sábado, 5 de julho de 2008

Justiça no pensamento aristotélico - 4


4) JUSTIÇA E MEDIEDADE:

No Livro V da “Ética a Nicômaco”, Aristóteles reforça seu entendimento da justiça como a máxima virtude:
“Então a justiça neste sentido é a excelência moral perfeita, embora não o seja de modo irrestrito, mas em relação ao próximo: portanto a justiça é freqüentemente considerada a mais elevada forma de excelência moral, e “nem a estrela vespertina nem a matutina é tão maravilhosa”; e também se diz proverbialmente que
na justiça se resume toda a excelência”.


Com efeito, a justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente em relação a si mesmas como também em relação ao próximo. É por isto que se consideram bem ditas as palavras de Bias: “O exercício do poder revela o homem”, pois os governantes exercem necessariamente o seu poder em relação aos outros homens e ao mesmo tempo são membros da comunidade.” [1]


De novo, Aristóteles insiste no aspecto prático da virtude, e, nesse caso em particular, do agir justo. Para ele, as virtudes intelectuais dependem em boa parte da educação, da experiência e do tempo. Mas o mesmo se pode dizer das morais, que também não são produtos naturais ou imanentes. Ninguém nasce virtuoso. Nisto se verifica o seu distanciamento de Platão, para quem a concepção de justiça é inata ao homem. Para Aristóteles, a natureza apenas nos tornou receptáculos das virtudes, com capacidade e aptidão para as mesmas, mas esta capacidade ou aptidão precisa, em última análise, do concurso da nossa ação, seja pela maturidade, seja pelo hábito. As virtudes estão nos homens não em ato, mas em potência. É pela prática (delas) que aprendemos, e é praticando-as, ou seja, agindo virtuosamente, que nos tornamos virtuosos. Tornamo-nos justos não por entendermos intelectualmente o que é a Justiça, mas por a praticarmos insistente e habitualmente. E, conseqüentemente, seremos mais justos tanto quanto mais Justiça praticarmos. Como diz Bittar:
“A instrução está a dirigir a virtude intelectual, que aparece somada à experiência, ao passo que o hábito (éthos) se destaca como o elemento essencial da virtude propriamente ética. Aliás, é a prática e a reiteração da boa conduta que permitem se possa conquistar a excelência moral; ética (ethiké) é o termo derivado exatamente de hábito (éthos). Dependendo da habitualidade, a virtude ética está na razão direta da plena concorrência da vontade deliberada humana para a sua aquisição, motivo pelo qual não se pode considerá-la como virtude inata ou de necessária existência congênita no espírito humano. Presente sem ela está como potência a ser realizada, mas isto mediante o concurso da razão deliberada no sentido de esculpi-la em ato, convertendo-a de seu estado metaempírico em ação (práxis).” [2]
A ênfase na prática, no agir justo, é o enfoque constante da obra de Aristóteles quanto à Justiça. Mas ele a vê, essencialmente, como uma “escolha deliberada” do ser humano. Como lembra o mestre Ferraz Junior:
“A justiça, como as demais virtudes, é uma disposição (εξιζ) e é um meio-termo (μεσοτηζ). Há, porém, uma terceira característica. Diz Aristóteles que a justiça “é uma disposição em razão da qual o homem justo é definido como apto a executar, pela escolha deliberada, o que é justo” (É.N., V., 9,1134ª). Não basta, pois, para caracterizar a justiça (e o vício que lhe corresponde), o fato de ser uma disposição e um justo meio. Ela é também uma escolha deliberada, sendo a deliberação também uma característica essencial da virtude em geral. “A virtude é uma disposição de agir de modo deliberado” (É.N., II, 6,1107ª). Aristóteles estuda, ao mesmo tempo, a justiça e seu contrário, a injustiça (É.N., V, 1,1129ª20). Este procedimento faz parte do método dialético, pois “a questão de se saber se um termo é tomado especificamente em vários sentidos, ou em um só, deve ser considerada do modo seguinte. É preciso, antes de tudo, examinar se o contrário do termo apresenta várias significações, se a diferença é específica ou somente nominal” (Top., I, 15, 106ª9 e ss). Essa investigação, no caso da justiça - sendo objeto da Ética -, tem por material as ações dos homens considerados justos, a partir do que se erguerá a teoria (É.N., V, 1, 1129ª17).” [3]
Este entendimento de “deliberação” na obra de Aristóteles fica mais claro quando nos lembramos de que ele dividia os fenômenos da psique humana em três espécies:

a) Estados afetivos ou paixões (ou afecções) - (apetite, cólera, medo, audácia, desejo, alegria, amizade, ódio, saudade, inveja, piedade – inclinações da alma que implicam em prazer ou desprazer);

b) Capacidades (ou faculdades) – aptidões ou capacidades para experimentar as paixões (citadas acima): por exemplo, a capacidade para experimentar a piedade, a inveja ou a cólera;

c) Disposições (ou deliberações) – o próprio comportamento concreto, prático, que tenhamos, bom ou mau, relativamente às paixões. O exemplo é o da cólera: se nos entregamos a ela ou a experimentamos de forma violenta, a cólera é má; já poderá ser boa se a experimentarmos com moderação (o que envolve também adequação ao momento, e a devida proporcionalidade).

Assim, para Aristóteles, as virtudes (tal como os vícios) não são propriamente estados afetivos ou paixões, tampouco capacidades. São, sim, disposições ou deliberações: uma forma de viver as paixões. Se a deliberação é boa, estamos diante de uma virtude. Se é má, estamos diante de um vício. O ideal, pois, é a mediedade, ou seja, experimentar emoções como a das paixões no momento oportuno, nos casos específicos e relativamente às pessoas que convém, dadas as razões e formas adequadas.

A virtude é, pois, um hábito quanto ao seu modo-de-ser, que se aperfeiçoa e se desenvolve com a prática reiterada, desde a infância, e deve ser objeto primordial da educação, por mais que os jovens queiram recusá-la em troca do prazer momentâneo do vício. Quanto ao seu conteúdo, a virtude é vista como una (embora admita uma certa amplitude de possibilidades – e não seja de todo condenável um pequeno desvio, quer num sentido quer noutro), dentre (e no meio) de uma pluralidade de erros, seja por excesso, seja por defeito. E aqui começamos a perceber a influência da geometria no pensamento aristotélico. A virtude está realmente no meio, entre dois extremos, embora não rigorosamente simétricos, já que a natureza, em cada caso, normalmente mais nos inclina para um dos dois lados. Entretanto, que não se confunda este meio com mediocridade ou mediania; trata-se, na verdade, de um ápice na ordem da excelência e da perfeição. A virtude está no meio; se consideramos a covardia e a temeridade, a coragem será a virtude, embora a temeridade seja menos condenável que a covardia; se analisamos a licenciosidade e a insensibilidade, a virtude está na moderação (a que depois o pensador chamará temperança); se nos vemos diante da prodigalidade e da avareza, a virtude reside na liberalidade ou generosidade.

É importante notar que algumas destas palavras passaram por mudanças conceituais com o decorrer do tempo. Liberalidade ou parcimônia podem, dependendo da situação, significar algo diferente da virtude e do vício. Considere-se, ainda, casos excepcionais de ausência de um termo exato para a virtude do meio, analisando-se, conforme o caso concreto, aqueles que agem de acordo com esse ou aquele termo extremo, como sucede quando estudamos a ambição. Na verdade, é deplorável tanto a falta de ambição como o seu oposto, o excesso, e tudo depende de como se observa o contexto.

Ainda no domínio das paixões, podem ser verificados termos médios praticamente em todos os aspectos que se investigue. Entretanto, Aristóteles sabe que identificar o termo médio e a virtude no caso da Justiça é a tarefa mais complexa, e por isso temos que deter-nos um pouco mais sobre o seu conceito de mediedade.

Os comentadores de Aristóteles muito debatem sobre o seu conceito de mediedade, com diferentes interpretações, em que a crítica mais comum é o caráter genérico do que esse conceito significa, ou seja, como é possível aferir, na prática (para usar um conceito de Aristóteles em seu desfavor), qual é o ponto médio, o meio termo, o equilíbrio, a moderação.

Entretanto, ao analisar a questão da eqüidade, no mesmo Livro V de Ética a Nicômaco, o estagirita procura dar um exemplo prático de como se pode, diante da lacuna da lei, guiar-se simultaneamente pelo eqüitativo e pelo justo:
“Agora podemos ver claramente a natureza do eqüitativo, e perceber que ele é justo e melhor que uma simples espécie de justiça. É igualmente óbvio, diante disto, o que vem a ser uma pessoa eqüitativa; quem escolhe e pratica atos eqüitativos e não se atém intransigentemente aos seus direitos, mas se contenta com receber menos do que lhe caberia, embora a lei esteja do seu lado, é uma pessoa eqüitativa, e esta disposição é a eqüidade, que é uma espécie de justiça e não uma disposição da alma diferente.” [4]
Aristóteles, no livro comentado de Ética a Nicômaco, é pródigo em exemplos práticos de situações, a seu ver, justas e injustas. Fazendo referência aos expoentes da literatura grega, sempre encontra uma maneira de ilustrar o seu pensamento com exemplos tirados da cultura grega e do imaginário popular. Ainda que se critique a dificuldade em se chegar ao ponto médio de cada questão, é inegável que a doutrina da mediedade tem lugar central na sua concepção de Justiça.


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[1] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996, pág. 195
[2] BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Aristotélica. Barueri, SP: Ed. Manole, 2003, pág. 1019
[3] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2003, 2ª ed., pág. 166.
[4] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996, pág. 213

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