domingo, 6 de julho de 2008

Paulo e Aristóteles

Vez ou outra, aparece alguém criticando a teologia, dizendo que o pensamento teológico é "engessador", o que muitas vezes é verdade, para o bem e para o mal. 

Afinal, uma estrutura religiosa que se baseie em fundamentos voláteis dificilmente se sustentará ao longo do tempo. 

Por outro lado, a teologia demanda permanente reflexão, o que efetivamente ocorreu no decorrer da História, e continua animando muita gente a seguir o caminho da crítica consciente e construtiva. 

Entretanto, quando alguém diz que "não gosta de teologia", ou a vê "contaminada" pelo pensamento filosófico, a questão se assemelha àquelas frases que muita gente diz.... "não gosto de política", ou "não faço política", ou ainda "odeio política". 

Ora, podem até não gostar de política, mas estão fazendo política pela sua omissão em participar da vida política. 

O mesmo se pode dizer da ideologia. Podemos criticar todos os movimentos ideológicos do mundo, mas, em suma, ninguém é imparcial, todos nos movemos por algum tipo de ideologia, mesmo que nosso discurso seja negá-la. 

Quanto à teologia, o cenário não é diferente. Até os ateus militantes fazem um discurso teológico, mesmo que possa ser considerado como um tipo de "a-teologia". Os teístas afirmam e os ateístas negam a existência de Deus, e este debate é feito através de discursos teológicos. 

Todos os nossos discursos, teológicos ou não, padecem da mesma ambiguidade. Não há ninguém que seja verdadeiramente neutro, imparcial, ou "contra o sistema", até porque o "sistema" precisa dos contrários para se validar. 

Logo, o discurso contra a teologia também é teológico, mas com apenas um viés: todos devem abandonar a teologia que, consciente ou inconscientemente, abraçam, e render-se incondicionalmente à contra-teologia dos insatisfeitos.

A filosofia é outro campo de batalha, bastante antigo, em que alguns vêem o cristianismo como que um desenvolvimento natural do pensamento grego, e outros a combatem como se ela simbolizasse um Armagedom das idéias. 

Nunca é demais relembrar, entretanto, que Paulo caminhava com tranqüilidade nesta seara. No capítulo 17 do livro de Atos, por exemplo, Paulo faz uso claro e transparente da filosofia e da poesia grega, ao pregar para os gregos, citando especificamente os poetas gregos, que literalmente disseram o que Paulo reproduz no versículo 28:

Atos 17:28 porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos; como também alguns dos vossos poetas disseram: Pois dele também somos geração.

As fontes poéticas que Paulo cita literalmente (assumindo o plágio), neste versículo, tanto pode ser o poema Phaenomena, de Aratus, como o Hino a Júpiter, de Cleantus, além de outros poetas que usaram a mesma idéia, ou seja, do homem ser geração de Deus. 

E, além disso, o "nele vivemos, nos movemos e existimos", se refere especificamente às polêmicas filosóficas que motivaram os gregos por tantos séculos, ou seja, o que significa a vida, o movimento, e a existência. Paulo ainda escreve o seguinte:

Filipenses 2: 1 Portanto, se há alguma exortação em Cristo, se alguma consolação de amor, se alguma comunhão do Espírito, se alguns entranháveis afetos e compaixões, 2 Completai o meu gozo, para que sintais o mesmo, tendo o mesmo amor, o mesmo ânimo, sentindo uma mesma coisa. 3 Nada façais por contenda ou por vanglória, mas por humildade; cada um considere os outros superiores a si mesmo. 4 Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada qual também para o que é dos outros. 5 De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, 6 Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, 7 Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens;

E, ao fazer isso, ele está se referindo especificamente aos estados da psiquê humana, conforme Aristóteles havia ensinado quatro séculos antes, dividindo os fenômenos da psiquê humana em três espécies, conforme já postei neste blog:

a) Estados afetivos ou paixões (ou afecções) - (apetite, cólera, medo, audácia, desejo, alegria, amizade, ódio, saudade, inveja, piedade – inclinações da alma que implicam em prazer ou desprazer);

b) Capacidades (ou faculdades) – aptidões ou capacidades para experimentar as paixões (citadas acima): por exemplo, a capacidade para experimentar a piedade, a inveja ou a cólera;

c) Disposições (ou deliberações) – o próprio comportamento concreto, prático, que tenhamos, bom ou mau, relativamente às paixões. O exemplo é o da cólera: se nos entregamos a ela ou a experimentamos de forma violenta, a cólera é má; já poderá ser boa se a experimentarmos com moderação (o que envolve também adequação ao momento, e a devida proporcionalidade).

Além dos afetos, das paixões, a palavra grega traduzida por "sentimento" em Filipenses 2:5, é φρονέω ("phroneō", "fron-eh'-o"), que nada mais é do que o que Aristóteles entendia por "disposição", hoje mais conhecida por "fronesis", que nada mais é do que a prudência, a temperança, o bom senso para encontrar o caminho do meio, caminho este que, associado à verdade e a vida, define Jesus (João 14:6).

Portanto, me parece que é melhor refletir com calma e equilíbrio sobre a teologia e a filosofia, do que simplesmente rejeitá-las. Tal atitude soa mais como uma fuga inconsciente a um dos mais preciosos bens que Deus concedeu aos humanos: simplesmente pensar.



Rembrandt, "Aristóteles e o busto de Homero"


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