sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Hannah Arendt comenta sobre papa João XXIII

Um artigo interessante publicado no IHU sobre a opinião que a filósofa judia de origem alemã Hannah Arendt tinha do papa João XXIII:

A verdadeira força de João XXIII. Artigo de Hannah Arendt

Em 1965, nas páginas da revista New York Review of Books, Hannah Arendt traça um retrato de João XXIII, sem temores reverenciais. Não são os dotes intelectuais do pontífice que atraem a sua atenção, mas sim a autenticidade da sua religiosidade e, ainda mais, as suas implicações profundamente humanas.

Publicamos aqui um trecho do livro Il papa cristiano. Umanità e fede in Giovanni XXIII, de Hannah Arendt. O texto foi publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 14-02-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O Diário da alma, os diários espirituais de Angelo Giuseppe Roncalli, que assumiu o nome de João XXIII quando se tornou papa, é um livro estranhamente decepcionante e estranhamente fascinante. Escrito em grande parte em períodos de retiro, ele consiste em expressões de devoção e de autoexortações infinitamente repetitivas, "exames de consciência" e anotações de "progresso espiritual", apenas com raríssimas referências a acontecimentos reais, de modo que, por páginas e páginas, ele parece um livro da escolar elementar sobre como ser bom e evitar o mal.

No entanto, no seu modo estranho e incomum, ele consegue oferecer uma resposta clara a duas questões que estavam nas mentes de muitas pessoas, quando, entre o fim de maio e o início de junho de 1963, "Angelo Giuseppe Roncalli, que assumiu o nome de João XXIII", jazia no leito de morte no Vaticano.

Quem me chamou a atenção para tais perguntas de modo simples e inequívoco foi uma camareira romana que, um dia, me disse: "Senhora, esse papa era um verdadeiro cristão. Como foi possível? E como pôde acontecer que um verdadeiro cristão se sentasse no trono de São Pedro? Ele não teve que ser primeiro nomeado bispo, arcebispo e cardeal, antes de ser, finalmente, eleito papa? Ninguém se deu conta de quem ele realmente era?".

Bem, a resposta à última das suas três perguntas parece ser "não". Ele não estava entre os papáveis quando entrou no conclave; e os alfaiates vaticanos não tinham preparado nenhum hábito do seu tamanho. Ele foi eleito porque os cardeais não conseguiram entrar em acordo e estavam convencidos de que, como ele mesmo escreveu, "eu seria um papa de provisória transição", sem muitas consequências. "No entanto", continuava, "aqui estou eu, já às vésperas do quarto ano do meu pontificado, com um imenso programa de trabalho na minha frente para ser realizado perante os olhos do mundo inteiro, que olha e espera".

O que surpreende não é tanto o fato de ele não ser contado entre os papáveis, mas que alguém possa ter pensado que ele era uma figura sem consequências. No entanto, tudo isso é desconcertante apenas retrospectivamente. Na verdade, a Igreja pregava a imitatio Christi há quase 2 mil anos, e ninguém pode dizer quantos párocos e monges podem ter existido que, vivendo na obscuridade ao longo dos séculos, afirmaram como o jovem Roncalli: "Eis, portanto, o meu modelo: Jesus Cristo", sabendo perfeitamente bem, mesmo aos 18 anos, que ser "semelhante ao bom Jesus" significava ser "tratado como um louco": "Eles dizem e acreditam que eu sou um tolo. Talvez eu seja, mas o meu amor próprio não permitiria que eu pensasse assim. Esse é o lado engraçado de tudo isso".

Mas a Igreja é uma instituição e, especialmente a partir da Contrarreforma, esteve mais interessada em manter as crenças dogmáticas do que a simplicidade da fé. Ela não favoreceu a carreira eclesiástica de homens que tinham tomado ao pé da letra o convite: "Segue-me!". Não que eles temessem conscientemente os elementos claramente anarquistas presentes em um modelo de vida pura e autenticamente cristã; eles simplesmente consideravam que "sofrer e ser desprezado por Cristo e em Cristo" era a política equivocada.

E era justamente isso que Roncalli desejava ardente e entusiasticamente quando citava, em seguida, essas palavras de São João da Cruz. E o desejava oo ponto de "trazer mais viva a marca [...] da semelhança com Cristo crucificado", já desde a cerimônia da sua consagração episcopal, deplorando o fato de "ter sofrido pouco demais até agora" e esperando e desejando que "o Senhor me visite com tribulações particularmente aflitivas", "alguns grandes sofrimentos e aflições do corpo e o espírito".

Ele acolheu a sua morte dolorosa e prematura como confirmação da sua vocação: o "sacrifício" necessário para a grande obra que ele devia deixar incompleta. A relutância da Igreja em nomear aos cargos mais altos aqueles poucos cuja única ambição era imitar Jesus de Nazaré não é difícil de compreender.

Também pode ter havido uma época em que os membros da hierarquia eclesiásticas raciocinaram que o Grande Inquisidor dostoievskiano, temerosos de que, nas palavras de Lutero, "o destino mais duradouro da palavra de Deus é de desordenar o mundo com a sua mensagem, porque o sermão de Deus vem para mudar e renovar a terra inteira até conduzi-la a ela". Mas esses tempos já estão longe. Eles tinham esquecido que "ser gentil e humilde [...] não equivale a ser fraco e acomodado", como Roncalli anotou em uma ocasião.

E é precisamente isso que eles estavam destinados a descobrir: que a humildade diante de Deus e a submissão diante dos homens são duas coisas bem diferentes, e, por mais que fosse grande em certos ambientes eclesiásticos a hostilidade contra esse papa absolutamente atípico, é mérito da Igreja e da sua hierarquia que ela não se excedeu e que muitos alto dignitários, os príncipes da Igreja, acabaram sendo conquistados por Roncalli.



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