos provavelmente sabendo de sua fama, foram até ele pedindo-lhe que os curasse. Ele tendo misericórdia daqueles leprosos, primeiro os enviou aos sacerdotes. No caminho, eles são curados, mas apenas um volta para se agradecer. Vemos aqui uma aplicação prática do que foi dito sobre perdão no começo do capítulo: Jesus perdoa e cura todos os 10, mesmo conhecendo o coração dos homens, e provavelmente sabendo que apenas um voltaria. Lucas faz questão de mencionar que o que retornou era samaritano, para deixar claro que era um estrangeiro, um homem que muitos despresavam como pecador, é que teve a atitude correta.

Notem aqui como Jesus menciona que foi a fé daquele homem que o salvou. Muitos hoje em dia vinculam doenças e situação desfavorável como pecado, o que foi tema também do capítulo anterior, entre eles estão os espíritas. Mas vejam, todos os 10 foram curados, mas somente 1 foi salvo, o que desvincula a espiritualidade com seu estado de saúde, ou financeira (cap. 16).

A narrativa agora muda para uma questão dirigida a Jesus pelos fariseus. Quando viria o reino de Deus? Isto por que fariseus tinham a crença que o Messias viria para restaurar o reino temporal de Israel.

A primeira resposta de Cristo é que este reino não viria com "aparência exterior". Isto significa que o reino de Deus viria de forma espiritual, não era para ser procurado aqui ou ali, mas dentro de nós. Aqui é interessante comentar que entre Testemunhas de Jeová, que crêem que o reino de Cristo viria apenas em 1914, costumam contestar esta afirmação dizendo que o reino de Deus não poderia fazer parte do coração de fariseus infiéis. No entanto, "dentro" é o significado mais provável de entov. A única outra vez que entov aparece no Novo Testamento é em Mateus 23:26. Além do mais, ao pregar sobre o Reino de Deus, Cristo sempre o menciona como algo concreto. Mesmo para estes fariseus infiéis, Cristo diz que o Reino chegou para eles (Lc 11:20), não querendo dizer com isto que o Reino de Deus veio exclusivamente para aqueles fariseus.

Voltando-se a seus discípulos, Jesus fala de seu dia. Muitos vão querer ver os dias de Jesus, mas não poderão. Esta espectativa fará com que muitos se levantem dizendo que ele retornou, e que está aqui ou ali. Mas nenhum discípulo deve se enganar, pois quando Jesus retornar, ele será visto por todos, assim como nós vemos um relâmpago no céu. Por este relato vemos que há uma diferença entre a vinda do Reino de Deus e a segunda vinda do próprio Cristo, que Testemunhas de Jeová costumam igualar. Como vimos, a volta de Cristo será vista por todos, então não há meios de seus discípulos serem enganados. As Testemunhas de Jeová, pelo contrário, acreditam que ele retornou de forma invisível, o que não condiz com as Escrituras.

E assim como nos dias de Noé, a vida estará correndo normalmente. Todos estarão ocupados com seus afazeres, quando Cristo retornar. Como no dia que Ló saiu de Sodoma, todos serão pegos desprevenidos. Devemos nos lembrar da mulher de Ló, e nunca olhar para trás, ou seja, nunca olhar para as coisas que ficaram no mundo.

O provérbio "onde estiver o corpo, aí estarão os abutres", segundo William Barclay era um provérbio comum que significava que algo aconteceria se determinadas condições fossem cumpridas.

terça-feira, 27 de maio de 2008

O elefante e a formiga

No programa Canal Livre do último domingo, na Band, o entrevistado foi o governador de Roraima, José de Anchieta Junior. Para quem imaginava que somente a Globo e a Veja estivessem se esforçando para promover a visão dos índios como os novos vilões que permitam à imprensa golpista correr para as quarteladas, o programa foi uma triste surpresa. Lá pelas tantas, o jornalista Antônio Teles perguntou ao governador como ele encarava a organização dos indígenas para enfrentar o problema, mostrando claramente que estavam preocupados com a ajuda de terceiros aos indígenas nas mobilizações e negociações com o governo. Aí eu fiquei pensando cá com os meus botões: a direita deste país está tão desavergonhada que eles não querem nem que os indígenas se organizem. Devem estar com saudade dos primeiros colonizadores, que não tiveram interlocutores com os índios, apenas chegaram e os dizimaram. Será que eles querem que os índios se organizem eles mesmos para "dialogar" com os brancos em nível de igualdade? Ora, no genocídio dos índios nas Américas, os milhões que foram exterminados estão devidamente enterrados para comprovar que não há "organização" indígena que resista à força dos canhões. Alguém precisa avisar nossos preocupados jornalistas que o princípio da igualdade, inserido na Constituição, significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Logo, é necessário um interlocutor institucional que faça a mediação (e o nivelamento) entre culturas tão distintas. Afinal, o elefante só dialoga diretamente com a formiga nas fábulas de Esopo, ou nos gibis da Mônica.

Ouse arriscar-se

Leitura bíblica: Gênesis 12:1-9

Versículo-chave: “Apareceu o Senhor a Abrão, e lhe disse: Darei à tua descendência esta terra. Ali edificou Abrão um altar ao Senhor, que lhe aparecera.” (Gênesis 12:7)

Meditação: Foi uma promessa espantosa e que requeria riscos audazes. O Senhor surpreendeu Abrão com a promessa de que seria o pai de uma grande nação. Todas as famílias da terra seriam abençoadas por seu intermédio. Porém, o preço que tinha de pagar era alto. Abrão teria de abandonar a sua terra, a segurança, os arredores familiares e a prosperidade. Abrão tornou-se o protótipo daqueles que descobrem que a obediência significa riscos.

O Senhor nos está chamando constantemente. Ele deseja levar-nos ao ponto de ser a nossa única segurança e certeza. Pense em quão duro trabalhamos a fim de eliminar os riscos da vida. Trabalhamos, economizamos, planejamos e investimos em nós mesmos. Então, acomodamos-nos à rotina da mesmice e reclamamos que a vida perdeu a emoção.

Enquanto vivermos, haverá um próximo passo em nossa aventura com o Senhor. Ele constantemente nos chama de onde estamos para novo nível de riscos. Jamais haverá uma época em que o que temos feito ou sido poderá ser nossa segurança. Fomos programados para estar sempre na margem crescente de novas aventuras. Onde está o elemento do risco criativo em sua vida? Que faria se confiasse completamente em Deus?

O elemento crucial em correr riscos pelo Senhor é a sua direção. Nosso desafio é descobrir para onde o Senhor nos leva e partir com sua orientação diária, arriscando-nos com o conhecimento de que ele nos concederá forças para fazer o que ele nos inspira.

Pensamento do dia: A vida sem riscos é como um pássaro sem asas.

(Lloyd John Ogilvie, em “O que Deus tem de melhor para a minha vida”, Ed. Vida, meditação de 13 de setembro)

Diário de um lunático - 6

23/04/2007

Olá para todos! Já faz um bom tempo que eu não escrevo aqui. Realmente, as coisas ficaram difíceis nestes últimos dias, e eu tive que procurar emprego da velha forma mesmo: indo de empresa em empresa. Talvez não tenha sido tão ruim assim, vocês não tiveram o desgosto de encontrar mais um de meus textos bestas.

Mas como eu não ligo para as críticas, cá estou novamente escrevendo sobre estes dias passados. A boa notícia é que eu finalmente consegui um emprego. Não é uma coisa muito fácil, vocês devem saber. A questão é que o meu novo patrão é adventista do sétimo dia. Há vantagens e desvantagens de se ter um patrão assim. A grande vantagem é que você tem certeza absoluta que nunca irá trabalhar aos sábados, o que é bom para um ser consumidor necessitando de mais tempo para incentivar o capitalismo, como eu. Por outro lado, você pode esquecer daqueles churrascos que as empresas dão no dia do trabalho.

Falar dos adventistas é muito fácil, afinal de contas, eles são quase omni-presentes na internet. Gostam de fóruns, gostam principalmente de defender o criacionismo. Certamente entre os maiores criacionistas estão os adventistas. Conhecendo a teologia cristã como eu venho conhecendo recentemente, posso imaginar por que isto acontece.

Os adventistas estão para a maioria dos outros cristãos, assim como os agnósticos estão para os ateus, mas ao contrário. O adventista é mais materialista que um cristão comum, o agnóstico é mais espiritualista que o ateu comum (pelo menos em teoria). Assim, os adventistas não podem admitir a existência de uma alma, por exemplo, como outras denominações.

Este "materialismo" pode ser notado até quando eles recorrem à Bíblia, seu livro sagrado. Tudo deve ser lido rigorosamente da forma que está. Mas é claro, tenho que fazer uma observação aqui... Todo livro deve ser lido da forma que está mesmo. O autor não escreve "cachorro" querendo escrever "macaco". O problema adventista da leitura da Bíblia, é que eles transformaram aqueles números antes do versículo, como por exemplo João 3:16, como algo que faz parte do texto, desde os primórdios dos tempos. Para eles, o texto está todo fatiado como um presunto... Bem, a comparação não foi boa, vamos tentar de novo... Para eles, o texto está todo dividido como os anéis de uma cebola, e para montar a sua salada teológica, eles podem escolher os anéis que quiserem. Tudo em nome da boa culinária.

Recentemente descobri que eles pregam que todas as religiões do mundo irão se unir contra eles. Eu acho que seria muito divertido uma união entre Orlando Fedeli, Silas Malafaia, Edir Macedo, Caio Fabio e o Inri Cristo. Seria uma ótima versão da Liga da Justiça, ou para os mais clássicos, uma ótima peça de tragédia grega, onde os adventistas, é claro, ocupariam o lugar dos narradores. Felizmente, a idéia é meio absurda para mim, afinal estamos em um mundo cada vez mais individualista. A tendência é separar, e não juntar. Isto é tão verdade, que os próprios adventistas se separaram...

Eles também possuem uma profetiza, que muitos acusam de plágio. Já vi alguns comentando que na época não havia direitos autorais. Certamente com isto eles querem dizer que a sua cópia é profeticamente autorizada, o que faz de todo copista da Bíblia na história, um potencial profeta. Recentemente inventaram também as sociedades proféticas, já que são Sociedades Bíblicas que distribuem a Bíblia hoje. Está muito fácil ser profeta, até eu posso ser. Aproveitando esta minha nova capacidade, quero dizer que pelo menos daqui a um ano este meu texto estará em um blog ou algum site. Vamos ver se passo no teste.

Para encerrar, gostaria de dizer que o meu emprego está sendo ótimo. Espero em breve escrever mais alguma coisa aqui.

Pedro.

Carta aos Romanos - 22

Paulo inicia sua carta, identificando-se. Identificava-se como servo, e mais tarde nesta mesma carta ele usa a figura do servo como guia moral (Rm 6:16). Sendo servo, espera-se que ele desempenhe uma tarefa (Lc 17:10), e para isto ele foi chamado para apóstolo, separado para o Evangelho de Deus. A palavra αποστολος (apóstolo) vem da palavra αποστελλειν, que significa enviar, por isto o apóstolo era um mensageiro, e cuja mensagem é este mesmo Evangelho de Deus. Note que todo enviado precisa ser enviado por alguém, por isto Paulo deixa claro que é servo de Cristo, e desta forma foi chamado(segundo a palavra original κλητος, constituído) apóstolo. Ninguém se constitui apóstolo por si só.

No segundo verso Paulo estabelece uma ligação entre o Velho e o Novo Testamento. Para Paulo, aquele Evangelho de Deus havia sido prometido no Velho Testamento através dos profetas. Esta é a grande importância do Velho Testamento: ele confirma o que recebemos como algo já muito tempo prometido. Apesar de Paulo estar escrevendo para uma igreja gentia, esta declaração pôde se fazer sentir naquela igreja devido à grande quantidade de judeus convertidos ao cristianismo ali.

Quais eram as promessas? A Encarnação e Ressurreição de Cristo, Filho de Deus, através do poder e segundo o Espírito de santidade. Vemos aqui a promessa da Trindade em ação. Através desta ação, declara Paulo no versículo 5, recebemos a graça e o apostolado. Note que a declaração de Cristo como Filho de Deus aqui não significa que antes ele não era Filho de Deus, e depois disto passou a ser. A palavra grega para declarado vem de οριζω, que significa definir, determinar, manifestar, de onde vem a palavra horizonte, que é o ponto mais afastado que nós podemos ver a terra. Assim, com a ressurreição dos mortos, Cristo é declarado ou melhor, manifesto como Filho de Deus, sua doutrina, sua conduta é verdadeira, por isto foi ressuscitado como consequência do cumprimento daquelas promessas que Paulo lembra no início.

No versículo 6, Paulo diz que aqueles romanos também são chamados(κλητος, constituídos) para serem servos de Jesus Cristo, e no versículo 7 diz mais especificamente que aqueles romanos foram chamados para serem santos. Pelo uso do também no versículo anterior, entendemos que aqueles leitores teriam sido constituídos como o apóstolo, única ocorrência do verbo antes do versículo 6. Para Paulo, aqueles cristãos já eram servos de Cristo, e era para uma igreja constituída por Cristo que ele escrevia.

Parece que a comunidade de Roma era famosa naquela época por sua fé, fato mencionado pelo apóstolo no versículo 8. Provavelmente deve-se a esta fama a menção feita por Ireneu em seu Contra-heresias, quando ele está citando exemplos de igrejas que mantiveram a tradição apostólica. O próprio Paulo já havia mencionado como a fé daquela igreja era louvável, e para responder os gnósticos que diziam ter revelações especiais dos apóstolos, nada melhor que traçar a linha sucessória da igreja que foi elogiada por um deles.

O trecho entre os versículos 9 e 13 é interessante. Segundo uma tradição antiga suportada inclusive por Ireneu, os apóstolos Pedro e Paulo teriam fundado a igreja de Roma. Por outro lado, neste trecho, temos alguns indícios de que isto não é verdade. O pedido de Paulo é que "afinal", ele possa ir a Roma. Ele "deseja" vê-los para os comunicar "algum" dom espiritual. O verso 13 diz ainda que Paulo muitas vezes se propôs a vê-los, mas tem sido impedido (κωλύω). E isto para conseguir frutos como nos outros gentios. Esta linguagem indica que Paulo ainda não tinha conseguido frutos com os gentios que viviam em Roma, dando evidências que Paulo não fundou aquela igreja, apesar de posteriormente tê-la visitado. O versículo 15 reforça esta idéia, onde Paulo diz que irá anunciar o evangelho "também" em Roma.

É interessante como o apóstolo, mesmo desejoso de lhes comunicar algum dom espiritual, não faz disto uma relação unilateral. No versículo 12, ele comenta que não só eles serão fortalecido, mas o próprio apóstolo se fortalecerá com aquela visita. O cristão se contenta com seus irmãos, e de fato uma das tarefas da comunidade cristã é fortalecer seus membros. A igreja deve ser vista como um refúgio, onde a luz dos cristãos devem resplandecer para que todos os homens vejam, e glorifiquem à Deus (Mt 5:16).

É no versículo 16 que Paulo inicia seu ensino. Percebe-se que como Paulo não visitou ainda Roma, não tinha muito o que dizer sobre os problemas locais. Por isto, a carta aos romanos era uma carta mais teológica, onde Paulo expõe aquilo que provavelmente pregava quando chegava em uma cidade. Desconhecendo seus ouvintes, Paulo deve dar uma mensagem mais geral, assim como deveria fazer quando chegava em uma nova cidade. Em outras cartas geralmente Paulo está corrigindo erros, mas de Roma ele só ouvia falar bem. Por isto, aqui Paulo deve estar mais livre para falar da doutrina cristã que ele pregava aos gentios.

E esta doutrina, o tema central de sua pregação, era aquele Evangelho de Deus que ele menciona no início de sua carta. E deste evangelho ele não se envergonha, pois é o poder de Deus de salvar todos. A justiça divina é revelada por este Evangelho, e esta justiça é feita pela fé.

Neste momento, alguém poderia perguntar por que gentios deveriam se salvar quando eles não foram apresentados à Lei. Pois é a lei que os condenaria. Se eles não conhecem Deus, então eles não deveriam ser condenados. No entanto, Paulo expõe seu ponto de vista sobre a revelação natural.

O que Paulo diz é que toda a criação dá testemunho sobre Deus. Dos céus se revelam a ira. No versículo 20 Paulo diz que até seus atributos e poder são conhecidos. Ao se deparar com crenças pagãs da antiguidade, apesar de muitas diferenças entre todas elas, podemos perceber que sempre em toda a comunidade, há uma definição de moral a ser seguida, e esta moral é praticamente igual em todos os lugares. O que mais chama a atenção é a crença quase universal que seu deus ou deuses se enfurecem quando certas atitudes são cometidas, e que para aplacar a ira deste deus é necessário um sacrifício.

O que aconteceu com estes gentios, que eles são condenáveis? Paulo explica que mesmo conhecendo Deus, eles não O glorificaram. Ao contrário, eles começaram a especular, obscureceram seus corações. O versículo 23 fala que:

(Rm 1:23) e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, e de aves, e de quadrúpedes, e de répteis.

É por causa desta mudança de crenças que estes homens possuem crenças parecidas, porém diferentes. Por estas mudanças que eles possuem tantos deuses, talvez um reflexo da má compreensão sobre a Trindade (esta é apenas uma suposição).

Por causa disto, Deus os entrega às suas concupiscências, deixando-os livres para praticar aquilo que desejaram praticar. O final do capítulo 1 de Romanos relaciona algumas das práticas condenáveis dos gentios. Devemos lembrar contudo que estas são as práticas decorrentes da sua rejeição a Deus, em sua revelação natural, que os tornou tão condenáveis quanto qualquer um. Posteriormente o apóstolo falará dos judeus, concluindo assim que todo mundo é pecador.

Portanto, ou estamos incluídos nesta ou na próxima lista de pecados. É desta condição de depravação da humanidade que Paulo passará a ensinar como o Evangelho de Deus, aquele poder de salvação, pode redimir estes pecadores.

domingo, 25 de maio de 2008

Pequenos delírios religiosos

Dentre as muitas características do cristianismo, uma das que mais se destacam e são menos percebidas é a sua permanência ou, se preferirmos outro nome, a sua perpetuidade. Desde os tempos de Jesus, a Sua mensagem vem se propagando, sujeita a todos os tipos de abusos, desvios e intempéries. Apesar dos muitos erros que foram cometidos em seu nome, o cristianismo permanece já há quase 2000 anos influenciando o mundo. A história da Igreja cristã é repleta de idas e vindas, altos e baixos, momentos melhores e piores, mas ela se mantém, permanece e se perpetua, sempre acompanhando a própria história da humanidade neste planeta. Assim, a Igreja cristã se estabeleceu, a princípio, dentro das fronteiras do Império Romano. A nossa moderna necessidade de racionalização das idéias e dos fatos, esse misterioso poder de síntese que o homem atual reclama, faz com que muita gente imagine que foi um início tranqüilo, e que num estalar de dedos lá estava a Igreja cristã instalada no mundo romano, ignorando as extremas dificuldades que os primeiros cristãos enfrentaram para levar sua mensagem ao mundo.

Eles não eram poderosos nem tinham qualquer influência social, cultural ou econômica, mas a mensagem do evangelho, que levaram aos mais distantes rincões do mundo conhecido de então, teve um impacto tal que a História não pôde mais ser contada sem levar em consideração a presença decisiva de um certo carpinteiro nascido em Belém e morto em Jerusalém, que havia ressuscitado e animado seus discípulos a compartilharem o que haviam visto e ouvido. Aqui há mais um perigo de racionalização: imaginar que os discípulos decidiram começar a contar o calendário a partir de Jesus numa reunião qualquer em Jerusalém naqueles dias. Como o próprio evangelho relata (Atos 1:7), eles não estavam preocupados com tempos e estações, mas havia uma necessidade premente de levar as boas novas ao mundo, e eles não mediram riscos nem calcularam o preço dessa empreitada, apenas pregaram o evangelho e deixaram os resultados com Deus.

Nos três séculos seguintes, após muita perseguição, o cristianismo venceu o Império Romano, absorveu-o (ou foi absorvido por ele) e institucionalizou-se. Mais 3 séculos e a invocação de supremacia hierárquica pela Igreja Romana passou a prevalecer, inobstante a resistência da Igreja Oriental (hoje conhecida por “Ortodoxa”), até o cisma do ano 1.054, em que o Papa e o Patriarca de Constantinopla se excomungaram mutuamente. Muito da mensagem inicial do evangelho se havia perdido no meio de tantas intrigas e vaidades, mas o, digamos, “fio condutor” do cristianismo continuava lá, latente e presente na vida e no trabalho de muitos discípulos que preservaram a sua essência em meio ao caos eclesiástico.

A partir do século VII, quando nascia na Arábia, o fator islâmico foi adicionado a essa equação. Dois séculos depois já havia se expandido por boa parte da Ásia, pelo Norte da África, chegando à Península Ibérica, herdando a maior parte da Igreja Cristã dessas regiões, gerando uma confrontação que levou às guerras religiosas conhecidas como Cruzadas, que serviu a interesses escusos e consumiu boa parte dos recursos e das idéias dos cristãos de então. Necessário dizer, entretanto, que esses conflitos atendiam a necessidades muito mais políticas e econômicas, sendo a religião apenas o pano de fundo do enfrentamento. Apesar das conquistas, o Islã tinha uma certa tolerância para com cristãos e judeus (os “adeptos do Livro”), como Sevilha e Toledo atestam e o profeta dizia: "E não disputeis com os adeptos do Livro, senão da melhor forma, exceto com os iníquos, dentre eles. Dizei-lhes: cremos no que nos foi revelado, assim no que vos foi revelado antes; nosso Deus e o vosso Deus são Um e a Ele nos submetemos" (Surata 29:46) e "pergunta-lhes: discutireis conosco sobre Deus, apesar de ser nosso e o vosso Senhor? Somos responsáveis por nossas ações assim como vós por vossas, e somos sinceros para com Ele" (Surata 2:139).

A coexistência das três grandes religiões floresceu pacificamente na Espanha moura, enquanto a vitória e unificação da Espanha católica expulsou quem não era cristão. Ainda que este período da História tenha passado à posteridade como a Idade das Trevas, a verdade é que foi uma era de profundo intercâmbio de idéias e produção intelectual, estabelecendo as bases e as condições do mundo moderno em que vivemos. A ciência, tal como a conhecemos hoje, não existiria não fossem as obras pensadas e escritas dentro dos mosteiros, como a lógica aristotélica ressuscitada no Ocidente por São Tomás de Aquino, que, curiosamente, havia se inspirado no trabalho do filósofo muçulmano Averrois, nascido em Córdoba.

No fim do século XV, inaugurou-se o período das grandes navegações e dos descobrimentos de novas terras. O mundo não se resumia mais aos continentes então conhecidos, África, Ásia e Europa. Havia um mundo novo, selvagem, inóspito, desafiador, uma América com povos misteriosos e, muitas vezes, mais evoluídos, a descobrir. Os oceanos domados abriam novas e infinitas possibilidades de comunicação. Aquilo que a Internet representa para os nossos dias, as navegações representaram para aquela época, talvez numa proporção muito maior. O Eldorado dos povos ameríndios foi conquistado (e massacrado) em nome de uma pretensa “catequese”, mas o choque do europeu com o mundo novo o convenceu de que não podia mais explicar o mundo a partir de um mosteiro nem regido a partir da cátedra romana.

Entretanto, a mensagem cristã estava lá, intocada, no meio de tantas crises seculares. O totalitarismo e o autoritarismo não podiam mais segurá-la, e a Reforma Protestante foi a conseqüência natural desse processo, que levou à Contra-Reforma, em que a própria Igreja Romana percebeu a necessidade de reformar-se para não sucumbir. Pela primeira vez, a autoridade de Roma havia sido contestada de forma contundente, e grande parte da sua influência (e de seu poder político) na Europa Ocidental havia se evaporado. Dentro desse período de relativa liberdade intelectual, longe dos tribunais da Inquisição, muito do pensamento moderno foi formado, estabelecendo as bases do que seria a modernidade. Após o forte anti-clericalismo dos séculos XVIII e XIX, do qual a Revolução Francesa e o surgimento do marxismo são os maiores expoentes, a Igreja começou a abrir-se para o mundo, procurando preservar, à sua maneira, aquilo que entendia como essência da mensagem cristã.

O século XX, com as suas Grandes Guerras, suas batalhas ideológicas e a explosão da tecnologia, encontrou um ser humano que, por um lado, estava chocado pela barbárie nazista e pelo holocausto judeu, e, por outro, sedento de novas descobertas e realizações. As novas e múltiplas possibilidades da comunicação e a ansiedade pelo novo geraram um inconformismo com a tradição, aquilo que era considerado “antigo”, e havia ainda a força do utilitarismo, não tão visível, que obrigava (como ainda obriga) o homem a maximizar o seu prazer, o seu lucro, a sua vida, com o mínimo de esforço possível. Os princípios éticos da religião passam a ser vistos como algo ultrapassado, um empecilho para que a modernidade se estabeleça e se desenvolva.

Diante de tais adversários, o cristianismo não pôde ficar imune. O século XX marca a propagação de uma série de tendências doutrinárias e teológicas dentro das Igrejas estabelecidas, em que a ansiedade utilitária por resultados práticos e rápidos parece ser a tônica. Pelo menos em muitos púlpitos, a paciência cristã é vencida pelo imediatismo. A par disso, toda forma de opressão tem que ser vencida. É preciso liberar a mulher, o negro, o pobre, o gay. A queda do muro de Berlim marca o que, para muitos, foi o “fim da História”, a vitória final do capitalismo e do liberalismo. Como não podia ser diferente, boa parte da Igreja cristã, já convulsionada pelo turbilhão de idéias conflitantes do século passado, se torna refém desse movimento, e procura desesperadamente encontrar meios de justificar sua adesão constrangida aos novos ventos utilitários.

Desta forma, modismos são criados, impostos e descartados, trocados pela mais nova tendência. A influência norte-americana, responsável em boa parte pela evangelização protestante do Brasil na virada do século XIX para o XX, se faz notar cada vez mais. Afinal, junto com cada nova tendência vem uma batelada de novos produtos que precisam ser comercializados. Basta uma “palavra profética” dita por alguém - sabe-se lá onde - que bibliotecas inteiras são reduzidas a pó, para que sejam substituídas por novas bibliotecas obviamente compradas a preço de ouro. Discursos conflitantes se repetem e se sucedem, aquilo que o Espírito Santo disse ontem não vale mais para hoje, e é provável que o que vale hoje não valha para amanhã. Se alguém não está na “visão”, está fora dela, e, portanto, deve ser descartado como imprestável. Qualquer semelhança com o consumismo moderno, infelizmente, não é mera coincidência.

Inimigos fictícios de ocasião são criados para justificar a pregação atual. Conforme se desgastam, são trocados por novos personagens e entidades de ficção. O inimigo oficial continua sendo o diabo, é verdade, mas ele recebe novos nomes e se traveste conforme a ocasião se apresenta. O fio condutor do cristianismo, a longa tradição apostólica, mantida inclusive pela Reforma Protestante em seu respeito aos Credos da Igreja Primitiva, precisa ser afastado. O evangelho da graça recebido dos apóstolos não basta mais. Novos inimigos são escolhidos conforme a ocasião. E, ao que parece, o inimigo atual se chama “religiosidade”.

Muitas igrejas hoje entendem que o inimigo a ser batido é a “religiosidade”, ou seja, aqueles que se preocupam em manter viva a essência do evangelho, a graça salvífica e redentora de Nosso Senhor Jesus Cristo, que se revela simples e acessível ao ser humano, seja ele do século III ou do XXI. Não, isso não basta, dizem os novos pregadores do apocalipse. Curiosamente, dizendo-se “apóstolos”, negam a própria tradição apostólica. Dizendo-se resgatadores da verdade evangélica, se valem de novidades rituais e mercadológicas de ocasião. É preciso submeter-se aos seus complicados rituais e repetir os seus chavões, que querem dizer tudo, mas não dizem nada. Já que aquilo que eles chamam de “religiosidade” se preocupa com a essência do evangelho, nela não há lugar para correntes de prosperidade, novos apostolados, estranhas unções e atividades exóticas afins.

Chegamos, portanto, a uma nova fase, uma espécie de “inquisição às avessas”. Se o irmão ou a irmã se preocupam em estudar a Palavra, para conferir nela se os seus líderes estão realmente pregando a Verdade, logo eles são chamados de “religiosos” e devem ser combatidos e exterminados. O mesmo ocorre se eles ousam questionar os seus líderes e se preocupam em manter-se conectados à essência do evangelho, tal como nos foi legado ao longo de 2.000 anos de História da Igreja Cristã, e não se convertem ao novo “evangelho”, finalmente revelado aos líderes iluminados nos últimos 20 anos, os novos gnósticos portadores de uma revelação especial. O inferno não tolera a Sabedoria.

O tristemente curioso nisso tudo é que se esquece facilmente de que Jesus foi um bom religioso. Paulo se orgulhava de ser um fariseu no melhor sentido da palavra (Atos 26:5), hoje tão depreciada. Era aos religiosos que o evangelho era pregado inicialmente (Atos 2:5 e 13:43) nas reuniões festivas e sinagogas, e a palavra “religioso” aqui era usada no melhor sentido, exatamente para designar quem estava interessado em aprender e seguir os ensinamentos do Senhor. Para Tiago, “a religião pura e imaculada para com Deus, o Pai, é esta: Visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e guardar-se da corrupção do mundo” (Tiago 1:27), mas provavelmente ele seria expulso da Igreja se dissesse uma coisa dessas em pleno século XXI, já que a palavra “religião” foi banida de muitos púlpitos por ser a nova inimiga de plantão.

Entretanto, outro fenômeno esvazia ainda mais o discurso da caça aos “religiosos”. Afinal, quem é que define o que é “religiosidade”? Atacá-la também não é outra forma de religião? O também tristemente curioso é que quem inicia essas campanhas anti-religiosas tem uma série de práticas muito mais religiosas, como o próprio nome “campanha” que faz tanto sucesso no meio gospel atual. O discurso anti-religioso é só mais uma sub-espécie (degenerada) do discurso religioso. Simples assim.

É certo que, num futuro próximo, a “religiosidade”, tal como é vista por alguns pregadores, deixará de ser a inimiga e novos espantalhos serão erigidos em seu lugar, uma espécie de “vodus evangélicos” que deverão ser alfinetados de todas as maneiras possíveis até que se esgotem e sejam novamente substituídos pelo mais novo vilão do imaginário “gospel”. Entretanto, o estrago já estará consumado na vida de muitas pessoas que foram atraídas por essa pregação perniciosa, que, conforme Paulo já dizia (2 Coríntios 11:3) e Davi já ensinava (Salmo 51:17), não consegue se contentar com a simplicidade de uma devoção sincera de um coração contrito.

Àqueles que foram tachados de “religiosos”, não resta ou alternativa senão manterem-se fiéis à sã doutrina. No meio de tanta ansiedade gerada pelo consumismo moderno, dentro e fora das igrejas, religiosos de todo o mundo, uni-vos! O melhor a fazer é continuar crendo no que Jesus disse: “Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas” (Mateus 11:29).
É melhor ser religioso no melhor sentido do termo, do que atacar a religiosidade, mas viver dela.


P.S.: Recomendo enfaticamente a leitura do artigo "Será que a religião é tão problemática como nós pensamos que é?", do blog Despertai, Bereanos!, do meu amigo e irmão Vítor Grando.

Adieu, Guga!

É uma pena que toda grande história tenha que ter um fim, que nossos ídolos esportivos se despeçam, e hoje chegou ao final a carreira de Gustavo Kuerten no tênis. Lá em Paris, no Grand Slam de Roland Garros, onde assombrou o mundo em 1996, ele deu adeus às quadras. O resultado e o adversário pouco importam. O manezinho que saiu da ilha de Santa Catarina para conquistar o mundo é um daqueles casos raríssimos de um brasileiro que vence na vida, contra todas as adversidades. Talento nato num esporte considerado de elite, Guga ganhou Roland Garros 3 vezes e, depois do Masters Cup conquistado em Lisboa no fim de 2000, foi o nº 1 do ranking da ATP por 42 semanas, o que o deixa entre os maiores tenistas de todos os tempos. No Olimpo do esporte brasileiro, tem a feliz companhia de Maria Esther Bueno, cujo auge se deu na década de 60, em que pouca gente acompanhava o que acontecia no mundo, e o tênis era um esporte essencialmente amador. Vencido pelas dores no quadriu, Guga teve que enfrentar seu longo adeus, ensaiando retornos com tentativas de recuperação e volta por cimia. Não deu certo, infelizmente, mas nem precisava. Guga merece todo o nosso carinho, e o nosso agradecimento por ter-nos dado tantas alegrias num país que não dá a mínima para o esporte que não seja o futebol.

sábado, 24 de maio de 2008

A quem honra, honra...

Um homem público, decente, correto, ético, que dignifica o termo "político", é avis rara em qualquer país, e muito mais em terras tupiniquins. Por isso, quando se perde um senador do porte de Jefferson Péres, falecido ontem, temos muito o que lamentar. Já há muitos anos acompanhava o seu trabalho e os seus discursos, sempre muito simples e coerentes. Talvez a política estaria ainda mais desavergonhada no Brasil se não houvesse no Senado homens como Jefferson Péres. Agradeçamos à Amazônia por ter-nos dado esse oxigênio ético na política e esperemos que nossa fauna brasiliense não seja ainda mais desfalcada deste tipo de avis. Que pelo menos uma de suas frases brilhantes nos anime a prosseguir: “É uma atitude extremamente equivocada essa de botar o lenço no nariz, olhar com ar esnobe e falar que a política é uma coisa suja. Isso é uma bobagem! O que se deve é continuar, sim, a lutar contra, não desanimar...”

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Grandes filmes - 4

O Telecine Cult tem exibido na sua grade recente o filme "A Batalha de Argel" ("La Bataglia di Algeri"), que é um filme maravilhoso e perigoso, por estranho que possa parecer o adjetivo. Lançado em 1966, dirigido pelo italiano Gillo Pontecorvo, patrocinado pelo recém-empossado governo independente da Argélia, "estrelado" por uma multidão de "atores" amadores (gente do povo mesmo, com um dos líderes da independência argelina, Brahim Hadjadj - mais conhecido por Ali La Pointe, interpretando a si mesmo, em destaque na ilustração ao lado), o filme conta a história da independência daquele país, numa batalha travada principalmente na capital, Argel, entre a elite colonialista cristã francesa que habitava a cidade baixa, européia, e a maioria muçulmana miserável que se amontoava no morro, a Casbah. Qualquer semelhança entre São Conrado e a Rocinha, ou com o choque de civilizações de Samuel Huntington, não é mera coincidência. É nesse contexto, em que Albert Camus, argelino de nascimento e francês por descendência, se sentiu permanentemente deslocado. Talvez seu "O Estrangeiro" esteja marcado por essas contradições. Voltando ao filme, fotografado magistralmente em preto e branco, "A Batalha de Argel" não ficou datada pelo tempo e continua atual, ao mostrar a insurreição dos argelinos contra o colonialismo francês ainda vivo após a Segunda Guerra Mundial. Hoje soa incrível ver como a França, pátria-mãe das liberdades civis, há meio século, mesmo depois de ter visto Hitler humilhá-los passando pelo Arco do Triunfo, ainda insistia em manter uma prática colonial anacrônica. A Casbah se revolta mediante atos terroristas, os quais são respondidos com a tortura comandada pelo coronel Mathieu, que fez escola inclusive entre os ditadores sulamericanos. Esse confronto entre terrorismo e tortura dá a tônica realista do filme, e qualquer semelhança com o embate Bush x Bin Laden também não é mera coincidência. Na Argélia do fim dos anos 50, o terrorismo ainda engatinhava, e, por paradoxal que possa ser, nos surpreendemos ao ver que ficamos surpresos pois (ainda) não havia terroristas suicidas, algo tão comum nos nossos dias. Fica a amarga impressão de que até na barbárie já houve, não muito tempo atrás, uma certa "ingenuidade", se é que esta palavra pode ser aplicada ao horror. É neste sentido que este filme extraordinário é "perigoso": nos deparamos com nós mesmos, com nossa humanidade e sua inerente maldade cíclica, e vemos que a dominação colonial continua existindo, muito mais sutil e dissimulada, e que a Casbah é muito maior do que uma sucessão de morros (e mortos) em Argel.


quarta-feira, 21 de maio de 2008

Trindade - antecedentes históricos

Entre os anos de 325 e 332, exatamente quando Atanásio estava assumindo seus deveres como bispo de Alexandria, o imperador Constantino começou a mudar de partido no assunto, sob a pressão de bispos e conselheiros que secretamente simpatizavam com Ário e dos dois bispos que o apoiaram e foram depostos e exilados. A força da animosidade que se seguiu ao concílio foi intensa. As discussões e o tumulto não tinham cessado. Alguns que tinham assinado o credo e os anátemas contra os arianos ficaram horrorizados com a interpretação sabeliana distorcida aplicada ao credo por Marcelo e outros. Conseguiram conquistar a confiança do imperador e este começou paulatinamente a pensar em mudar o credo e até mesmo a restaurar Ário e os bispos de Nicomédia e Nicéia.
[...]
Enquanto Atanásio estava no exílio em Tréveris, Ário morreu, na véspera do dia em que seria restaurado como um presbítero cristão numa cerimônia especial em Constantinopla. Alguns estudiosos especulam que tenha sido envenenado por seus inimigos. Seja como for, sua morte em 336 ocorreu poucos meses antes da morte do próprio Constantino em 22 de maio de 337. Constantino viveu como pagão e morreu como ariano. Semelhante currículo para "o primeiro imperador cristão" não é muito admirável! Mesmo assim, a sua morte foi o término de um grandioso capítulo na história cristã. A partir de então, com apenas uma breve exceção, os imperadores romanos se considerariam cristãos em certo sentido, e interfeririam constantemente nas questões eclesiásticas e teológicas.

("História da Teologia Cristã", 2001, Roger C. Olson, Ed. Vida, págs. 167/168)


“Em resumo, podemos dizer que durante o período que vai de 330 d.C. até a morte de Constantino sete anos depois, os defensores do “Grande Concílio” foram reiteradamente derrotados. O interesse principal do imperador era mais político que teológico, e isto combinava muito bem com as habilidades políticas de Eusébio de Nicomédia para dar supremacia ao arianismo. Essa situação se tornou muito mais difícil em função da inabilidade de alguns dos principais defensores de Nicéia de mostrar como sua doutrina diferia do sabelianismo. Ao mesmo tempo, os arianos se abstiveram de atacar abertamente o Concílio que Constantino convocara. Para o grupo niceno, a derrota final durante este período, embora mais simbólica do que real, foi o fato do próprio Constantino ser batizado em seu leito de morte por Eusébio de Nicomédia.

[...]

A derrota do arianismo foi devida em parte à superioridade intelectual de seus adversários; em parte ao fato de que, durante a prolongada controvérsia, o Ocidente sempre esteve a favor do grupo niceno; e em parte porque, enquanto as divisões entre os arianos eram causadas por distinções mais sutis, seus oponentes tendiam a se unir e formar alianças sempre mais amplas. Mas pode-se vislumbrar também na natureza interior do arianismo uma das principais causas de sua derrota. O arianismo pode ser interpretado como uma maneira de introduzir para dentro do Cristianismo o costume da adoração de seres que, embora não sendo o Deus absoluto, eram divinos de uma forma relativa. A consciência cristã geral reagiu violentamente contra este entendimento limitado da divindade do salvador, expressado a cada momento que os arianos expunham sua doutrina de um modo mais extremo. A fé nicena, embora menos estritamente racional que o arianismo, e embora requeresse mais da metade de um século para esclarecer seu sentido real, foi capaz de afirmar um modo mais claro e radical a doutrina cristã fundamental de que “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo”.


(“Uma História do Pensamento Cristão”, Justo L. González. Ed. Cultura Cristã, 2004, págs. 269 e 280/1)

Carta aos Romanos - 21

OBS.: Os estudos anteriores de Romanos (partes 1 a 20) foram feitos pelo Hélio. A partir deste texto, a Carta aos Romanos será revisitada pelos estudos feitos pelo Gustavo.




Talvez uma das mais importantes epístolas do Novo Testamento, é aqui que muito da teologia de Paulo é tratada. Sua autoria é indiscutivelmente de Paulo. Sua autoridade nunca foi questionada na igreja. Segundo Barnes, apenas seitas consideradas heréticas questionam a autoridade desta epístola: Ebionitas, Encratitas e Cerintianos, apesar de não negarem que tenha sido escritas por Paulo. Muitos concordam que a epístola foi escrita em grego apesar de ser direcionada para pessoas de fala latina. Também não há debate sobre este ponto, pois segundo Barnes: 1. A epístola foi escrita para ser lida também em outras igrejas, compare com Colossenses 4:16. E como a língua grega era mais difundida do que a latina, ela serveria melhor para este propósito.

2. O grego era entendido naquela época em Roma. Os jovens romanos aprendiam grego. Quanto a isto, Cícero escreve (Pro. Arch.) "A linguagem grega é falada em quase todas as nações; o latim é confinado a nossas comparativamente limitadas fronteiras". Tácito dizia (Orat. 29) "Um bebê nascido agora é entregue a uma enfermeira grega". Juvenal (vi. 185) fala de ser indispensável para uma boa educação o conhecimento de grego.

3. Não era impossível para os judeus em Roma, que constituíam uma colônia separada, estarem mais acostumados com o grego do que com o latim. Eles tinham uma tradução grega das Escrituras, não latina. E é bem possível que eles usassem a linguagem que usavam nas Escrituras, e que eram amplamente usada pelos gentios de todo o império.

4. O próprio apóstolo provavelmente era mais familiar com o grego do que com o latim. Ele era nativo de Cilicia, onde sem dúvida era falado o grego. Muitas vezes citava poetas gregos em suas pregações e epístolas, como em Atos 21:37; 17:28; Tito 1:12; 1 Coríntios 15:33.

A epístola é colocada em primeiro lugar na Bíblia não por ter sido a primeira escrita, mas pelo tamanho e importância. Há razões para se acreditar que as epístolas aos Gálatas, Primeira aos Coríntios e talvez as duas aos Tessalonicenses foram escritas antes desta. Sobre quando foi escrita, há poucas dúvidas, que o próprio Barnes nos explica. No ano de 52 ou 54, o imperador Cláudio baniu todos os judeus de Roma. Em Atos 18:2 temos um relato do encontro de Paulo com um judeu chamado Áquila e Priscila, que partiram de Roma em consequência deste decreto, e que aconteceu em Corinto. Em Romanos 16:3,4, Paulo fala para a igreja saudar os dois, os quais expuseram seus pescoços por ele. Este ato deles deve ter sido portanto depois do ano 52. Em Atos 18:19, Paulo deixa Áquila e Priscila em Éfeso, enquanto pregava em regiões adjacentes. Em Atos 19:1 Paulo retorna a Éfeso, onde fica por dois anos (Atos 19:10). Provavelmente neste momento escreve sua primeira carta aos Coríntios, onde Paulo menciona Áquila e Priscila (1 Co 16:19). Assim, a epístola aos Romanos não poderia ser escrita enviando saudações para Áquila e Priscila até que eles deixassem Éfeso e fossem novamente para Roma. Prosseguindo, quando Paulo escreveu esta epístola, ele estava prestes a ir para Jerusalém por causa da coleta para os pobres santos de lá (Romanos 15:25,26). Depois de concluir isto, ele pretendia ir a Roma (Romanos 15:28). Olhando o livro de Atos, podemos determinar quando foi isto. Em Atos 19:21 temos uma descrição exata desta ocasião. Neste tempo ele manda Timóteo e Erasmo para a Macedônia enquanto fica nas igrejas da Ásia por algum tempo (Atos 19:22). Depois disto, ele mesmo foi para a Macedônia (Atos 20:1,2) passando pela Grécia, e ficou ali três meses (Atos 20:3). Nesta jornada é quase certo que ele foi para Corinto (2 Coríntios 1:15,16), onde se supõe que a epístola tenha sido escrita. Depois disto, ele foi para Jerusalém, onde ficou preso por dois anos (Atos 24:27). Ele foi mandado a Roma por volta do ano 60. Adicionando o tempo de viagem e o aprisionamento, podemos concluir que Paulo deve ter escrito esta epístola em torno do ano de 57 D.C. Também está claro que a epístola deve ter sido escrita de Corinto. Em Romanos 16:1, Paulo menciona Febe, membro da igreja de Cencréia. Ela deveria estar responsável pela epístola. Cencréia era a cidade portuária de Corinto, e Corinto foi manifestamente sua residência (2 Coríntios 1:15,16). Também é mencionado Erasto como tesoureiro da igreja presente nesta cidade (Romanos 16:23), enquanto que se fala que ele ficou em Corinto (2 Timóteo 4:20). Tudo isto indica que a carta foi escrita em Corinto no ano 57 D.C. Sobre a fundação desta igreja, muito foi discutido sobre o assunto. Para católicos, a fundação dela se deve aos apóstolos, talvez baseando-se na citação de Ireneu:

Mas visto que seria coisa bastante longa elencar, numa obra como esta, as sucessões de todas as igrejas, limitar-no-emos à maior e mais antiga e conhecida por todos, à igreja fundada e constituída em Roma, pelos dois gloriosíssimos apóstolos, Pedro e Paulo, e, indicando a sua tradição recebida dos apóstolos e a fé anunciada aos homens, que chegou até nós pelas sucessões dos bispos, refutaremos todos os que de alguma forma, quer por enfatuação ou vanglória, quer por cegueira ou por doutrina errada, sereúnem prescindindo de qualquer legitimidade. Com efeito, deve necessariamente estar de acordo com ela, por causa da sua origem mais excelente, toda a igreja, isto é, os fiéis de todos os lugares, porque nela sempre foi conservada, de maneira especial, a tradição que deriva dos apóstolos.

Ireneu, Contra as Heresias, capítulo 3, livro 3.

Porém podemos perceber que Ireneu não estava correto nesta informação. O próprio Paulo escreve para uma igreja em Roma, dizendo que pedia em orações para ter uma ocasião de estar com aquela igreja (Rm 1:10), pois muitas vezes ele se propôs a visitá-los, sendo impedido até aquele momento (Rm 1:13). Se Paulo foi impedido de ir àquela igreja até aquele momento, ele não poderia tê-la fundado. Resta saber quem teria fundado aquela igreja. Por outro lado, se Pedro estivesse em Roma, certamente seria mencionado nas saudações de Paulo àquela igreja. O mais provável é que a igreja tenha surgido sem a fundação de nenhum apóstolo. Em Atos 2:10 há a menção de forasteiros romanos, o que pode levar a crer que estes após sua pregação, onde foram convertidos quase três mil pessoas (At 2:41).


Rembrandt, "O Apóstolo Paulo na Prisão"




A doutrina da Trindade, uma introdução


Uma das objeções mais formuladas por aqueles que combatem a doutrina da Trindade é que ela não teria embasamento bíblico, segundo eles alegam, daí a promoverem uma visão unicista da essência divina. 

A meu ver, há 3 abordagens para responder a esta objeção, sobre se a Bíblia dá ou não dá suporte à doutrina da Trindade (ou do Unicismo).

A primeira é que, conforme a multiplicidade de igrejas e dissensões prova por si só, a Bíblia dá margem não só à sã doutrina (que é objeto constante das cartas de Paulo a Timóteo - 1 Ti 1:3, 6:3; 2 Ti 1:13 ), como também a pequenas variações doutrinárias que não influem decisivamente no conjunto da obra redentora de Cristo (forma de batismo, guarda da Lei, dons espirituais, etc.).

A segunda é que esta multiplicidade de interpretações — sobretudo com textos isolados de difícil explicação — dá também vazão às mais variadas aberrações doutrinárias, como se pode facilmente perceber. Por exemplo, os Testemunhas de Jeová dizem que Jesus não é Deus, os mórmons acreditam numa espécie de "triteísmo" (3 pessoas divinas distintas), batizam pelos mortos e têm livros 'adicionais' à Bíblia, e por aí vai.

A terceira é a resposta, propriamente dita, à objeção: a Bíblia não dá suporte à versão "mecânica" unicista da essência divina. E isto por razões relativamente muito simples, que passo a explicar:

A questão da doutrina da Trindade é central no cristianismo. 

Não é por outra razão que ela foi profundamente discutida na origem da Igreja Cristã. 

A primeira preocupação dos apóstolos e dos cristãos que os seguiram foi defender o fato de que Jesus é, de fato, Deus, ou seja, a doutrina da Encarnação

Não foi uma disputa fácil, pois o gnosticismo e o arianismo (as Testemunhas de Jeová são arianas, por exemplo) eram forças poderosas que ameaçavam minar as doutrinas básicas da Igreja Cristã. 

Após terem sido combatidas e vencidas, e a doutrina da Encarnação ter sido reconhecida como verdade fundamental, os líderes da nascente Igreja Cristã (que ainda não era a Igreja Católica como a conhecemos hoje, temos que reforçar essa verdade), se depararam com a questão da Trindade, que, mesmo com todas as evidências bíblicas, era negada pela facção minoritária dos modalistas em geral (sabelianismo, monarquianismo, patripassianismo, subordinacionismo, etc.). 

De forma resumida, eles criam na Encarnação (razão pela qual – a princípio - não se misturaram com os arianos e gnósticos), mas afirmavam que não havia 3 Pessoas distintas - eterna e consubstancialmente coexistentes - no Deus Único cristão. 

Para eles, o Deus cristão é absolutamente Único, sem qualquer distinção de Pessoas, mas que se apresenta em manifestações ou modos (daí o 'modalismo') distintos.

Ora, nunca é demais insistir no argumento de que, se Deus é absolutamente Único, e não há nEle nenhuma distinção entre Pai, Filho e Espírito Santo, então o fato incontornável é que esse Deus absolutamente Único morreu absolutamente na cruz, e o mundo ficou sem Deus da sexta-feira da Paixão ao domingo da Ressurreição, o que é claramente absurdo. 

Por outro lado, se Jesus era apenas uma 'manifestação', uma espécie de 'extensão de Deus', como dizem os unicistas, então o fato é que não foi Jesus, 100% homem e 100% Deus, que morreu na cruz, mas uma espécie de 'espectro substituto' do sacrifício que Deus fez de si mesmo pelos nossos pecados, conforme dizem, entre outros textos, Isaías 53 e Filipenses 2:

5 Tende em vós aquele sentimento que houve também em Cristo Jesus,
6 o qual, subsistindo em forma de Deus, não considerou o ser igual a Deus coisa a que se devia aferrar,
7 mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens;
8 e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz.

Um dos textos bíblicos mais profundos sobre esta questão está em Hebreus 9, que não por acaso começa - no seu v. 14 - a mostrar as 3 Pessoas coexistentes na Trindade operando conjunta e distintamente para a nossa salvação:

Heb 9:14 Quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno se ofereceu a si mesmo imaculado a Deus, purificará as vossas consciências das obras mortas, para servirdes ao Deus vivo?
Heb 9:15 E por isso é Mediador de um novo testamento, para que, intervindo a morte para remissão das transgressões que havia debaixo do primeiro testamento, os chamados recebam a promessa da herança eterna.
Heb 9:16 Porque onde há testamento, é necessário que intervenha a morte do testador.
Heb 9:17 Porque um testamento tem força onde houve morte; ou terá ele algum valor enquanto o testador vive?

Está claro que é necessária a morte do testador, e como o texto cristalinamente aponta, esse testador é o próprio Deus

Ou seja, a prevalecer o entendimento unicista, ou Deus morreu inteiramente na cruz, ou quem morreu (Jesus) era apenas uma 'extensão' dEle, e nesse caso, podia ser qualquer outro ser humano, ou mesmo um anjo, já que a ideia (absurda) é exatamente essa de um sacrifício, digamos, 'menor'. 

Neste caso, portanto, não há salvação! 

Assim, mesmo que os unicistas fossem, a princípio, defensores da doutrina da Encarnação, a conclusão prática de suas ideias termina levando, em última instância, à negação da própria doutrina da Encarnação !!!!

A doutrina da Trindade, ainda que inalcançável à razão (como sempre insisto) e às representações ideográficas (como a da ilustração acima), é a única que admite que, de fato, foi Deus quem morreu na cruz, conforme predito pelos profetas e confirmado pelos apóstolos.

Naquela cruz estava Jesus Cristo, 100% Deus e 100% homem, morrendo pelos nossos pecados, já que era impossível ao homem salvar-se a si mesmo, e mesmo assim o mundo não ficou sem Deus enquanto Jesus desceu à sepultura.

Como isso foi possível? Resposta honesta: não sabemos, porque esta é uma questão que escapa completamente à razão humana e pertence do domínio dos mistérios de Deus (Deuteronômio 29:29).

Apenas queremos ser humildes para admitir que não temos a resposta, mas descansamos em Deus pela .

Foi por esta razão que os pais da Igreja primitiva não contemporizaram com a tese unicista, porque sabiam que, a prevalecer essa ideia, a salvação de Cristo Jesus estaria anulada, pelas razões que já comentei anteriormente. 

Não foi por má vontade, por dificuldade de diálogo, por uma cosmovisão mais ampla, por vontade de falar bonito, que a doutrina da Trindade foi defendida pela Igreja nascente e prevalece até hoje, mas por absoluta necessidade, por ser a doutrina da Trindade essencial para explicar a salvação, isto é: que o mundo não ficou sem Deus durante a paixão, crucificação e morte de Cristo, e que foi Deus, de fato, quem morreu oferecendo-se a Si mesmo como sacrifício pelos nossos pecados. 

É exatamente esta salvação que não existiria, se prevalecesse a ideia unicista.

O concílio de Nicéia, em 325 d.C., apenas oficializou o que estava nas Escrituras, e representava aquilo que a imensa maioria da Igreja cria nos 3 séculos anteriores, e felizmente crê até hoje. 

Os unicistas, espertamente, sabendo que é 'bonito', entre os evangélicos, falar mal dos católicos romanos, dizem que "foi a Igreja Católica que, atendendo às ordens de Constantino, "impôs" a doutrina da Trindade", o que é uma mentira histórica, por duas razões básicas:

1) A Igreja Católica, na época, era o que o nome 'católico' em grego significa exatamente: uma igreja 'universal'. Não havia ainda, como os católicos afirmam, uma supremacia do bispo de Roma, o 'papa', tanto que o 'papa' Silvestre I, inimigo de Constantino, nem compareceu ao Concílio de Nicéia. A Igreja de então era universal, em que os principais bispos (ou 'patriarcas') eram os de Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém. A supremacia do bispo de Roma, o 'papa', só veio a se estabelecer mais fortemente a partir do século VI, e somente sobre a ala ocidental da Igreja, já que a ala oriental (modernamente, os 'ortodoxos'), nunca a aceitou e continuou sendo governada pelos 'patriarcas' principais.

2) Constantino, que, segundo os unicistas, teria imposto a doutrina da Trindade, morreu ariano. Tecnicamente falando, ele morreu como uma espécie de Testemunha de Jeová do séc. IV. Ora, como é possível que ele 'impusesse' a doutrina da Trindade no Concílio de Nicéia se ele nem cria que Jesus é, de fato, total, coexistente, consubstancial, e completamente Deus? Logo, o Concílio de Nicéia decidiu algo contrário ao que o próprio Constantino cria. Como é que alguém impõe algo que não crê?

Portanto, feitos esses esclarecimentos, não há como aceitar as teses unicistas, não há como fazer um 'acordo' delas com a doutrina da Trindade, porque elas anulam o que os cristãos têm de mais valioso, que é a salvação

A doutrina da Trindade foi uma formulação teológica fundada nas Escrituras que a Igreja Cristã, então nascente, encontrou para resolver alguns problemas lógicos que a ideia da Unicidade de Deus apresenta e, dentre os unicistas, nenhum deles se dispõe a enfrentá-los, talvez por uma espécie de "orgulho espiritual" gnóstico do tipo: "ah! eu sei mais que você!"

Permitam-nos retornar à polêmica do arianismo para verificar como a heresia ariana caminha de braços dados com a doutrina unicista. 

Isto porque negar a Trindade significa também negar a Imutabilidade de Deus e a própria Encarnação

E é este exatamente o ponto central do arianismo, heresia que Ário defendeu no século III.

Ário dizia que o Verbo (Jesus) era, de fato, pré-existente à criação, mas que Ele havia sido gerado em algum ponto do tempo, e, portanto, não era Deus, mas uma espécie de “ser divino”, ou "sabedoria" divina, como alguns arianos modernos afirmam. 

Ora, admitir que Jesus (o Verbo) foi gerado num determinado ponto do tempo que não a eternidade, significa dizer que Ele é apenas uma criatura, não Deus. 

Sendo uma criatura, e não Deus, Jesus seria então, mutável

E Deus, como bem sabemos, é imutável

Observem agora como a sutileza do erro opera: se o Filho foi criado num determinado ponto do tempo (que não a eternidade), então houve um tempo em que Deus Pai não era Pai, mas passou a sê-lo. Logo, Deus seria mutável !!! 

E, sendo Deus mutável, esta ideia termina por anular o próprio Deus, já que ele deixa de ser imutável como sempre afirmamos que era, é e será, e como Ele próprio se apresenta na Bíblia ("o Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação" - Tiago 1:17). 

E se Jesus é apenas uma criatura, não foi Deus quem morreu na cruz, logo não há como o sacrifício de Jesus possa salvar alguém. Isto também anula a salvação.


Logo, de uma tacada só, o arianismo, aqui disfarçado de unicismo, anula a salvação e nega a própria existência de Deus. 

É por isso que se diz que Jesus foi gerado eternamente, e a ideia de eternidade é algo que a mente humana não consegue alcançar. 

Se Jesus não tivesse sido gerado eternamente, Deus teria se tornado Pai no decurso do tempo, e isto quebraria a sua condição de imutável, o que, em última instância, anula a existência de Deus e torna vã a fé.



El Greco, "A Santa Trindade"

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