sábado, 10 de janeiro de 2009

Crença e descrença em Dostoievsky

Atribui-se a Dostoievsky a frase "se Deus não existe, tudo é permitido". 

Primeiramente, há que se desfazer o equívoco já "institucionalizado": esta é uma frase que Sartre (Jean-Paul) atribuiu a Dotoievsky em "Os Irmãos Karamazov", mas Dostoievsky- a bem da verdade - nunca escreveu isso. 

O que existe, no livro, é um trecho em que o personagem Mitia, um dos irmãos do título, se pergunta:
- Mas então, que se tornaria o homem, sem Deus e a imortalidade? Tudo é permitido e, conseqüentemente, tudo é lícito? (...) Que fazer, se Deus não existe, se Rakitine tem razão ao pretender que é uma idéia forjada pela humanidade? Neste caso, o homem seria o rei da terra, do universo. Muito bem ! Mas como ele seria virtuoso sem Deus?
Assim, a frase de onde Sartre extraiu a conclusão expressa no postulado acima, é outra, e deve ser lida dentro do contexto do livro. 

O que Mitia pergunta ali é como é que o homem pode ser virtuoso sem Deus, o que não deixa de ser uma crítica aos ateus, no sentido de que ateus não poderiam ser morais. 

Ora, isso é claramente uma hipótese do absurdo a que Dostoievski se refere e coloca na boca de um de seus personagens, já que ele era deísta e não lhe ocorria a possibilidade de existir um mundo sem Deus.

Aqui está, portanto, a nossa primeira dificuldade em admitir essa hipótese, pois é praticamente impossível encontrar alguém que, empiricamente, viva num mundo sem considerar a existência de uma força divina. 

Talvez ainda exista uma tribo perdida em algum rincão do planeta em que isso seja possível, mas o próprio fato de estarmos discutindo este tema aqui mostra que Deus é, no mínimo, um objeto de análise. 

Da minha parte, eu creio na sua existência. 

Outros, entretanto, não creem, mas o grande problema para muitos ateus é exatamente o fato de que tanta gente creia em Deus, e isto também os afeta no sentido de que, vez ou outra, tem que argumentar no sentido de que não existe nenhum deus. 

Seria como se Deus estivesse dizendo: "falem bem ou falem mal, mas falem de mim". 

Dentro dos pressupostos metodológicos da ciência, portanto, a negação de Deus teria que ser empírica, demonstrável, insofismável, verificável, mas isso gera um problema para os ateus: como demonstrar o que não existe? 

Estamos de novo diante da hipótese do absurdo, e me parece que é isso o que Dostoievski quer mostrar colocando a frase na boca do seu personagem. 

¿Como falar em imortalidade da alma, se nem em alma se crê?

A dificuldade é, me parece, recíproca. 

Um ateu não consegue imaginar um mundo sem algum deus, porque não lhe dão esta oportunidade. 

A não ser que ele se isole numa ilha perdida qualquer, ele sempre estará sendo bombardeado pela (pelo menos) noção do divino, que terá que rebater de alguma forma. 

A questão do que é moral, imoral ou amoral é, também, prejudicada pelo alto grau de subjetividade e, digamos, "divinização" do tema, já que a moral sempre esteve intimamente ligada à religião. 

É claro que os princípios morais estão presentes nos ateus, mas o difícil é determinar a sua origem. 

Daí ser impossível, a meu ver, imaginar um universo em que Deus não exista, pois mesmo que cheguemos próximos dessa imagem, ela é absurda no sentido de que não há registro de que este universo efetivamente seja uma realidade. 

Logo, o ateu não pode rebater com o absurdo a ideia que lhe parece absurda. Seria uma bela discussão para saraus filosóficos inócuos, mas sem qualquer efeito prático.

Retornamos, assim, à questão do iluminismo do século XVIII, fruto - em grande parte - do terremoto de Lisboa em 1755 que abalou não só a cidade como toda a razão e - igualmente - a religião naquela época. 

Tudo o que se seguiu ao estupor causado pelo sismo português e pela Revolução Francesa foi no sentido de tornar o conhecimento do homem mais objetivo e menos subjetivo. 

Um tsunami de destruição e transformações.

Uma fuga incansável de tudo o que fosse imprevisível.

O positivismo da segunda metade do século XIX é a maior expressão dessa era, em que se imaginou que tudo o que fosse moral poderia ser sistematizado em termos objetivos, positivos. 

Afinal, foi aí que começou a era das grandes descobertas científicas, da separação da Igreja do Estado, enfim, de uma série de fatores que apontava para um novo tempo para o ser humano. 

Entretanto, vieram as duas Grandes Guerras do século XX e todo esse positivismo foi por água abaixo. 

Um exemplo que vale a pena ler, se houver oportunidade, é Gustav Radbruch, que escreveu o livro "Filosofia do Direito", que são vários ensaios divididos em capítulos que mesmo quem não seja profissional da área vai gostar de ler. 

Até 1945, Radbruch era firmemente positivista. 

Depois disso, se transformou num dos mais veementes defensores do Direito Natural, aquele que se baseia numa espécie de moral universal imune a épocas, culturas e civilizações, o mesmo Direito Natural que serviu para legitimar a monarquia absoluta pré-Revolução Francesa, e que havia sido rechaçado pelo Positivismo. 

Isto apenas demonstra como estamos longe de determinar o que seja esta moral universal, que nos afeta e implica a todos, sejamos ateus ou religiosos, crentes ou descrentes.

De certa forma, o "absurdo" mais nos une do que nos separa.

O que me remete, se nos permitem finalizar com esta citação, a um texto de Henri Nouwen (“Mosaicos do Presente”, Paulinas, 2000, p. 14):
    Orar é dar ouvidos a esta voz de amor. É nisso que consiste a obediência. A palavra “obediência” vem do latim “ob-audire”, que significa ouvir com muita atenção. Sem ouvir, tornamo-nos surdos à voz do amor. A palavra latina para surdo é “surdus”. Assim, ser completamente surdo é ser “absurdus”; sim, absurdo. Quando deixamos de orar, quando deixamos de escutar a voz do amor que nos fala neste momento, a nossa vida torna-se uma vida absurda e somos lançados para trás e para a frente entre o passado e o futuro.

   Se pudéssemos estar, nem que fosse só alguns minutos por dia, completamente onde estamos, descobriríamos com certeza que não estamos sós e que aquele que está conosco quer apenas uma coisa: dar-nos amor.
 



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