quinta-feira, 17 de julho de 2008

Espírito Santo e salvação, por Karl Barth

Comentando sobre Romanos 8:1, Karl Barth dedica um longo texto do seu livro "Carta aos Romanos", do qual destacamos o seguinte trecho:


Assim relativizados, absorvidos, vistos e reconhecidos, não nos atinge a sentença de morte que pesa sobre toda carne e, mui especialmente, sobre o homem religioso pois é assim relativizados, vistos, absorvidos e reconhecidos que percebemos o "som que vem dos céus e, qual impetuoso vento, invade toda casa"(Atos 2,2). É o som que vem da Cidade Santa, - a Nova Jerusalém, descendo do céu, da parte de Deus (Apoc. 21,2). Estamos "em Cristo Jesus"!

Estar em Cristo Jesus significa ser co-participante da supressão do "homem velho", operada por Jesus como o Cristo, pela qual esta velha criatura foi estabelecida como "homem novo".

Este "homem novo" veio da morte para a vida. Ora, se formos co-participantes da fundamentação, do estabelecimento do "homem novo", então a sentença de morte que pesa sobre o homem velho já não nos alcança mais, pois ela já foi cumprida.

"Pois a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te libertou da lei do pecado e da morte".

Existe uma possibilidade que está acima de todas as outras e que, por isto, não é uma possibilidade ao lado das demais porém está ligada a todas elas qual denominador comum, de certa forma (e mal comparando), de maneira análoga à presença do pecado do qual, todavia, é a negação e cujo lugar proeminente passa a ocupar. Existe também a dádiva que foi feita uma única vez e que, por sua singularidade, parece jamais ter sido dada aos homens. Existe, ainda, a lei suprema mediante cuja constituição subsistem e são anuladas todas as demais leis.

Essa possibilidade superior, essa dádiva singular, essa lei suprema é o ESPÍRITO.

Referimo-nos ao Espírito porém, podemos falar a respeito dele? Verdadeiramente, não; não podemos porque, embora possuamos vocabulário abundante para descrever as muitas possibilidades humanas, não temos uma palavra sequer para esta "impossível possibilidade" de nossa vida.

Então por que não nos calamos, por que não silenciamos a respeito dele? Isto é o que [aparentemente] deveríamos fazer; todavia, é necessário que nos lembremos que tanto o comprometemos com o nosso falar pouco, silenciando, quanto falando sobre ele, pois o Espírito é a PALAVRA, e portanto será anunciado de uma ou de outra forma.

Quer não podendo falar sem poder calar ou, tendo de falar quando pensamos dever silenciar – qualquer que seja nossa atitude, estamos sempre em extremo aperto perante o Espírito e desse aperto não há saída. Cuidemos pois, para que o nosso falar e o nosso calar sejam em tempo certo e não olvidemos que, se acaso nos conduzimos acertadamente, não fomos nós que soubemos quando devêramos falar ou calar (nem mesmo nós, como pessoas religiosas) mas foi o Espírito que falou ou calou conforme foi oportuno.

Temos o Espírito. Quem se houver encontrado com a existencialidade do Espírito encontrou a sua própria existencialidade em Deus. Não podemos, nem queremos negar ou esconder e obscurecer que ouvimos o som dos céus "qual vento impetuoso" [de que fala Atos 2,2] ou negar que vimos a Nova Jerusalém, que tomamos a eterna decisão e que estamos "em Cristo Jesus".

Porém o que significa "ouvir", "ver", "estar" ?

Se começarmos a acentuar as nossas vantagens e os nossos méritos raciocinando e discorrendo em termos de "nós" mesmos, ou daquilo que "temos" ou "possuímos" [dizendo que ouvimos a manifestação do Espírito e que o 'temos' em nossa vida"], então ingressamos e nos assentamos nos arraiais [do ensino e da prática] da religião. Nem podemos pretender estar falando do Espírito [ou dele tratando] quando o colocamos em conotação, ou o relacionamos com as nossas próprias pessoas – [nós o ouvimos, e o recebemos...] – ou quando [quisermos mostrar a nossa riqueza espiritual dizendo que] o temos em nossa vida. Contudo, precisamos contar o que temos e é certo que se não anunciamos que o recebemos, todavia pensamos e, se não pensamos, pelo menos sentimos pois, de fato, RECEBEMOS O ESPÍRITO!

Ainda que nos seja defeso proclamar que recebemos o Espírito, na verdade o anunciamos de uma ou de outra forma. Todavia, precisamos saber que isto não nos é lícito [pois esta posse não depende de nós, não é conquista nossa, não o recebemos como prêmio ou recompensa]. Por isso, ao pensarmos "nós" [ou "eu"] precisamos lembrar sempre que não somos nós [que o recebemos segundo o que somos no mundo; semelhantemente], precisamos manter permanentemente presente em nossa mente que se temos o Espírito (não o recebemos como posse que enriqueça o nosso cabedal de conhecimentos ou o nosso rol de virtudes, antes) é como não o tendo recebido [pois a sua própria existência em nós evidencia que nada temos. De certa forma, mitologicamente falando, esta nossa anulação absoluta é semelhante ao "buraco negro estelar" que tudo absorve a anula, e que o físico Jean Emile Charon considera como a possível sede do Espírito...].

Quem sabe, se, ao falarmos assim de "nós" como não sendo "nós mesmos" e ao discorrermos sobre o que "temos", como "não tendo", a verdade se imponha pelo que é defeso e então esse "nós" e esse "ter" sejam devidamente qualificados [por Deus] e, virtualmente, encerram em si todo o "nós" – [toda a individualidade] – e todo o "ter" – (toda a posse) humana, sem todavia deixarmos de submeter ambas essas formas à crítica e de as pormos em dúvida.

Pode então acontecer que nós (não como nós mesmos), já não sejamos mais uns quaisquer, porém os representantes e as primícias da comunidade dos espíritos na unidade do Espírito; [pode acontecer] que o nosso "ter" [então] não seja apenas certeza psico-histórica porém (na forma de nosso "não ter"!) seja a eterna destinação do ser humano, seja o nosso ser em Jesus Cristo e não apenas a existência de uma comunidade.

Talvez então aconteça que os outros, os muitos, ao redor de nós, (em função daquilo que "não somos" e "não temos"), cessem de ser "os outros", os que nada têm, e nos ouçam falar em suas próprias línguas dos grandes feitos de Deus (Atos 2,11).

Contudo [nesta graça de assim testemunhar do Espírito],m o nosso receio de o renegar é incomparavelmente maior do que o temor de nos envolvermos na dubiedade de uma posição religiosa.

Contaremos com o Espírito. Sim, contamos com ele como se fora um fator, um motivo, um agente eficaz, uma causa [uma influência material em nossa vida]. No entanto, sabemos que não é assim pois [temos ciência de que o Espírito] é ACTUS PURUS; que é genuína realidade [mas não é materialidade]; é evento incontestável que não tem começo nem fim; não tem limitações nem condicionalidade; não está sujeito à temporalidade nem ocupa lugar no espaço; sabemos que o Espírito não é comparável a qualquer outra coisa; não é efeito nem causa.

Todavia, dá-se o paradoxo: o Espírito passa a ser [segundo nossa compreensão] alguma coisa a par de outras coisas; o intangível torna-se tangível; o impossível passa a ser possível; o invisível fica visível e o desconhecido vem a ser conhecido.

O que há de paradoxal no [procedimento nosso com relação ao] Espírito é que, embora ele somente possa ser descrito em termos negativos ["não tem início nem fim", "não é visível", "não ocupa lugar no espaço"...] somos declaradamente obrigados a considerá-lo como se fosse alguma coisa; como se fosse origem ou causa; pedimos que ele nos seja concedido e consideramos que determinadas obras são peculiar e caracteristicamente suas; calamo-nos ante seus feitos e nos esforçamos por não entristecê-lo [Efe. 4,30]; e o adoramos como a terceira pessoa da Trindade.

Ainda que essa nossa atitude [que assumimos em nossa religiosidade] nos anule constantemente querendo ser efetivamente espiritual [quando, na prática, é material apenas], não podemos e nem devemos deixar de nos apropriar, a cada momento e de alguma forma, de uma das mais sublimes realidades existenciais do Espírito, [qual seja a religião].

Sabemos que nenhuma atitude humana pode, de fato, corresponder ao Espírito; todavia, quem sabe, (e até por isto mesmo) o Espírito venha a condescender conosco e interceda por nós, justificando-nos, embora sejamos injustificáveis [em nossa forma de culto e nosso posicionamento ante o dom do Espírito].

Portanto, repetindo ainda uma vez, entre o pecado contra o Espírito Santo e a prática de uma religiosidade (em si mesma) indigna da justificação divina, optamos por esta.

O Espírito fala, opera e age. Não sabes o que isto significa? [Não entendes?]; Eu também não sei [e não entendo] o que afirmo. Todavia, ele é o "Totalmente Outro", que tem falado, operado e agido e isto é tão absolutamente certo quanto a radicalidade com que ele contradiz tudo o que digo e tu ouves – (e Oxalá contradiga sempre a interrogação que tu e eu fazemos!).

Estás comigo perante os fatos consumados. A nossa perquirição pode indagar do significado desses fatos mas não de sua realidade.

O Espírito "te libertou da lei do pecado, e da morte". Isto aconteceu, existencialmente, a ti! A conversão, a volta, o retorno que aconteceu em Jesus Cristo, é teu. A possibilidade que nele foi dada, é tua. A vida que surgiu nele, te pertence. O âmbito do teu falar, das tuas obras e de tua ação está rodeado deste OUTRO incontrolável e incomparável. O próprio mandamento de Deus, que vês como lei que define teu pecado e [te condena] à morte, passa a ter significação apenas relativa quando comparado com a lei das leis (Marcos 12,28-31).

Tu pecas – com relação à retidão deste OUTRO; tu morres – em relação à sua vida; o teu NÃO , apenas é "não" mediante o seu SIM.

Onde, pois, fica o teu pecado, a tua morte, o teu não, se em Cristo Jesus tu descobres a relatividade [das coisas terrenas] quando confrontadas com este OUTRO, que é o Deus "totalmente diferente"? Já não resta nada relativo que não tenha a sua correlação; nada de concreto que não aponte para [algo transcendental], além de si mesmo; nenhuma realidade que não seja uma parábola.

Ao reconheceres a tua escravidão, te libertas; ao reconheceres o teu pecado, recebes a justificação; ao reconheceres a tua morte, revives. É o Espírito que te liberta, te justifica e te vivifica, pois o Espírito é o "conhecimento".

O Espírito é o achado eterno sem o qual nós, que estamos postos sob a lei do pecado e da morte, sequer faríamos a perquirição. Ele escreve a lei de Deus em nosso coração com "fogo vivo" e, por isso, "não é ensino mas vida; não é palavras mas existência; não é sinal mas o próprio cumprimento" (Lutero).


(BARTH, Karl. Carta aos Romanos, Ed. Novo Século, 2003, págs. 428/432)


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