sábado, 19 de julho de 2008

Justiça no pensamento aristotélico - 6

A distinção que realmente importa não é tanto a que Aristóteles vai desenvolver, dividindo a justiça em distributiva e corretiva, esta última exercendo-se sobre transações voluntárias e involuntárias, e as involuntárias sendo categorizadas em clandestinas e violentas. O que seria absolutamente essencial e inovador, marcando um corte epistemológico radical, foi a distinção entre a justiça geral ou universal (matéria que seria, a partir daí, submetida à Ética e da Política) e a justiça particular (um novo domínio que seria submetido ao Direito).

A justiça universal corresponderia, na visão aristotélica, ao exercício da virtude completa e perfeita. É, por um lado, virtude completa porque é exercida pelo indivíduo em relação a si mesmo e ao próximo. É importante fazer uma ressalva neste momento: quando se fala em justiça exercida em relação a si mesmo, não se trata propriamente de justiça, pois ninguém pode dizer que está sendo justo em relação a si mesmo. Neste caso, não se trata de justiça, mas apenas de uma disposição de caráter. A justiça é sempre observada em relação ao outro, mesmo a partir de uma perspectiva íntima, auto-centrada, que tem necessariamente uma correlação, uma contrapartida em outro ser humano.

Já a justiça particular refere-se à distribuição de honras e bens, e também diz respeito a relações interpessoais. Este tipo de justiça se manifesta na observância da lei e da igualdade. Para Aristóteles, o justo particular reflete-se na igualdade e o igual, como vimos anteriormente, é o meio termo entre o “mais” e o “menos”, eqüidistante, daí a sua insistência quanto ao “justo meio”.

Necessário é, pois, nos determos um pouco mais sobre a questão da justiça particular. A justiça particular é, por assim dizer, uma relação, e uma relação entre pessoas e “coisas”, que assume uma dimensão proporcional, e, nesse caso específico, de proporcionalidade geométrica. O filósofo não economizou exemplos matemáticos, que mostram o seu domínio da matéria e, sobretudo, a influência que recebeu dos pensadores gregos anteriores:
“Os matemáticos chamam esta espécie de proporção de geométrica, pois é na proporção geométrica que a soma do primeiro e do terceiro termos está para a soma do segundo e do quarto assim como um elemento de cada par de elementos está para outro elemento. A justiça distributiva não é uma proporção contínua, pois seus segundo e terceiro termos – alguém que recebe parte de alguma coisa e uma participação na coisa – não constituem um mesmo elemento.
O justo nesta acepção é portanto o proporcional, e o injusto é o que viola a proporcionalidade. Neste último caso um quinhão se torna muito grande e o outro muito pequeno, como realmente acontece na prática, pois a pessoa que age injustamente fica com um quinhão muito grande do que é bom e a pessoa que é tratada injustamente fica com um quinhão muito pequeno. No caso do mal o inverso é verdadeiro, pois o mal menor é considerado um bem quando comparado com o mal maior, já que o mal menor deve ser escolhido de preferência ao maior, e o que é digno de escolha é um bem, e o que é mais digno de escolha é um bem ainda maior.” [1]
Vê-se, pois, que a idéia de proporcionalidade domina a questão da justiça distributiva defendida por Aristóteles. Chega-se à conclusão, pois, de que no pensamento aristotélico, a ação justa é um justo meio (com o perdão da redundância) entre a injustiça cometida e a injustiça sofrida. Embora seja complexa esta asserção, não deixa de ser um caminho para se entender a visão do filósofo sobre a questão.

De qualquer maneira, é de fácil compreensão verificar que a justiça está no meio, enquanto as injustiças estão nos extremos. A justiça pode então ser considerada como sendo uma disposição que dota o homem justo da capacidade de ser um reto repartidor, quer entre outros, quer entre si e os outros: exigindo exatamente o que lhe é devido, e atribuindo a cada um o que é seu. A injustiça será, por conseguinte, o inverso, sendo injusto o homem que age de maneira contrária a este equilíbrio.

Existe controvérsia na doutrina quanto à nomenclatura da justiça corretiva. Valendo-se do original grego (díkaion diorthotikón), o mestre Ferraz Junior prefere chamá-la de justiça diortótica, assim definindo-a:

“A justiça diortótica é a segunda espécie da justiça particular. É a que realiza a igualdade nas transações individuais, mas, diferentemente de distributiva, não leva em conta os sujeitos da relação igualitária, mas sim as coisas que devem ser igualadas. Em outras palavras, a justiça diortótica, ao contrário da justiça distributiva, à qual importa o mérito das partes, visa apenas a medir impessoalmente o dano e a perda, supondo iguais os termos pessoais. A tradução de Ross revela que esta espécie de justiça atua “in transaction between man and man” (É.N., V, 2, 1131ª), ao contrário da justiça distributiva que regula a participação nos bens comuns à sociedade ou a um grupo, entre seus membros (É.N., V, 7, 1131b30).
A justiça diortótica intervém nas transações individuais, voluntárias ou involuntárias no sentido de consentidas e não consentidas. As primeiras são as que os atos constituidores são, em sua origem, fruto de desejo deliberado das partes: é o caso da compra e venda, da locação, do depósito, da caução, etc. As segundas são as que os atos constituidores são, em sua origem, contra a vontade deliberada da parte lesada. As transações involuntárias, por sua vez, subdividem-se em clandestinas, em que a oposição da parte lesada é presumida desde o início da ação delituosa, mas só se manifesta posteriormente – é o caso do furto, do adultério, do envenenamento, do falso testemunho, etc. – e violentas, em que a oposição da parte lesada é clara e patente na origem do delito – é o caso das vias de fato, do seqüestro, assassinato, roubo a mão armada, mutilação, injúria, etc.” [2]
Prossegue o mestre Ferraz Junior ensinando que “o termo corretivo, se usado, não deve ser confundido com punitivo (como entende Gomperz: “korrektive oder strafende”), mas sim compreendido como retificador”[3]. Aristóteles ensina, no seguinte excerto, que este tipo de justiça desempenha um papel corretivo nas transações entre os indivíduos, repartindo na proporção dos interesses em conflito, em forma de proporção aritmética, própria dos homens, tarefa essa que incumbia ao juiz:

“A espécie restante de justiça é a corretiva, que tanto se manifesta nas relações voluntárias quanto nas involuntárias. Esta forma do justo tem um caráter diferente da primeira, pois a justiça na distribuição dos bens públicos é sempre conforme à espécie de proporção mencionada acima (também no caso em que se faz a distribuição dos fundos públicos esta distribuição será conforme à mesma razão que se observa entre os fundos trazidos para um negócio pelos vários parceiros); a injustiça contrária a esta espécie de justiça é a que viola esta proporcionalidade. Mas a justiça nas relações privadas é de fato uma espécie de igualdade, e a injustiça nestas relações é uma espécie de desigualdade, mas não conforme á espécie de proporção mencionada acima, e sim conforme à proporção aritmética. Com efeito, é irrelevante se uma pessoa boa lesa uma pessoa má, ou se uma pessoa má lesa uma pessoa boa, ou se é uma pessoa boa ou má que comete adultério; a lei contempla somente o aspecto distintivo da justiça, e trata as partes como iguais, perguntando somente se uma das partes cometeu e a outra sofreu a injustiça, e se uma infligiu e a outra sofreu um dano. Sendo portanto esta espécie de injustiça uma desigualdade, o juiz tenta restabelecer a igualdade, pois também no caso em que a pessoa é ferida e a outra fere, ou uma pessoa mata e a outra é morta, o sofrimento e a ação estão mal distribuídos, e o juiz tenta igualizar as coisas por meio da penalidade, subtraindo do ofensor o excesso do ganho (o termo “ganho” se aplica geralmente a tais casos, ainda que ele não seja um termo apropriado em certos casos – por exemplo, no caso da pessoa que fere – e “perda” se aplica à vítima; de qualquer forma, uma vez estimado o dano, um resultado é chamado “perda” e o outro é chamado “ganho”). O igual, portanto, é o meio-termo entre o maior e o menor, mas o ganho e a perda são respectivamente maiores e menores de modos contrários; maior quinhão de um bem e menor quinhão de um mal são um ganho, e o contrário é uma perda; o meio-termo entre eles, como já vimos, é o igual, que chamamos de justo; a justiça corretiva, portanto, será o meio-termo entre perda e ganho.” [4]
No entender de Aristóteles, a justiça corretiva seria o intermediário entre a perda e o ganho, cabendo ao juiz restabelecer a igualdade. O seu pressuposto é uma situação fática, moral ou jurídica, da qual foi tirada o equilíbrio , que deve ser restabelecido para conduzir as partes, dentro daquilo que for possível, ao status quo ante, ou, diante da impossibilidade do retorno à situação anterior, cabe ao juiz aplicar a penalidade ou arbitrar o valor indenizatório.

Para tanto, Aristóteles diz que as transações que são objeto da justiça corretiva podem ser voluntárias (como no caso da locação e do depósito, por exemplo) ou involuntárias (que podem ser clandestinas, como no caso do furto ou do adultério, por exemplo; ou violentas, como no caso do homicídio ou do seqüestro).

É nesse momento da obra de Aristóteles que vemos a sua referência ao dinheiro. Retornando à pergunta que já nos fizemos anteriormente, como podemos comparar coisas distintas? A proporcionalidade também é referida por Aristóteles na justiça corretiva, ao afirmar que “a reciprocidade proporcional se efetua através de uma conjunção cruzada”[5], o que foi facilitado pela adoção do dinheiro como elemento comparativo, e nos dizeres de Aristóteles, “é por isso que todos os serviços permutados devem ser comparáveis de algum modo; com esta finalidade foi instituído o dinheiro, e em certo sentido ele se tornou um meio-termo, pois ele mede todas as coisas, e conseqüentemente o excesso e a falta”[6] .

Neste particular, comenta Bittar:

“Como representante da procura, o dinheiro tem função convencional relevante por presidir as trocas. Não sendo algo que existe por natureza, mas como fruto da criação e do poder normativo humano, deriva da lei (nómos), da qual se extrai sua denominação (nómisma). A artificialidade da moeda deve-se ao fato de ter sido ela adotada pela utilidade, podendo ser igualmente substituída por outro padrão, qualquer que fosse, adotado pelos homens que da moeda fazem uso.” [7]
Entretanto, há quem veja na justiça diortótica, ainda, espaço para subclassificá-la em justiça comutativa, que deve viger nas relações voluntárias, em a igualdade aritmética (o justo é igual) é a regra, e os objetos intercambiáveis devem possuir o mesmo valor. Haveria, para esses doutrinadores, também uma justiça judicial, que seria aquela que deve vigorar nos conflitos submetidos a julgamento, aplicável a violações, em que se busca uma paridade entre o efetivo dano e a reparação possível, e neste caso o juiz restabeleceria a igualdade por meio da pena.

Ademais, importa ressaltar uma redescoberta fulcral de Aristóteles (que não foi o primeiro a compreendê-la, constituindo tal noção um patrimônio praticamente universal, tanto das civilizações pré-clássicas e clássicas como das orientais e do extremo oriente), que é a divisão da justiça política em natural e positiva, que nada mais representa do que a clássica dicotomia entre direito natural e direito positivo. O primeiro é universal, valendo igualmente em toda a parte, independentemente de opinião; o segundo é, de início, indiferente, mas uma vez estabelecido, torna-se obrigatório. O exemplo que Aristóteles dá, quanto ao último, é o das penas. Estas podem divergir segundo tempos e lugares, mas sempre se apresentam com sentido e funções semelhantes.

Por fim, Aristóteles fala na justiça doméstica, que nada mais é do que aquela manifestada com relação às coisas que nos dizem respeito mais intimamente, nos pertencem, e exatamente por isso não é incondicional. O filósofo ainda a divide em justo despótico, conjugal e paternal, reguladora das relações domésticas, ou seja, aqueleas que envolvem os familiares e os escravos da casa.


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[1] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996, pág. 199
[2] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2003, 2ª ed., págs. 187/188
[3] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Op. cit., pág. 187
[4] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996, pág. 198/9
[5] ARISTÓTELES. op. cit., pág. 202
[6] idem
[7] BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2005, 4ª ed., pág. 104

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