quarta-feira, 2 de julho de 2008

O evangelho de Lucas - parte 34

O capítulo 20 começa com Jesus em Jerusalém, para sua jornada final, aproveitando o tempo para ensinar o povo no templo e pregando o seu próprio evangelho (algo que Lucas faz questão de destacar), sempre perseguido pelos escribas e sacerdotes (v. 1), que conspiravam para testá-lo e pegá-lo em algum erro, e o relato de Lucas, no v. 2, mostra que eles lhe perguntaram com que autoridade fazia "essas coisas", que podem tanto ser entendidas como os seus sinais ou prodígios, como, principalmente, o fato de Jesus ter expulsado os vendilhões do templo no final do capítulo anterior (19:45-46). Certamente, esta delegação do Sinédrio não gostava de ver Jesus não só avocando como demonstrando autoridade no templo, que eles consideravam um território particular de onde auferiam sua pretensa honra além de riquezas através dos tributos cerimoniais. Jesus, percebendo sua má intenção, respondeu-lhes com outra pergunta, indagando-lhes se o batismo de João era dos céus ou dos homens (v. 4). Isso deixou seus adversários numa "saia justa", se é que podemos usar esta expressão moderna para o constrangimento que eles enfrentaram. Se dissessem que era do céu, seriam cobrados por não terem acreditado em João (v. 5). Se respondessem que era dos homens, seriam apedrejados pelo povo que tinha João como profeta (v. 6). Não lhes restou alternativa senão sair pela tangente dizendo que não sabiam (v. 7). Foi a deixa para que Jesus também se recusasse a responder a questão que eles lhe haviam formulado (v. 8).

A seguir, Jesus lhes conta a parábola dos lavradores maus (vv. 9-18), que também é relatada por Mateus (21:33-44) e Marcos (12:1-11), o que mostra a importância do seu simbolismo para quem a ouviu, fossem seus discípulos ou inimigos. Mais uma vez, Jesus utiliza imagens que eram facilmente compreensíveis para os seus ouvintes, sobre uma vinha que havia sido arrendada pelo seu proprietário a certos lavradores, antes de ausentar-se do país por um bom tempo (v. 9). Ainda fora de sua terra, ele manda servos para cobrarem a sua parte no arrendamento das vinhas. Manda um servos (v. 10), manda outro (v. 11), manda um terceiro (v. 12), mas todos são espancados e humilhados pelos lavradores e retornam ao seu senhor de mãos vazias. Creio que não era preciso esperar até o final da parábola para que os ouvintes de Jesus começassem a entender que esses servos do dono da vinha eram os profetas que Deus havia enviado ao povo de Israel, e haviam sido espancados e mortos. Jesus já havia explicitamente acusado os pais dos intérpretes da Lei de terem matado os profetas (Lucas 11:47-48). A parábola prossegue com o pai enviando o "filho amado" (v. 13), na esperança de que os lavradores agora o respeitariam, mas estes viram neste fato a oportunidade de eliminar o herdeiro da vinha, pelo que o mataram (v. 15). Não resta outra alternativa para o dono da vinha senão voltar à sua vinha, exterminar os lavradores maus e passá-la a outros (v. 16). Diante do desfecho da parábola, seus ouvintes disseram que não queriam que tal coisa acontecesse, mas Jesus olhou bem para eles e citou o Salmo 118:22, identificando-se, sem que eles ainda percebessem a extensão da sua lembrança, com a pedra de esquina que seria rejeitada pelos construtores (v. 17). Ai de quem nEle tropece e ai daqueles sobre os quais ela cair (v. 18). É interessante relembrar que Jesus estava no templo, que algumas décadas depois seria arrasado e perdido para sempre. Ele sabia disso e deve ter pensado nisso quando fitou os olhos dos seus ouvintes.

Entretanto, ainda que num nível inconsciente, se é que podemos pensar assim, os escribas e os sacerdotes perceberam, de alguma maneira, a profundidade e a gravidade dessa parábola, bem como o fato de que ela se dirigia a eles, razão pela qual ficaram profundamente irritados (v. 19). Utilizando a mesma artimanha que usariam com Judas, subornaram algumas pessoas para se aproximar de Jesus, "fingindo-se de justos" para espreitar algum ato falho do Mestre para entregá-lo aos romanos (v. 20). Eles já haviam percebido que dificilmente conseguiriam enredar Jesus e fazê-lo quebrar alguma das suas pesadas ordenanças farisaicas. A questão não é tanto quebrá-las, pois Jesus constantemente fazia isso, mas Ele sempre justificava suas atitudes de maneira tão sábia que seus inimigos não tinham como rebatê-lo. Imaginaram, então, que Jesus incorreria em algum ilícito civil ou criminal, que lhes permitiria entregá-lo ao governador, pelo que lhe perguntaram se era lícito pagar tributos a César (v. 22). Esta era uma pergunta muito capciosa, e qualquer resposta de Jesus, na visão dos seus inimigos, o incriminaria. Se dissesse que era ilícito, seria entregue aos romanos como revolucionário. Se dissesse que era lícito, desagradaria ao povo que via nEle uma espécie de messias guerreiro e libertador da opressão romana. A resposta de Jesus, mostrando a efígie da moeda e perguntando de quem era a inscrição (v. 24), pegou-lhes de surpresa. A sua frase "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" (v. 25) é antológica e mesmo quem não é cristão consegue captar a profundidade da sabedoria desta que é uma das respostas mais sábias que a humanidade conheceu. Não restou outra alternativa aos seus algozes senão admirar-se da sua sabedoria e se calarem (v. 26).

Ainda nesse espírito de inquérito a céu aberto no templo, chegaram alguns saduceus, homens importantes no sistema religioso judeu, que rivalizavam com os fariseus por não acreditarem que houvesse ressurreição (v. 27). Para testar Jesus, formulam, então, uma pergunta intricada sobre uma mulher que fica viúva sete vezes de sete irmãos (vv. 28-32). Quando ela morre, de qual deles seria esposa? (v. 33). Jesus lhes responde que não há casamentos no mundo vindouro (v. 35), e não se pode mais morrer porque os salvos são iguais aos anjos. São filhos de Deus e filhos da ressurreição (v. 36). Os saduceus se aferravam a uma interpretação literal do Velho Testamento para negar a ressurreição, e recebem agora uma lição de exegese do próprio Deus-Filho, que diz que a passagem da sarça ardente mostrada a Moisés (Êxodo 3:1-6), quando este chama o Senhor de Deus de Abraão, Isaque e Jacó, revela que Deus não é Deus de mortos, mas de vivos, "porque para ele todos vivem" (vv. 37-38). No relato correspondente de Marcos 12:27, Jesus ainda acusa os saduceus: "Laborais em grande erro". De fato, esta é uma passagem difícil para os aniquilacionistas, pois mostra que o partido dos judeus - que dizia não haver prova da imortalidade da alma no Velho Testamento – foi severamente censurado pelo próprio Jesus. Adam Clarke comenta assim este versículo em especial:

Lucas 20:38
Para ele todos vivem -
Há uma passagem notável no comentário de Josefo sobre Macabeus, capítulo 16, que prova que os judeus melhor isntruídos acreditavam que as almas dos homens justos estavam na presence de Deus, num estado de felicidade. "Aqueles que perderam suas vidas por amor a Deus, vivem perante Deus, como Abraão, Isaque e Jacó, e os demais patriarcas". E algo não menos notável está escrito em Shemoth Rabba, fol. 159. "O rabi Abbin diz: o Senhor disse a Moisés, encontre para mim dez pessoas justas entre o povo, e eu não destruirei o teu povo. Então disse Moisés: espere, aqui estamos eu, Arão, Eleazar, Itamar, Finéias, Calebe e Josué; mas Deus disse, aqui estão somente sete, onde estão os outros três? Quando Moisés viu que não sabia o que fazer, ele disse, ó Eterno Deus, vivem aqueles que estão mortos? Sim, disse Deus. Então Moisés disse, se aqueles que estão mortos realmente vivem, lembre-se de Abraão, Isaque e Jacó". Assim, a ressurreição dos mortos, e a imortalidade e imaterialidade da alma, não eram doutrinas estranhas ou desconhecidas entre os judeus.

Calvino tem uma posição também bastante interessante sobre esta passagem:

Em virtude desta prova bastante evidente, portanto, o Senhor queria recomendar-lhes a grandeza e afluência de sua bondade, que haveriam de sentir após a morte, quando a descrevia como que a transbordar a toda a descendência. Com efeito, a veracidade desta promessa então o Senhor a selou, e como que lhe exibiu o cumprimento, quando, muito depois da morte destes, o denominavam o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó [Ex 3.6]. E então? Não era, porventura, ridícula essa designação, se haviam perecido? Ora, teria sido exatamente como se assim houvesse falado: "Eu sou Deus daqueles que não existem". Daí narram os evangelistas [Mt 22.23-32; Lc 20.27-38] que com este exato argumento os saduceus foram pressionados por Cristo, isto é, individualidades que haviam aprendido do próprio Moisés que "todos os santos lhe estão na mão" [Dt 33.3], de sorte que não pudessem, de fato, negar que a ressurreição dos mortos fora atestada por Moisés. Donde era de se concluir que, na verdade, não se extinguem na morte aqueles a quem receberam sob sua tutela, guarda e proteção é Aquele que é o árbitro da morte e da vida.

(CALVINO, João. As Institutas. Edição Clássica. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 2. ed. vol. 2, pp. 192-193)

Ainda que os saduceus reconhecessem a sabedoria da resposta de Jesus e não quisessem mais interrogá-lo (vv. 39-40), Jesus lhes dirige outra pergunta. Citando o Salmo 110:1 – "Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos por estrado dos teus pés" (vv. 42-43), indaga-lhes como Davi poderia chamar de Senhor alguém que é conhecido como "filho de Davi", título que muitos conferiam a Jesus. Os saduceus, dada sua interpretação literal das Escrituras, certamente esperavam o messias como sendo um descendente de Davi, um "filho de Davi", mas aqui Jesus lhes mostra que o próprio Davi chama o messias de Senhor, ou seja, de Deus, e como Jesus se apresentava também como Filho de Deus, aqui temos uma das mais claras defesas que o próprio Mestre faz da doutrina da Trindade. Ainda que a palavra "trindade" não esteja escrita na Bíblia, e seja uma formulação teológica para definir um mistério tão profundo, o próprio Jesus faz questão de citar esse salmo de dificílima interpretação para ressaltar a sua condição divina. Lucas não se limita a este trecho de seu evangelho para reforçar esta verdade, mas no livro de Atos ele faz questão de relatar a citação que Pedro faz deste mesmo Salmo:

Atos 2:29 Irmãos, seja-me permitido dizer-vos livremente acerca do patriarca Davi, que ele morreu e foi sepultado, e entre nós está até hoje a sua sepultura. 30 Sendo, pois, ele profeta, e sabendo que Deus lhe havia prometido com juramento que faria sentar sobre o seu trono um dos seus descendentes - 31 prevendo isto, Davi falou da ressurreição de Cristo, que a sua alma não foi deixada no hades, nem a sua carne viu a corrupção. 32 Ora, a este Jesus, Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas. 33 De sorte que, exaltado pela dextra de Deus, e tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou isto que vós agora vedes e ouvis. 34 Porque Davi não subiu aos céus, mas ele próprio declara: Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, 35 até que eu ponha os teus inimigos por escabelo de teus pés. 36 Saiba pois com certeza toda a casa de Israel que a esse mesmo Jesus, a quem vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo.

É interessante como se observa, na Bíblia, o progresso da Revelação. Primeiro, Davi compõe, inspirado, aquele salmo messiânico, em que fala isto que é completamente estranho ao monoteísmo judaico: a existência de Dois Senhores dentro daquilo que eles entendiam por unicidade. Depois, Jesus pergunta aos fariseus de quem eles imaginavam que o Messias seria Filho (Mateus 22:41-46), e quando eles respondem "de Davi", Jesus faz questão de se mostrar maior que Davi, maior do que o homem, mesma atitude que tem diante dos saduceus nessa passagem de Lucas 20. E, por fim, na primeira pregação cristã (a do Pentecostes), Pedro lembra-se novamente desse Salmo, cita-o e inclui na Revelação a promessa do Espírito Santo, finalmente cumprida naquele exato momento. É óbvio que Pedro não fez um tratado sobre a Trindade naquele momento por duas razões básicas: a primeira é que isso era claro para ele e para os discípulos de Cristo; e a segunda é que continua inacessível à razão saber como esse "mistério" se processa dentro da Divindade. Pedro sabia que somente a fé realmente alcança este entendimento. E se a fé vem pelo ouvir, e o ouvir vem pela Palavra de Deus (Romanos 10:17), era exatamente isto o que ele estava fazendo naquele dia de Pentecostes, sem querer estruturar ali um compêndio de Teologia Sistemática que agradasse a razão. Mas Lucas, ao registrar esse sermão, divinamente inspirado, fez questão de deixar claro ali do que Pedro estava falando, para nossa alegria e instrução.

Retornando ao evangelho de Lucas, ele termina o capítulo 20 mostrando Jesus advertindo seus discípulos que se guardassem dos escribas, que gostavam de desfrutar de sua reputação e ostentá-la perante o povo, devorando as casas as viúvas com pretensas orações, e que eles seriam objeto de juízo muito mais severo (vv. 45-47). Este é um capítulo, portanto, que começa e termina com Jesus sendo acossado pelos sacerdotes, escribas, fariseus e saduceus, mostrando o conflito latente entre Deus-Filho e uma religiosidade tacanha, interesseira, que pensava apenas nos benefícios que seus líderes podiam auferir das superstições ritualísticas que inculcavam nos seus adeptos incautos. Era este conflito que estava prestes a explodir.

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