terça-feira, 10 de junho de 2008

Eclesiastes - capítulo 5

Leitura anterior: Eclesiastes - capítulo 4

O capítulo 5 de Eclesiastes marca uma inflexão no discurso do Pregador, no sentido de que é o primeiro capítulo onde Deus tem, digamos, um papel preponderante na sua exposição. 

Até então, a tônica estava na rotina da vida e nos fluxos e refluxos - inúteis e intermináveis - da vaidade humana. 

Como eu havia comentado antes, no capítulo 2, o Pregador apresentou – brevemente - 3 pilares onde apoiava o seu discurso: a sabedoria, a eternidade e a providência divina, o que lhe dava ainda alguma instabilidade na articulação das suas idéias; mas, para obter maior sustentação, no capítulo 5 ele introduz o quarto pilar: o temor de Deus

Logo no primeiro versículo (que nas versões católicas corresponde ao v. 17, o último do cap. 4), a Casa de Deus surge como que do "nada" no seu discurso, como se tudo o que houvesse escrito até então fosse vã (vaidosa) filosofia. 

Uma paráfrase possível de "Guarda o teu pé quando entres na Casa de Deus" talvez fosse: "toma consciência da importância deste passo, quando começas a falar das coisas de Deus". 

Dentro do contexto de Eclesiastes, "pé" (רגל - regel ) aí pode ser entendido também como "passo", ou seja, por "chão", que pode tanto significar uma caminhada "debaixo do sol" como o Pregador vinha propondo, como uma tomada de consciência da existência "pé no chão", realista, concreta, de cada um de nós, que, num certo marco da caminhada, não encontra mais respostas às suas perguntas nem alívio para o seu cansaço e enfado. 

Há momentos, portanto, em que somente o imanente (o "ser", o "estar", o "ter") não basta, não nos satisfaz, e por isso precisamos do (e buscamos o) transcendente (o "deve ser", o "pode ser", o "deverá ser"), e esta busca somente se aperfeiçoa na Casa de Deus, diante do Todo-Poderoso. 

Neste encontro, inevitável para todo ser humano, para o seu bem ou seu mal, todo cuidado é pouco. 

Não podemos oferecer "sacrifício de tolos", na expressão do v. 1, sacrifícios esses "que fazem mal". 




O silêncio, a prudência, o compromisso e a reverência são qualidades indispensáveis para aproximar-se de Deus em contemplação (v. 2), como o salmista já dizia: "Sejam agradáveis as palavras da minha boca e a meditação do meu coração perante a tua face, Senhor, Rocha minha e Redentor meu!" (Salmo 19:14). 

A tradução da Bíblia do Peregrino para o v. 2 (que nas Bíblias católicas corresponde ao v. 1) é muito interessante: "Quando apresentares um assunto a Deus, que teus lábios não se precipitem, nem o pensamento te arraste". 

Quantas vezes temos essa experiência, de que nos apresentamos diante de Deus em oração e pensamentos errantes nos arrastam para longe de Sua presença. 

A leitura desta "precipitação" no falar pode ter uma interpretação muito mais abrangente, não só espiritual, mas também terrena e bastante cotidiana: quantas vezes, numa discussão (acalorada ou não) somos tentados a ter a última palavra? A ter sempre razão?

Quando isto acontece, dependendo - obviamente - das circunstâncias, ¿não podemos deixar a última palavra para a outra pessoa?

Não seria isto um exercício de humildade e disciplina?

Afinal, o v. 3 diz que, ao falar demais, corre-se o risco de dizer "palavras néscias" (Almeida Revista e Atualizada) e daí "nasce a prosa vã do tolo" (NVI).

Este versículo acrescenta que trabalhar demais produz sonhos, talvez porque o cansaço provoca o inevitável sono correspondente (vital à saúde física), talvez porque os sonhos são a única maneira do inconsciente reorganizar, digamos, a saúde mental e emocional da pessoa. 

A estes três tipos de saúde se deve adicionar a saúde espiritual.

Por isso, o Pregador prossegue ensinando que o que Deus requer de nós é inteireza de coração, e, como o salmista diz, "sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito quebrantado; coração compungido e contrito, não o desprezarás, ó Deus" (Salmo 51:17). Assim, tolo é aquele faz um voto e não o cumpre, melhor é não fazê-lo do que desagradar a Deus (vv. 4-6).

A seguir, o Pregador retorna ao tema da opressão dos pobres (no extenso e profundo v. 8 - como já havia se referido no início do cap. 4). 

Fala do roubo e da cadeia de corrupção que dominam este mundo em lugar do direito e da justiça. 

É interessante que o Pregador faça esta distinção entre Direito e Justiça, algo que até hoje não é muito claro para quem vive nas sociedades modernas, e nem para quem estuda a Filosofia do Direito. 

Primeiramente, Justiça é um valor filosófico inalcançável pela sabedoria humana. Todos os grandes filósofos, desde Aristóteles, trataram de investigar e elaborar uma fórmula final e definitiva do que significa a verdadeira Justiça, e, embora as suas muitas contribuições, até hoje este conceito permanece impenetrável. 

Nietzche, por exemplo, entendia que o ideal de Justiça tem seu fundamento na inveja humana (como o Pregador já inferira em 4:4). 

Assim, ninguém valoriza a Justiça por mera contemplação de qualidades sublimes do homem, mas porque não quer que ao outro seja permitido o que a ele não é. 

Logo, se o outro comete um crime, por exemplo, ele o denuncia porque tem inveja de que o outro possa fazer impunemente o que a ele é ilícito. 

Enfim, cada um de nós tem um ideal de Justiça, coletivo ou individual, e nem sempre ele é protegido pelo Direito, ou seja, pela Lei e pela sua aplicação pelos juízes. 

Mesmo a Lei nem sempre é considerada justa por todos, mas por uma maioria democraticamente qualificada, como no caso das restrições do aborto ou do consumo de drogas tidas como "leves", por exemplo. 

O Pregador já percebia essa distinção tipicamente humana, mas também divina, já que a Lei mosaica, ainda que expressasse o Direito divinamente revelado ao povo judeu, não podia conter, na sua finitude terrena, todo o esplendor eterno e infinito da Justiça de Deus.

Ainda neste compasso, Salomão, o rei, diz algo que continua tão moderno que poderia ser usado pelo MST atualmente: "o proveito da terra é para todos; até o rei se serve do campo" (v. 9). 

Aparentemente, é um versículo deslocado do contexto do v. 8, mas o Pregador associa o fim da opressão ao proveito da terra por todos, e não por casualidade, a posse e o usufruto da terra sempre esteve ligada às questões de direito e justiça. 

Rousseau já dizia que "o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil"[1]

Roland Barthes[2] entende que a Retórica surgiu em função da reivindicação de terras entre os gregos do século V a.C., quando, depois da derrubada dos dois tiranos invasores sicilianos, Géron e Hiéron, os exilados voltaram e havia uma confusão de terras depois dos muitos confiscos. 

As questões possessórias terminaram sendo decididas em grandes assembleias públicas, em que era preciso ser eloquente para convencer os jurados da justiça do seu quinhão de terras. 

Um dos mais renomados filósofos do Direito no Brasil, Tércio Sampaio Ferraz Junior, lembra que “a palavra diké, que nomeava a deusa grega da Justiça, derivava de um vocábulo significando limites às terras de um homem. Daí uma outra conotação da expressão, ligada ao próprio, à propriedade, ao que é de cada um[3]

Diké era representada pela estátua de uma mulher segurando a balança na mão esquerda e a espada na direita, mas com os olhos abertos. 

A colocação da venda nos seus olhos vem com a absorção da mitologia grega pelos romanos, que criam a deusa Iustitia, que até hoje vemos em fóruns e escritórios de advocacia. 




É interessante observar, portanto, que a formulação ocidental moderna de Justiça já se encontrava presente em Eclesiastes, seja o seu autor Salomão ou um judeu do século VI a. C.. 

Alguém poderia objetar que as culturas se influenciaram mutuamente, mas não houve tempo nem condições para tanto, já que a menor datação possível para Eclesiastes é anterior à consolidação da cultura grega, que se dá a partir do século V a. C. 

De qualquer forma, se nota um ideal de direito e de justiça muito semelhante em vários povos antigos, e que permanece até hoje.

Não por acaso, o Pregador encerra o capítulo 5 falando do amor ao dinheiro, "a raiz de todos os males" na visão de Paulo (1 Timóteo 6:10). 

Afinal, a propriedade de terras era o sinal mais visível de alguém. Enquanto o trabalhador pobre dorme um sono tranqüilo, o rico se preocupa com a sua fartura (v. 12), transformando as riquezas no seu próprio dano (v. 13), e, se morre, o rico as deixará de herança para quem nunca trabalhou para merecê-las (v. 14). 

Assim, o Pregador retoma um tema com o qual já finalizara o capítulo 2. Afinal, por que trabalhar tanto, se nus saímos do ventre da mãe e nus voltaremos ao ventre da terra, e não poderemos levar nada conosco (v. 15)? 

Trabalhamos para o vento, então... (v. 16). Passamos por muitas dificuldades e muitos aborrecimentos para ajuntar dinheiro (v. 17), mas verdadeiramente "boa e bela coisa é comer e beber e gozar cada um do bem de todo o seu trabalho, com que se afadigou debaixo do sol, durante os poucos dias da vida que Deus lhe deu" (v. 18). 

"A vida é curta, aproveite-a!", grita o Pregador, e as coisas que batalhamos para conseguir ajuntar, na verdade, são dons de Deus (v. 19), e é Ele, e somente Ele que nos enche o coração de alegria (v. 20).


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[1] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a Origem da Desigualdade. Rio de Janeiro: Athena Editora. Trad. de Maria Lacerda de Moura, s/d, p. 124
[2] BARTHES, Roland. A Aventura Semiológica. São Paulo : Martins Fontes, 2001, trad. port. de Mario Laranjeira, p. 9
[3] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo Do Direito. Técnica, Decisão, Dominação. São Paulo: Atlas. 2003. 4ª ed., p. 52



Leitura seguinte: Eclesiastes - capítulo 6


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