O artigo foi publicado no Estadão em 28/08/16:
Porque era ele, porque era eu
Entregar-se à relação com um amigo é observar-se num espelho pouco generoso
João deitou a cabeça no peito de Jesus. Era a confiança absoluta no Mestre durante a última ceia. Poucas horas depois, o gesto era retribuído e magnificado: Jesus entregou-lhe a guarda da pessoa mais importante. “Filho, eis aí tua mãe”. A cena sob a Cruz mostra algo sublime: a amizade tornara João parte da família.
Amizades surgem entre pessoas que se admiram. A estreita relação entre os filósofos Montaigne e Étienne de la Boétie resulta numa das mais belas frases já escritas sobre este tipo de afeto. Nos seus ensaios, o nobre tenta explicar por que amava La Boétie. Só consegue dizer que a causa central era “porque era ele, porque era eu”. O autor dos Ensaios reconhece que, na especificidade absoluta do outro, está a chave da fusão elevada a que chamamos amizade.
A cabeça pendente de João e a afirmação de Montaigne mostram que a amizade encontra um campo além da razão: algo entre a fraternidade adotada e a entrega ao mistério da afinidade afetiva. Fraternidade adotada porque o amigo torna-se um irmão por desejo recíproco. O mistério da afinidade afetiva porque, diante do amigo, torno-me, de fato, quem sou. Não existe uma racionalidade que abarque isso. A amizade é uma epifania lenta.
Há pedras no caminho. Amigos também possuem egos e as circunstâncias, por vezes, sufocam tudo. Desde que se conheceram na Paris ocupada, Sartre e Camus perceberam uma atração afetiva imediata. Já admiravam a obra um do outro. Dois homens diferentes: Sartre, burguês e bem formado; Camus de família pobre e nascido na Argélia. Também havia o fato de que o parisiense se esforçava muito para agradar às mulheres, mas era feio como uma cólica. Camus era bonito, mas sem a lábia retórica do autor de A Náusea. Havia uma admiração recíproca e uma concorrência entre ambos. Sartre apoiou a URSS mais do que Camus gostaria e as conversas foram ficando ácidas. Numa carta endereçada à revista que Sartre dirigia (Les Temps Modernes), ocorreu o afastamento definitivo. Sartre respondeu no mesmo número com um texto muito duro, duvidando até da capacidade de compreensão filosófica do ex-amigo. A trágica morte de Camus impediu uma reaproximação. Sartre escreveu um lindo obituário. A morte vencera o ego.
Vaidades e disputas afastam amigos. Alguns afirmam que ex-amigos, de fato, nunca foram amigos de verdade.
Ocorrera algo similar no Brasil. Oswald de Andrade jogou sobre Mário de Andrade duas palavras que evisceravam os pontos mais dolorosos do autor de Macunaíma: chamou-o de “boneca de pixe”. Atacando Mário como mulato e homossexual, Oswald causou uma ferida que nunca cicatrizou. Amigos se aproximam do coração e, quando isto resulta em estocada, ela quase sempre é fatal. Amigos baixam a guarda uns para os outros e este setor não defendido, ao ser flechado, magoa como poucas coisas.
Talvez a amizade seja sempre um desafio. Entregar-se à relação com um amigo é observar-se num espelho pouco generoso. Os amigos nos conhecem e, para eles, as cenografias sociais são inúteis. Sim, nossos amigos nos amam, e nos conhecem, e nunca saberemos se nos amam por nos conhecer ou apesar de nos conhecer. Mas a entrega à amizade intensa é uma entrega a uma jornada de intimidade e apoio.
O olhar do amigo não tem a doçura absoluta do materno e escapa do tom acre e ressentido do inimigo. Assim, longe do mel estrutural e do fel defensivo, é um olhar de sinceridade. Para ter um amigo, preciso de condições específicas. Eu identificaria três fundamentais.
A primeira é a capacidade de se observar e continuar em frente. Uma conversa genuína com um amigo é uma dissecação anatômica da minha alma. Nem todos conseguem isso. Não é fácil atender ao preceito socrático: conhece a ti mesmo. Na minha experiência, conhecer aos outros é infinitamente mais fácil do que conhecer a si. Se os filósofos já garantiram que homens maus não possuem amigos, mas apenas cúmplices, eu acrescentaria que pessoas superficiais possuem apenas colegas e conhecidos, mesmo que os denominem amigos.
A segunda é o tempo. Não se criam amigos de um dia para o outro. Amigos demandam história, repertório de casos, vivências em conjunto. Amigos precisam viajar juntos. Assim, os afetos integram as vidas das respectivas famílias. Amigos acompanham nossos sucessos e fracassos amorosos, choram e riem com nossa biografia. Quem adicionei ontem na minha rede social é um fantasma, um fóton, jamais um amigo. Amigos precisam de cultivo constante. Todo amigo é, dialeticamente, um frágil bonsai e frondoso carvalho.
A terceira é o controle do próprio orgulho. A mais espaçosa dama da alma é a vaidade. Quando ela preenche o ambiente, sobram poucos assentos livres. Pessoas vaidosas são frágeis e temem a entrega da amizade. O amor é privilégio de maduros, dizia Carlos Drummond. Talvez a amizade também o seja. Talvez não seja apenas para maduros, mas, com certeza, é um privilégio. Encerro com o conselho sábio dado por um tolo. Polônio prescreve ao filho Laertes (peça Hamlet): “Os amigos que tens por verdadeiros, agarra-os a tu’alma em fios de aço; mas não procures distração ou festa com qualquer camarada sem critério”. O cortesão infeliz sintetiza tudo o que tentei escrever aqui. Já falou com seu amigo hoje? Um bom domingo a todos vocês!