sábado, 14 de junho de 2008

A permanência da hipocrisia

Hélio Schwartsman escreveu um artigo na Folha de S. Paulo, intitulado "A volta da filosofia", em que aproveita o retorno da disciplina aos currículos escolares para fazer uma análise das causas da decadência do sistema educacional brasileiro. Custa-me comentar este artigo, porque ele é de um cinismo revoltante. É preciso muito estômago para ler até o final, mas vou tentar me limitar ao óbvio ululante que salta aos olhos mesmo dos mais desavisados. Primeiramente, não creio que o simples retorno da filosofia e da sociologia ao currículo das escolas, como medida isolada, sem estar inserida numa reestruturação profunda de todo o sistema educacional, represente a salvação da Pátria. Entretanto, não deixa de ser um passo interessante. Em segundo lugar, a filosofia ensina, sim, a pensar, e a ser ético; e a sociologia, ajuda a entender a sociedade em que vivemos. É óbvio também que, isoladas, sem um amparo conjuntural que envolva a família e a sociedade, ambas as disciplinas pouco podem fazer, sobretudo num país onde a impunidade é incentivada, o crime compensa, e essa dura realidade nos é jogada na cara todos os dias no país. Quando uma multidão de pais abandona, tortura, vende ou mata os seus filhos, alguma coisa muito grave está acontecendo com esta sociedade, algo que uma simples perícia criminal não conseguirá responder, e é preciso mergulhar nas entranhas de todo o processo social que nos trouxe a este estado de coisas.

E é nisso, basicamente, que o artigo falha. Entende uma resposta pontual, específica, mínima até, como é o retorno das duas matérias ao currículo escolar, como fruto de uma profunda agitação sindical de esquerda, revelando desconhecer que o sindicalismo brasileiro, como representante autêntico das bases, é um fenômeno em extinção, já que existe hoje, principalmente, para favorecer as suas estruturas dirigentes e não a massa trabalhadora. A CUT e a Força Sindical estão aí para comprovar esta afirmação, embora de vez em quando atirem algumas migalhas ao povão. O Brasil conseguiu criar uma versão original e perversa de plutocracia sindical. Assim, ao apontar um sindicalismo militante pretensamente esquerdista, praticamente inexistente no Brasil, o artigo passa a apontar algumas causas para a desgraça da Educação no país, causas essas muito simplistas e falaciosas, como a de que a explosão populacional do século XX foi uma das causas decisivas na degradação escolar. Resumo da ópera: o culpado é o povão, porque se procria! Deveriam ter-se contentado a viver como bichos nos latifúndios, perder 8 dos 10 filhos no parto, e morrer aos 30 anos de idade. A elite dominante do país assistiu a este fenômeno impávida. Não se preparou, não se ajustou à nova realidade que levou décadas para se instalar. Quando percebeu – surpresa das surpresas -, os coelhos haviam se multiplicado fora de controle (como se não precisassem de paus-de-arara e mão-de-obra barata para se sujeitarem aos seus caprichos e quase-escravidão). Este ocaso da educação, ocorrido não por acaso na ditadura militar, levou, segundo o artigo, à proletarização do professorado, assim, por gênese espontânea, como se não fosse um caso pensado e ideologicamente premeditado para solapar as bases da sociedade brasileira a partir das escolas.

Ora, bolas! Façamos uma analogia, então. Por vias tortas tentemos endireitar este caminho, já que, segundo o autor, ele está tão "esquerdizado". As ferrovias brasileiras floresceram durante toda a primeira metade do século XX, até a década de 60. Consideradas as condições tecnológicas da época, atendiam boa parte da população do país e se expandiam com constância e qualidade. Quando JK trouxe a indústria automobilística para o país, era necessário fazer estradas. Não por acaso, o traçado da imensa maioria das estradas federais brasileiras é dessa época e a maior parte delas foi traçada em Minas Gerais. Para fazer o Brasil entrar no ciclo econômico mundial em que o pólo principal era a indústria automobilística, o país precisava não só fabricar, mas também comprar automóveis e caminhões. Como fazer isto, se as nossas ferrovias eram tão boas? Com o regime militar instaurado a partir de 1964, é que começa o desmonte do sistema ferroviário, relegado ao abandono. Chegaram ao cúmulo de estatizar as ferrovias privadas, como aconteceu em São Paulo, em que as ótimas ferrovias privadas, como a Paulista (sobretudo), Sorocabana e Mogiana, foram reunidas numa estatal, a FEPASA, que tinha a mórbida missão de matá-las à míngua. A RFFSA (Rede Ferroviária Federal), além de ter-se tornado um antro de corrupção, deveria ter entrado para o Guiness como o maior pátio de ferro velho a céu aberto do mundo. Nisso, a direita brasileira é nefastamente curiosa. Quando o negócio é bom para o Estado e ruim para eles, eles estatizam para destruí-lo, recolhendo o rescaldo nas suas contas bancárias. Quando o negócio é bom para ambos, eles inventam todas as desculpas possíveis para privatizá-lo. Assim, os anos passaram, as ferrovias foram sucateadas, bilhões de dólares do povão foram jogados no lixo (para que outros bilhões recheassem poucos bolsos privados), e, salvo algumas ferrovias recentes e de transporte específico (como minério), o Brasil hoje roda sobre caminhões e não sobre vagões. Um única ferrovia que transporta passageiros resiste, entre Belo Horizonte e Vitória, talvez porque mineiro adore ir à praia de trem.

Guardadas as devidas proporções, o desmonte do sistema educacional brasileiro seguiu os mesmos trilhos. Não interessava à ditadura governar um país de pessoas que aprendessem a pensar. Um povo educado e politizado ameaça a supremacia da elite hegemônica, enquanto uma massa ignara desconhece seus direitos e aceita trabalhar por um prato de comida ou se deixa escravizar pelos mais "espertos". Era preciso evitar este perigo, senão pela perseguição, tortura e assassinato de quem se lhes opusesse, mas principalmente, pelo desestímulo a qualquer tentativa de melhorar a educação. Da mesma maneira que fizeram com as ferrovias, sucatearam a educação, no que foram muito ajudados pelos meios de comunicação, diga-se de passagem. Eu acho tragicômico quando a Globo hoje reclama da impunidade, da falta de educação, e dos índices sociais alarmantes do país. Ora, eles ajudaram a produzir esta triste realidade, ao domar a sociedade, e desviar a sua atenção, enquanto os monstrengos devoravam o patrimônio e a inteligência do país. Se boa parte da população hoje não tem pensamento crítico ou não sabe votar, ou, ainda, prefere assistir Sônia Abrão em vez de ler um bom livro, é porque assim foi (de)formada pela própria Globo, que apenas está colhendo o fruto dos anos de (des)serviço que prestou à sociedade brasileira.

O autor finaliza o artigo com uma lógica de mercado: "o 'segredo' do ensino de qualidade é a soma de um truísmo (bons professores formam bons alunos) com uma obviedade (para recrutar os melhores profissionais, é preciso oferecer uma carreira atrativa, senão financeiramente, ao menos em termos de valorização social). É exatamente o que não estamos fazendo". Esquece-se apenas de que isto tudo é exatamente o que não fizemos nas últimas décadas, muito mais por imperativos ideológicos do que mercadológicos, e que tentar apontar – ideologicamente – a esquerda como causadora dessa tragédia brasileira, continua sendo tão ideológico como hipócrita. Assim, fica fácil entender porque Hélio Schwartsman não quer que a filosofia e a sociologia voltem aos currículos escolares: para a geração vídeo-game, vai ficar fácil demais desmontar farsas ideológicas como a que ele propôs.

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