domingo, 13 de março de 2016

Brasileiros não respeitam mais a opinião uns dos outros


É do que trata o artigo de Ricardo Calazans publicado na BBC Brasil:

Ponto de vista: O ‘homem cordial’ brasileiro em tempos de intolerância nas redes sociais

Há pouco mais de uma semana, antes de o país rachar em dois, ouvi um raciocínio instigante de um executivo que lida com gente de todas as nacionalidades: "O brasileiro é o povo com a autoimagem mais distorcida do mundo. O problema é que a imagem que o estrangeiro tem do Brasil também não corresponde à realidade".

No Brasil, neste exato momento, há muitas "verdades" - e quanto mais "verdades" há, mais difícil é entender o que corresponde (de fato) à realidade.

Desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi "conduzido coercitivamente" à sala da Polícia Federal no aeroporto paulistano de Congonhas, na última sexta-feira, eu só leio "verdades" nas redes sociais. De um lado, temos um golpe em pleno curso; de outro, nossas instituições democráticas nunca foram tão sólidas.

Entre uma e outra "verdade", há 500 tons de informações que poderiam nos dar pistas mais claras sobre para onde nossa sociedade está caminhando. Esses, porém, não alcançam as frequências de quem apostou na radicalização e escolheu não ouvir o(s) outro(s) lado(s). Na era do "block", do "unfriend" e do "unfollow", estamos pregando apenas para convertidos.

Quanto mais virulento o ativismo, mais pobre é o debate (Fernanda Torres que o diga). As pessoas estão passando por cima de suas amizades - ainda que virtuais - para não abrir mão de seus pontos de vista. Desenvolveram intolerância à opinião alheia. Não é por acaso que a inépcia de Gloria Pires ao comentar o Oscar ("não sou capaz de opinar") tenha sido tão celebrada e tomada como "mantra" e meme para evitar confusões na rede.

Cada vez mais gente pensa uma (duas, dez) vezes antes de dizer o que pensa nos ambientes digitais, e geralmente sucumbe ao silêncio para não "se meter em tretas". Mais seguro, certamente. Porém, um contrassenso mortal para a natureza aberta da world wide web que Tim Berners-Lee imaginou para a Humanidade.

"A invenção da www envolveu minha crescente compreensão de que havia um grande poder em se organizar ideias de maneira livre, como uma teia", costuma dizer Berners-Lee sobre sua invenção revolucionária. Sobre invenções, aliás, o jornalista Steven Johnson nos lembra que "estímulo não conduz necessariamente à criatividade. Colisões, sim - as colisões que ocorrem quando diferentes campos de conhecimento convergem num espaço físico ou intelectual compartilhado. É aí que verdadeiras centelhas voam".

Isso vale tanto para invenções científicas como pra reflexões cotidianas - seja sobre política, inclusão social ou cinema hollywoodiano. Ambientes caóticos, como uma timeline livre de "limpezas ideológicas", sempre serão mais ricos do que os perfis higienizados em épocas de crises e nervos à flor da pele. Quanto menos espaço damos ao contraditório, menos informação temos. E quanto menos informação, maior a ignorância.

Daí para as ofensas, bloqueios e "linchamentos" no Facebook ou, fisicamente pior, troca de socos e pontapés nas ruas, é um pulo, como temos verificado nos últimos tempos. Estamos indo da civilidade à selvageria num átimo quando o nosso "lado" é contestado. E essa tem sido uma constante assustadora. O que é o brasileiro, afinal?

Era disso que Sérgio Buarque de Holanda tratava quando lançou, há exatos 80 anos, o conceito de "homem cordial", seu esforço para traçar um perfil psicológico do nosso povo em seu livro Raízes do Brasil, publicado em 1936. Por cordial, o historiador não se referia à hospitalidade, expansividade ou simpatia como nossas vocações "naturais", e sim ao hábito de agir - e reagir - mais com o coração (do latim cordis) do que com a razão.

Aqui, observou o pai de Chico Buarque em sua obra clássica, "cada indivíduo afirma-se ante os seus semelhantes indiferentes à lei geral, onde esta lei contrarie suas afinidades emotivas, e atento apenas ao que o distingue dos demais, do resto do mundo".

Nossas convicções se adequam a nossos interesses privados, mesmo quando tratamos de temas de interesse público (o popular "farinha pouca, meu pirão primeiro"). É um exercício permanente de adaptação da realidade. Não é assim hoje mesmo?

Experimente escolher um lado em política. Para ficar no caso que mais nos causa comoção: contra ou a favor do Partido dos Trabalhadores - que, aliás, teve em Sérgio Buarque de Holanda um de seus fundadores.

Muita gente tem deixado de expressar o que pensa sobre a operação Lava Jato, as acusações que pesam sobre Lula, a presidente Dilma e seu governo, por medo de ter colado na testa epítetos como "coxinha", "petralha", "fascista", "pelego"... Ou de ser alvo de alguma perseguição virtual mais grave.

Os que, ao contrário, partem para a defesa de um lado ou outro, o fazem quase sempre de maneira absoluta, alérgicos ao que os contraria e orgulhosos das "faxinas" que eliminam opiniões diversas. Sem ter suas próprias crenças colocadas em perspectiva, o que resta é um crescente fanatismo.

Portanto, ouçamos Steven Johnson: sem colisões (de ideias!, não de tapas), não há crescimento. Apenas verdades absolutas. Apenas certezas fatais. Apenas uma triste polarização que incomoda e assusta.

"É o confronto de duas humanidades tão diversas, tão heterogêneas, tão verdadeiramente ignorantes, agora sim, uma da outra, que não deixa de impor-se entre elas uma intolerância mortal", dizia o historiador em 1936. Referia-se a indígenas e colonizadores, mas a frase cabe perfeitamente nas rusgas entre "petralhas" e "coxinhas".

O Brasil já foi "um país do futuro", imaginado pelo austríaco Stefan Zweig em 1940. Se ele baixasse aqui hoje, o que pensaria destes "homens cordiais" entrincheirados raivosamente em suas próprias convicções, tal como há oito décadas atrás? Como em 1936, o Brasil hoje é puro coração, mas seu futuro está em xeque. Nossa cordialidade sempre ocultou uma violência, que pode se tornar extrema em momentos delicados como o que vivemos agora. É hora de dar ouvidos à razão.



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