sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Fé e Razão na Revolução Francesa

Dando sequência à investigação de alguns antecedentes históricos do confronto entre cristianismo e ateísmo, ou entre religião e não-religião, o texto abaixo é do historiador Paul Johnson, no seu livro "História do Cristanismo" (Ed. Imago, 2001, pp. 436-441). Mostra o que a Revolução Francesa tentou criar, em termos de religião, para substituir o cristianismo (ou catolicismo, já que a imensa maioria da população francesa da época era católica). O texto é profundamente interessante. Acho que ateus e religiosos têm muito a aprender com a sua leitura. De um lado, a tentativa de se substituir a religião por outro sistema de crenças, ainda que pretensamente ateu, pode tanto não dar certo, que a religião é vista como um retorno à normalidade, à racionalidade, num desses paradoxos que só a História, cíclica como é, pode nos proporcionar. Por outro lado, os religiosos poderão ver que muitas de suas práticas podem ser equiparadas a tentativas gnósticas de reproduzir no mundo real uma imaginação espiritualizada das relações humanas, e tudo isso gera uma confusão muito perigosa. Bem, desfrutem o texto. É muito bom, eu recomendo.






Dentro desse contexto, os novos governantes da França procederam à remoção e substituição do cristianismo católico. Uma testemunha ocular, Mercier, mais tarde registraria em suas memórias que, se Roberpierre tivesse aparecido com uma velha Bíblia debaixo do braço e ordenado com firmeza aos franceses que se tornassem protestantes, poderia muito bem ter logrado êxito. A revolução, contudo, não era reformista, mas milenarista. Foi, com efeito, a primeira revolta milenarista moderna. Remontava-se à Munster da década de 1520 e à Idade Média, e pressagiava Karl Marx e Mao Tse-tung. Também sofreu influência de seu próprio décor, um reflexo do renascimento clássico: daí apresentar matizes das tentativas patéticas do Imperador Juliano de reviver o paganismo imperial. Cadet de Vaux ergueu o primeiro "altar patriótico" em janeiro de 1790, em sua casa de campo; ostentava machados e fasces, uma lança coroada com um barrete da Liberdade, um escudo com um retrato de Lafayette e versos de Voltaire; o arranjo foi amplamente imitado. Esses altares eram o núcleo de cerimônias ao ar livre, em que se prestavam juramentos de fidelidade, cantava-se o Te Deum e consumiam-se banquetes comunitários. O progenitor e régisseur era J-P. David, que promoveu, em julho de 1791, uma cerimônia gigantesca para o traslado dos restos de Voltaire para o Panthéon. O evento levantou a questão do papel da religião nas cerimônias de Estado, e, em conseqüência, o problema do casamento civil e da educação secular. A Revolução, ao criar uma nova sociedade, não deveria também muni-la de uma nova religião? Muitos dos revolucionários eram deístas. Acreditavam na natureza; ou, como Rousseau, na comunicação direta com Deus, sem intermediários. Outros elementos de seu credo eram o patriotismo e o culto da fraternité – daí o Templo da Amizade de Saint-Just, onde todos os adultos deveriam, uma vez por ano, enunciar os nomes de seus amigos e explicar aos magistrados por que os haviam citado.

Infelizmente, os novos cultos não podiam ser separados da descristianização e da guilhotina, que servia, por assim dizer, para eliminar argumentos inconvenientes de forma perfeitamente racionalista. Em 7 de outubro de 1793, celebrou-se uma cerimônia em Rheims em que um ferreiro local esmagou o frasco miraculoso de óleo sagrado utilizado na coroação. Muitos dos descristianizadores eram renegados, como nos primeiros movimentos milenaristas – Fouché fora oratoriano, Laplanche, beneditino, e Charles, cônego em Chartres. Alguns eram comunistas, como outro ex-oratoriano, Joseph Lebon: "se, quando a Revolução chegar ao fim, ainda houver pobres entre nós, nossos esforços revolucionários terão sido em vão", Ele declarou, em seu julgamento, que derivava todas as suas máximas revolucionárias dos evangelhos, "que, do princípio ao fim, pregam contra os ricos e sacerdotes". Algumas igrejas foram depredadas. Em Paris, as fileiras dos descristianizados eram compostas pelos muito pobres; nas províncias, estes geralmente eram a linha de frente. Arrasaram tumbas aristocráticas e demoliram o mausoléu funerário em St. Denis. (Descobriram o coração encolhido e preservado de Luís XIV, que acabou sendo comido por engano). Cerca de vinte a quarenta mil dos sacerdotes que não juraram foram exilados; algo entre dois e cinco mil foram executados. A Igreja "constitucional" foi arruinada quando cerca de vinte mil dos padres juradores – a maioria sob pressão – concordaram em ser descristianizados; quarenta e dois bispos abdicaram de sua posição, conquanto somente vinte e três tenham incorrido em apostasia de fato. Alguns padres casaram-se para salvar suas vidas, outros fizeram-no voluntariamente; porém, havia casamentos clericais, celebrados por bispos, antes do início do processo de descristianização. (Mais tarde, quando a Igreja retomou o celibato, sob Napoleão, milhares solicitaram a absolvição). A separação formal entre igreja e o Estado foi decretada em 1795, o país tornou-se uma República em 1798 e o Papa Pio VI foi declarado prisioneiro francês, morrendo em Valência em agosto de 1799; a municipalidade registrou o falecimento de "Jean-Ange Braschi, exercendo a profissão de pontífice".

Entrementes, os cultos alternativos mostraram ser tão instáveis e efêmeros quanto o gnosticismo, com que guardavam curiosa semelhança. Ademais, tinham um ar de paródia. David arquitetou os funerais organizados de mártires da república, como Marat; algumas mulheres juraram educar seus filhos no culto de Marat, sem lhes oferecer qualquer outra escritura além de suas obras (em sua maioria, de natureza jornalística). Promoveu-se um festim para o "traslado" de seu coração para um clube revolucionário, onde ficou guardado em uma urna que pendia do teto. David também criou a cerimônia para a aceitação da Constituição, realizada em agosto de 1793, no antigo local da Bastilha, e baseada em uma imensa estátua da Natureza, vertendo água dos seios. Um membro do Comitê de Segurança Pública entoou: "soberana das nações, selvagem ou domada – Oh, Natureza! – este grande povo é digno de você. Após reverter tantos séculos de erros e servidões, tinha de retornar à simplicidade dos seus caminhos para redescobrir a igualdade e a liberdade". Em seguida, bebeu da fonte. Para o Festival da Razão na Catedral de Notre-Dame, em 10 de novembro, a própria igreja foi declarada Templo da Razão, tendo-se construído em seu interior uma montanha cenográfica, encimada por um Templo da Filosofia. No entanto, não havia acordo quanto às formas de culto, nem mesmo a seu tema ou objeto. Em Poitiers, os padres foram forçados a efetuar abjurações humilhantes, e pessoas vestidas de papas e monges foram açoitadas pelas ruas. (Tal cerimônia, de objetivo ateu, era quase idêntica às mascaradas anticatólicas promovidas pelos protestantes, em meados do século XVI). A maioria das cerimônias era deísta. Ocasionalmente, como alternativa à razão, adoravam-se abstrações como o direito, a verdade, a liberdade ou a natureza. No entanto, Deus encontrava meios de emergir por trás desses conceitos; em Beauvais, a razão, a liberdade e a natureza surgiram como três deusas, e, em Auch, o celebrante indagava: "o que é o culto à razão, senão a homenagem que prestamos à ordem estabelecida pela sabedoria eterna?". Robespierre deu fim à descristianização e substituiu a razão pelo Ser Supremo; como o credo que estabeleceu incluía a imortalidade da alma, ia além do anglicanismo mínimo de Locke. Contudo, sem a selvagem excitação da descristianização, as cerimônias eram tediosas para a turba, e só atraíam os sólidos cidadãos burgueses que tinham nelas algum interesse particular (como o paganismo, nos últimos tempos de Roma). Os elementos acessórios foram repintados e ganharam um novo nome. Durante algum tempo, entusiastas deram a seus filhos nomes como Marat, Brutus e assim por diante. Poupinel, autor de hinos republicanos ,instou: "usemos a pompa cívica para fazer com que o povo esqueça as antigas demonstrações de superstição; em uma palavra, vamos oferecer alternativas mais impressionantes e atraentes às cerimônias que, por tanto tempo, iludiram o povo, e o esqueleto do sacerdotalismo se desintegrará por conta própria".

Falar era fácil. O cristianismo, com seus muitos insights e matrizes, não encontrara dificuldade alguma em absorver elementos do cerimonial pagão e transformá-los. Os republicanos, divididos e orgulhosos, atrapalhavam-se, e suas cerimônias oscilavam entre a paródia e o linguajar bombástico e vazio, como as apresentações do comunismo soviético na Praça Vermelha ou a nova ginástica na China de Mao. Parece que se partia da premissa de que a moral pública dependia de exibições religiosas ou gnósticas de algum tipo; a ênfase erasmiana na crença e piedade privadas era repudiada como insuficiente. O Institut, por dois anos, instituiu um concurso de ensaios intitulado "Quelles sont les institutions les plus propres à fonder la morale d'un peuple?" ("Quais são as instituições mais apropriadas para fundamentar a moral de um povo?"). Inventou-se um grande número de cultos. Havia o "Culto dos Adoradores", composto de idéias e imagens de Rousseau, templos indianos, Pompéia e pinturas de Greuze; seus sacerdotes, eleitos a cada ano, eram encarregados de cuidar de um fogo eterno, queimar incenso nos funerais e realizar libações de leite, mel e vinho. Uma variação tinha médicos e cientistas substituindo os sacerdotes, com experimentos de laboratório no lugar da missa. Um terceira possibilidade era um amálgama das doutrinas de Moisés, Cristo, Confúcio e Maomé. Havia cultos seculares comunistas ou sociais. O mais bem-sucedido de todos parece ter sido a Teofilantropia, forma de deísmo próxima do cristianismo (alguns de seus membros autodenominavam-se cristãos) que dispunha de um manual, dezesseis locais de culto em Paris, além de outros nas províncias, e cujas "cerimônias" eram conduzidas por "diretores" – em sua maioria, funcionários públicos, mestres-escolas, e assim por diante. Ex-sacerdotes faziam os sermões. No entanto, um pedido formal por sua oficialização foi indeferido pelo diretório. Barras sarcasticamente advertiu seu defensor, La Revellière, de que deveria primeiro ser martirizado, a fim de lançar a religião de modo adequado, e Carnot encerrou a discussão dizendo que uma religião bem-sucedida precisava de absurdo e ininteligibilidade – e, sob esses aspectos, nada conseguiria vencer o cristianismo.

Sob a superfície pública, o padrão de crença variava imensamente, costumando girar em torno de figuras individuais ao estilo montanista, que compreendiam desde santos até puros charlatães. Havia um acordo geral de que era necessário algum tipo de mecanismo religioso para manter as pessoas em boas condições. Alguns, como madame de Staël, filha de Necker, levavam o raciocínio ainda mais longe. Em "De la Littérature" ("Da Literatura", 1800), ela cunhou o que mais tarde se tornaria um truísmo: "o progresso científico torna necessário o progresso moral". Seu próprio círculo, em Coppet, estava apinhado de excêntricos religiosos, muitos de origem pietista germânica. Entre eles estava madame de Prudener, "convertida" em Riga em 1804, quando um conhecido tirou o chapéu para ela na rua e caiu morto de imediato. Fora catequizada pelo conselheiro Jung-Stilling, de Baden, que havia calculado que o mundo acabaria em 1819, e pelo pastor Friedrich Fontaines, que lhe descreveu o Reino dos Céus em detalhes; ela, por sua vez, mais tarde convenceria o czar Alexandre I a fundar a célebre Santa Aliança. Outro profeta de Staël era o poeta Zacharias Werner, que se convertera ao que se poderia denominar de Sexualidade Católica. Sua mãe havia imaginado ser a Virgem Maria e ele, Cristo; e ele mesmo acreditava em "Cristo e no amor copulador" – a alma do homem, em sua ascensão, tem de atravessar, durante a vida terrena, o purgatório de "corpos femininos". Daí ser ele o grande agarrador de servas em estalagens e casas particulares que, em Weimar, chocou Goethe e acabou com o chá oferecido por frau Schopenhauer ao tentar, ruidosamente, estuprar uma criada na cozinha. Seus bolsos viviam cheios de sonetos místico-eróticos amarrotados, endereçados de forma variada a suas atuais amantes ou a Deus, "o grande hermafrodita". Para ele, "tudo que o amor os leva a fazer com uma amante, é feito por amor a Deus".

Tais caricaturas tendiam a fazer o cristianismo parecer, em comparação, "normal" e familiar – e racional. No extremo oposto do espectro não-cristão, os racionalistas foram ou prejudicados pela associação com o terrorismo ou, na melhor das hipóteses, expostos como emocionalmente anêmicos. Rivarol, em seu "Discours sur l'homme intellectuel et moral" ("Discurso sobre o homem intelectual e moral", 1797), alegou que "a lacuna radical da filosofia é que ela não consegue falar ao coração (...). Mesmo que não consideremos as religiões como nada além de superstições organizadas, elas ainda seriam benéficas para a raça humana; pois, no cerne do homem, há uma fibra religiosa que nada é capaz de extirpar". Esse, é claro, era o ponto em que Voltaire tendia a concordar mesmo com o detestado Pascal. E eis mais um argumento voltairiano: o Estado precisava de uma religião – que funcionasse, fizesse realmente o povo comum conformar-se ás regras diárias da sociedade. Essa percepção voltairiana foi o princípio básico por trás da reconciliação napoleônica com o pontificado e a Igreja católica, marcada pela nova concordata de 1801. Napoleão declarava que ele mesmo havia perdido a fé aos onze anos, quando descobriu que César e Cato, os "mais virtuosos homens da Antiguidade, queimariam nas chamas eternas por não terem praticado uma religião sobre a qual nada sabiam". Aos dezessete, escreveu um ensaio aprovando a alegação de Rousseau de que o cristianismo puro constituía uma ameaça ao Estado. Para ele, o cristianismo foi substituído pelo culto da honra e da ética militar. Como outros do período do diretório, baseou-se no patriotismo, mas acabou chegando à conclusão de que este funcionava melhor quando reforçado pela religião, e, na França, esta tinha de ser o catolicismo – ele não via outro meio de por fim à guerra de guerrilha no oeste. Assim, agiu como Henrique IV: se Paris valia uma missa, a Vendéia valia uma concordata", reconhecendo oficialmente que o catolicismo era "a religião da grande maioria do povo francês". A afirmação era verdadeira no sentido de que, ao longo de todo esse período, a maioria das crianças francesas havia continuado a ser educada pelo clero; e a decisão de Napoleão de reabrir as igrejas, em 1802, foi a medida mais popular que tomou na França. Seus motivos eram inteiramente seculares. "O povo precisa ter uma religião, a qual tem que estar sob o controle do governo". A igualdade era inatingível, e a crença em uma vida futura ajudava os pobres a aceitar seu fardo. Sem uma religião "respeitável", o povo se voltaria para qualquer coisa. "A religião é uma espécie de inoculação (...) que, ao satisfazer nosso amor pelas maravilhas, imuniza-nos contra fraudes e feiticeiros". Não estava certo daquilo em que ele mesmo acreditava: achava que a alma era um tipo qualquer de força magnética ou elétrica. Mas achava, em termos práticos, que os estadistas estrangeiros não negociariam com ele a menos que pensassem que ele acreditava em Deus. Assim, estabeleceu-se como um Carlos Magno cético, e se submeteu a uma desconfortável recriação da coroação papal de 800, insistindo (dessa vez) em colocar, ele mesmo, a coroa na própria cabeça, com o Papa Pio VII praticamente como espectador.

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