sábado, 7 de dezembro de 2013

Como Fidel ajudou Mandela a acabar com o apartheid

Conforme comentamos ontem, 06/12/13, em nosso adeus a Nelson Mandela, existe toda uma tendência (que não vem de hoje) em adocicar a figura de Mandela, que já beirava a canonização em vida, tornando-o mais palatável aos interesses políticos e midiáticos em transformá-lo num herói manso e domável, portanto manipulável.

Entretanto, a história verdadeira da vida de Mandela não foi exatamente assim, personagem que ele foi de uma luta renhida contra o apartheid, o sistema racista opressor da minoria branca afrikâner da África do Sul.

"Madiba" esteve por longo tempo associado às lutas comunistas em plena Guerra Fria, aquela triste época em que o mundo se dividia entre os satélites de Estados Unidos e União Soviética, algo que as novas gerações não viveram e os mais velhos já veem pelo espelho retrovisor da História.



Por isso mesmo, Mandela foi visto por longo tempo como um terrorista, alguém que desafiava o status quo do racismo como política de Estado na África do Sul, e que, portanto, devia ser combatido e - se possível - eliminado.

"Enforquem Mandela e todos os terroristas
do Congresso Nacional Africano. Eles são
açougueiros", pedia a juventude conservadora
britânica no início dos anos 1980, com o
apoio entusiasmado de sua primeira-ministra.
O jornalista e escritor Mário Magalhães lembrava em junho deste ano, em seu blog, que a juventude conservadora do Reino Unido, no início dos anos 1980, pedia a cabeça de Madiba, querendo enforcá-lo, e a própria primeira-ministra britânica da época, Margaret Thatcher, ícone do neoliberalismo mundial, o chamava de "terrorista".

Sim, é isto mesmo o que você leu. No começo dos anos 1980, havia muitos políticos importantes no comando do globo que, a depender deles, manteriam Mandela na cadeia até o fim de seus dias, da mesma maneira que - contraditória e ridiculamente - há muita gente hoje em dia que diz celebrar Mandela mas é contra as cotas raciais e ações afirmativas pelas quais ele tanto lutou.

É provável que alguns daqueles jovens conservadores britânicos, já no fim da década de 1980, mais precisamente no dia 11 de junho de 1988, tenham ido ao estádio de Wembley, em Londres, para tomar parte do gigantesco show que homenageou o 70º aniversário de Mandela, ainda encarcerado no Sul do planeta. 

Curiosamente, também num mês de junho, agora em 2013, quando a saúde de Mandela parecia estar por um microfio, a colunista do The Huffington Post, Hirania Luzardo, chamava a atenção para a relação especial que sempre houve entre Madiba e Fidel Castro, e como Cuba foi importante para abalar as estruturas militares do apartheid, conforme você pode ver no vídeo abaixo, introduzido pelo ator norteamericano Harry Belafonte, que também foi o orador inicial do histórico concerto de Wembley de 1988:


Com o passar do tempo, houve uma tentativa do conservadorismo mundial em se apropriar e domesticar o mito Mandela, ao qual ele reagiu, diga-se de passagem, com o seu habitual pacifismo.

Entretanto, agora na hora de sua morte, não se deve esquecer que mesmo uma figura controversa como Fidel Castro, pense-se o que quiser dele (mas não seja hipócrita), foi sempre vista e reconhecida por Mandela como decisiva para o seu sucesso.

Como você percebe, o jogo político-ideológico mundial é muito mais intrincado do que parece à primeira vista. Isto quando você tem acesso à informação.



Mandela já passou à história como "santo". Quando chegar a sua vez, Fidel será vendido pelo grosso da imprensa mundial como o "diabo". Depende das tintas que alguém escolher para pintá-los. E elas nem sempre são tão definitivas assim.

Um dos episódios mais abafados da história da imprensa mundial foi a batalha de Cuito Cuanavale, quando a guerra civil de Angola ameaçou se alastrar pela Namíbia, então ocupada pelo regime racista sul-africano.

A Namíbia é hoje um país independente muito em função dessa operação cubana, que foi extremamente hábil em estratégia militar e técnicas de negociação diplomática.

Mandela viu no desgaste militar dos afrikâners nesse episódio o empurrão final para que o castelo de cartas do apartheid viesse abaixo.

Por isso mesmo, para que essa história real nunca seja esquecida, reproduzimos abaixo o relato do portal Pátria Latina, publicado em 27/03/13:



CUITO CUANAVALE: A batalha que deu cabo do apartheid

Neste ano, comemora-se o 25º aniversário (*) do início da batalha de Cuito Cuanavale, no sudeste de Angola, onde as forças armadas da África do Sul do apartheid se enfrentaram com o exército cubano e com as forças angolanas. O ataque sul-africano "foi parado abrupta e definitivamente" pelas forças revolucionárias.

O general Magnus Malan escreveu em suas memórias que a campanha foi uma grande vitória para as forças de defesa sul-africanas (SADF), mas Nelson Mandela não podia discrepar mais: "Cuito Cuanavale — afirmou — foi a viragem para a luta de libertação do meu continente e de meu povo do flagelo do apartheid".

O debate sobre o que significou Cuito Cuanavale tem sido intenso, numa parte porque os documentos sul-africanos relevantes continuam sem serem revelados. Contudo, eu tenho estudado os documentos nos arquivos fechados cubanos e também muitos documentos norte-americanos. Apesar da fenda ideológica que separa Havana de Washington, estes documentos relatam uma história que impacta pelo parecido que têm.

Eis os fatos. Em julho de 1987, o exército angolano (Fapla) iniciou uma ofensiva de maior envergadura no sudeste de Angola, contra as forças de Jonás Savimbi. Mas ao ver que a ofensiva estava tendo sucesso, as SADF, que controlavam os territórios mais meridionais do sudeste de Angola, intervieram. No início de novembro, as SADF tinham cercado as melhores unidades angolanas no povoado de Cuito Cuanavale e estavam preparando-se para eliminá-las.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas exigiu que as SADF se retirassem incondicionalmente de Angola, mas a administração Reagan se assegurou de que esta exigência fosse mais uma resolução, sem maior transcendência.

O secretário adjunto dos Estados Unidos para a África, Chester Crocker, disse ao embaixador da África do Sul nos Estados Unidos: "A Resolução não exige sanções e não estabelece nenhuma ajuda para Angola. Isto não é por acaso, mas sim o resultado dos nossos esforços para manter a resolução dentro de determinados limites". (1) Entretanto, as SADF aniquilariam as unidades elites das Fapla.

No início de 1988, fontes militares sul-africanas e diplomatas ocidentais asseguravam que a derrota de Cuito era iminente. Isto significaria um golpe devastador para o governo angolano.

Em 15 de novembro de 1987, o presidente cubano Fidel Castro decidiu enviar mais tropas e armas a Angola: seus melhores aviões com seus melhores pilotos, suas armas antiaéreas mais sofisticadas e seus tanques mais modernos. A intenção de Castro não só era defender Cuito, mas sim tirar definitivamente as SADF de Angola. Posteriormente, ele descreveu sua estratégia ao líder do Partido Comunista Sul-Africano Joe Slovo: Cuba ia parar o ataque sul-africano e depois atacaria noutra direção, "como o boxeador que com a mão esquerda mantém o contrário afastado e com a direita o golpeia". (2) Aviões cubanos e 1.500 soldados cubanos reforçaram os angolanos e Cuito Cuanavale venceu. Em 23 de março de 1988, os sul-africanos lançaram o último ataque de maior envergadura contra Cuito. Tal como descreveu o coronel Jan Breytenbach, o ataque sul-africano "foi parado abrupta e definitivamente" pelas forças conjuntas cubano-angolanas".

A mão direita de Havana se preparou para golpear. Poderosas colunas cubanas avançaram no sudoeste de Angola, para a fronteira da Namíbia. Os documentos que nos poderiam dizer aquilo que os líderes sul-africanos pensaram acerca desta ameaça continuam sem serem revelados. Mas sabemos o que as SADF fizeram: ceder terreno. Os serviços de inteligência dos EUA explicaram que os sul-africanos se retiravam porque estavam impressionados pela rapidez e a força do avanço cubano e porque consideravam que um combate de maior envergadura "teria acarretado grandes riscos". (3)

Quando criança, escutei meu pai, na Itália, falar da esperança que ele e seus amigos sentiram, em dezembro de 1941, quando escutaram pela rádio que as tropas alemãs tinham abandonado a cidade de Rostov do Don. Era a primeira vez, em dois anos de guerra, que o "superhomem" alemão era obrigado a retirar-se. Lembrei aquelas palavras quando li a imprensa sul-africana e da Namíbia, em meados de 1988.

Em 26 de maio de 1988, o chefe das SADF anunciava que "forças cubanas e das Swapo, fortemente armadas, integradas por primeira vez, avançam rumo ao sul, a uns 60 quilômetros da fronteira com a Namíbia". Em 26 de junho, o administrador-geral sul-africano da Namíbia reconhecia que caças Mig-23 cubanos voavam sobre a Namíbia, uma mudança dramática daqueles tempos em que o céu era propriedade das SADF. Acrescentava que "a presença dos cubanos provocara uma onda de ansiedade na África do Sul".

Contudo, estes sentimentos de ansiedade não eram compartilhados pelos negros sul-africanos: eles viam a retirada das forças sul-africanas como uma luz de esperança.

Enquanto as tropas de Castro avançavam rumo à Namíbia, cubanos, angolanos, sul-africanos e estadunidenses se enfrentavam na mesa de negociações. Existiam dois pontos chaves: se a África do Sul aceitava a implementação da Resolução nº 435, do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que exigia a independência da Namíbia e se as partes concordavam sobre um cronograma da retirada das tropas cubanas de Angola.

Os sul-africanos pareciam ter muita esperança: o chanceler Pik Botha esperava que a Resolução 435 fosse modificada. O ministro de Defesa Malan e o presidente P.W. Botha afirmavam que a África do Sul se retiraria de Angola, caso "Rússia e seus fantoches fizessem o mesmo". Eles nem sequer mencionavam retirar-se da Namíbia . Em 16 de março de 1988, o Business Day informava que a Pretória estava "oferecendo retirar-se para a Namíbia — não da Namíbia — em troca da retirada das forças cubanas de Angola". Quer dizer, a África do Sul não tem nenhuma intenção de retirar-se do território, em nenhum futuro próximo.

Mas os cubanos reverteram a situação no campo. E quando Pik Botha apresentou as exigências sul-africanas, Jorge Risquet, chefe da delegação cubana, lhe esclareceu: "a época das aventuras militares, das agressões impunes, de seus massacres de refugiados acabou". A África do Sul — disse — estava agindo como se fosse "um exército vencedor, em lugar do que realmente é: um exército agressor golpeado e em discreta retirada. A África do Sul deve entender que não vai obter nesta mesa de negociações o que não pôde conseguir no campo de batalha". (4)

Quando terminaram as conversações no Cairo, Crocker enviou um telex ao secretário de Estado, George Shultz, dizendo que as conversações tinham tido, como "pano de fundo, a tensão militar crescente, por causa do avanço para a fronteira da Namíbia de tropas cubanas fortemente armadas, no sudoeste de Angola. O avanço cubano criou uma dinâmica militar imprevisível" (5).

A pergunta era: será que os cubanos iam parar na fronteira? Para responder esta pergunta, Crocker foi buscar Risquet: "Cuba tem a intenção de deter seu avanço na fronteira entre a Namíbia e Angola?".

Risquet respondeu: "seu eu lhe dissesse que não vão deter-se, estaria proferindo uma ameaça. Se eu lhe dissesse que vão deter-se, lhe estaria dando um calmante, e eu não quero nem ameaçar nem dar calmante, somente os acordos sobre a independência da Namíbia podem dar as garantias" (6)

No dia a seguir, em 27 de junho de 1988, caças Mig cubanos atacaram posições das SADF, perto da barragem de Calueque, 11 quilômetros ao norte da fronteira da Namíbia. A CIA informou que "o sucesso com que Cuba vem utilizando sua força aérea e a aparente fraqueza das defesas antiaéreas da Pretória" sublinhavam o fato de que Havana já tinha conseguido superioridade aérea no sul de Angola e no norte da Namíbia. Horas depois do ataque dos cubanos, as SADF destruíram uma ponte próxima de Calueque sobre o rio Cunene. Fizeram isto — segundo a CIA — "para dificultar às tropas cubanas e angolanas o cruzamento da fronteira com a Namíbia e para reduzir o numero de posições que deviam defender". (7)

O perigo dum avanço cubano sobre a Namíbia nunca antes tinha parecido tão real.

Os últimos soldados sul-africanos saíram de Angola, em 30 de agosto, quando nas negociações nem sequer se tinha começado a discutir o cronograma da retirada cubana de Angola.

Apesar de todos os esforços de Washington para impedi-lo, Cuba mudou o curso da história da África Austral. Até Crocker reconheceu o papel de Cuba, quando disse a Shultz, em 25 de agosto de 1988: "Descobrir o que pensam os cubanos é uma forma de arte. Estão prontos, tanto para a guerra como para a paz. Fomos testemunha dum grande refinamento tático e duma verdadeira criatividade na mesa de negociações. Isto tem como pano de fundo as fulminações de Castro e o desdobramento sem precedentes de seus soldados no terreno" (8).

A façanha dos cubanos no campo de batalha e sua virtuosidade na mesa de negociações foram decisivas para obrigar África do Sul a aceitar a independência da Namíbia. Seu sucesso em Cuito Cuanavale foi o prelúdio duma campanha que obrigou as SADF a saírem de Angola. Esta vitória repercutiu mais para lá da Namíbia.

Muitos autores — Malan é só um exemplo — têm tentado reescrever esta história, mas documentos norte-americanos e cubanos relatam o que verdadeiramente aconteceu. Esta verdade foi expressa, com eloquência, por Thenjiwe Mtintso, embaixadora da África do Sul em Cuba, em dezembro de 2005: "Hoje, a África do Sul tem novos amigos. Ontem, estes amigos se referiam a nossos líderes e a nossos combatentes como terroristas e nos acossavam a partir de seus países, e ao mesmo tempo apoiavam a África do Sul do apartheid. Esses mesmos amigos hoje querem que nós denunciemos e isolemos Cuba. Nossa resposta é muito simples, é o sangue dos mártires cubanos e não destes amigos que corre profundamente na terra africana e nutre a árvore da liberdade em nossa Pátria".

NOTAS

(*) Este artigo foi escrito há cinco anos, por ocasião do 20º aniversário desta batalha.

1) Secretário de Estado, à embaixada dos EUA na Pretória, 5 de dezembro de 1987, Freedom of Information Act (daqui em diante FOIA).

2) Transcrição sobre a reunião do comandante-em-chefe com a delegação de políticos da África do Sul (Comp Slovo), Centro de Informação das Forças Armadas Revolucionárias.

3) Abramowitz (Escritório de Inteligência do Departamento de Estado) ao secretário de Estado. 13 de maio de 1988, FOIA

4) Transcrição não oficial. Conversações RPA-CUBA-EUA-RSA (Reunião Quadripartite) sessão da tarde de 24-

5) Crocker ao secretário de Estado, 26 de junho de 1988. FOIA.

6) Entrevista de Risquet com Chester Crocker, 26-6-88, ACC.

7) CIA, South Africa-Angola-Cuba, 29 de junho de 1988. FOIA; CIA, South Africa-Angola-Cuba, 1 de julho de 1988, FOIA.

8) Crocker ao secretário de Estado, 25 de agosto de 1988, FOIA.

(*) Politicólogo e historiador italiano, professor de política exterior dos Estados Unidos na Escola de Estudos Internacionais Avançados (SAIS) da Universidade Johns Hopkins, Estados Unidos.



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