Numa região em permanente estado de guerra e num país marcado pelo ódio religioso, ainda há lugares onde cristãos e muçulmanos podem viver em paz e harmonia, segundo noticia o UOL:
No Egito deflagrado,
xeque e padre mantêm
amizade de 40 anos
Richard Furst
Às margens do Rio Nilo, no vilarejo de Qufada, município de Maghagha, no Alto Egito, vive uma dupla de amigos totalmente estranha para o país onde nasceram: Fattah Hamdi, xeque, mantêm há mais de 40 anos a amizade do padre Yoanas.
A semelhança da túnica, da barba longa e do semblante destes dois amigos escondem diferenças enormes.
De um lado, um salafista do Partido Nour, grupo islâmico ultraconservador que quer definir uma nova ordem no país de acordo com tradições do século 7. Do outro, está um sacerdote da Igreja Copta, uma das comunidades cristãs mais antigas do mundo.
No surto de violência no Egito, as propriedades cristãs têm sido alvos constantes de ataques de radicais islâmicos. Mesmo antes das manifestações pelo país, houve prisões de manifestantes lutando pela construção de novos templos.
Os cristãos compõem em torno de 10% dos quase 90 milhões de egípcios. Apesar de ser comum a amizade entre seguidores das duas religiões, as lideranças muçulmanas mantêm linha dura e proíbem a construção ou restauração de igrejas sem a aprovação de autoridades locais. Um relatório divulgado pelo governo egípcio aponta que existem duas mil igrejas no país, contra mais de 100 mil mesquitas.
"Manter a nossa amizade há mais de 40 anos é uma forma também de contribuir para a sociedade local. Ao lado disso, há fortes laços entre nossas famílias: superamos momentos pessoais juntos. Participamos de jantares do mês sagrado do Ramadã e dos almoços de Natal e Páscoa. Nossos filhos são amigos também, só não sabemos se vão seguir a vida como xeque e padre", destaca Yoana, enquanto espera Hamdi para uma reunião num campo de futebol, onde jovens muçulmanos e cristãos também têm o hábito de se encontrar para conversar.
É sexta-feira, dia de descanso nos países árabes, mas Yoanas tem agenda normal. O xeque está atrasado, porque ainda não terminou as orações semanais na mesquita.
Enquanto espera, o padre é surpreendido por uma muçulmana que pede ajuda para retirar parte de um brinquedo que feriu o nariz do filho. Yoanas chama o padre que realiza os serviços médicos na igreja: uma bolinha é retirada com uma pinça, e a mãe, que não tem contato físico com homens, balança a cabeça para agradecer o socorro.
"As relações entre muçulmanos e cristãos aqui na cidade são muito fortes. É amizade, não apenas cumprimentos pelas ruas. Se houver problemas, mesmo entre dois cristãos, viemos à igreja para ajudar a resolvê-los", diz o xeque ao se aproximar do templo e ver o atendimento médico realizado.
O xeque também é do Comitê de Reconciliação, local que trabalha de acordo com regulamentos islâmicos extremamente tradicionais.
As diferenças são colocadas de lado no dia a dia e eles parecem conversar sobre os mais diferentes temas. São a favor, por exemplo, da nova Constituição do Egito. O copta espera que essa possa ser a oportunidade de facilitar a construção de novas igrejas cristãs, algo praticamente impossível neste momento. A relação com as suas mulheres – o título religioso não os proíbe do casamento –, os filhos e os problemas da comunidade também são tratados.
"Fazendo caridade em nossa região, a gente encontrou uma forma de falar sobre religião e política sem alterar a voz. É preciso se dedicar ainda mais, nós sabemos, temos muito ainda a conversar sobre nossas doutrinas", acrescenta o padre.
A população local, formada por cerca de 220 famílias cristãs e mais de 30 mil muçulmanos, recorre constantemente às lideranças religiosas. Até em casos extremos, o xeque ou o padre são acionados pelos moradores antes mesmo do hospital ou da polícia. Qufada está distante do Cairo não só pelas quatro horas de carro, mas pelas galinhas e jumentos soltos nas ruas aonde o asfalto, o saneamento básico e a coleta de lixo ainda não chegaram.
"Todos os dias nós resolvemos problemas entre a população. Em muitos casos, uma luta ou acidente pessoal se transforma em conflito religioso, sem ter essa origem. Certa vez um cristão atropelou um muçulmano. Se a vítima tivesse morrido seria um grande problema porque as pessoas começariam a relacionar com a igreja. Nós não aceitamos qualquer opinião tendenciosa ou agressiva em favor de um grupo ou ideia", frisa o xeque.
Há diversos relatos de que líderes islâmicos incitaram atos contra cristãos, transmitindo mensagens contra coptas pelos alto-falantes de mesquitas e durante os protestos pela restituição do presidente deposto Mohamed Mursi.
Em Qufada não é diferente. Mas Hamdi diz que está pronto para subir a qualquer momento até a torre da igreja da Virgem Maria para proteger o templo do amigo Yoanas. Sobre os ataques e mortes em manifestações no Egito, o xeque abraça o padre e diz: "essas pessoas não entendem o islã, que quer dizer paz".