Matéria publicada ontem, 01/01/13, na Folha de S. Paulo, mostra que a busca da paz interior mediante o silêncio - às vezes - pode mais se parecer com tortura autoimposta.
Pelo menos a ideia que a jornalista da Folha passa é a de que a busca da divindade externa ou internamente (como prega o budismo) pode - eventualmente - ser confundida com autopunição.
Cá entre nós, não é pra qualquer um...
LAURA CAPRIGLIONE
Viver de esmola em absoluto silêncio, em total disciplina, meditando em posição de lótus durante 12 das 24 horas do dia, sem qualquer contato físico com outra pessoa, em respeito a todos os seres --inclusive baratas, escorpiões, cobras e sapos!--, lavando sua própria roupa, seus pratos, arrumando sua cama.
Sem poder ler, sem poder escrever, sem usar um tocador de mp3 ou CD, sem computador, iPad, e-mail, Facebook. Sem telefone.
A Folha participou do Curso de Meditação Vipassana, um retiro espiritual de dez dias. Baseado em tradição de 2.500 anos, o Vipassana, diz o site, deriva de ensinamentos deixados pelo próprio Buda, transmitidos de geração em geração até hoje.
Dez dias sem saber se o Corinthians sagrou-se campeão mundial de clubes, se o José Dirceu foi preso, se a mãe comprou seu presente de Natal, se o mundo acabou como previram os maias. Dez dias para viver como um monge ou uma monja, praticando os ensinamentos de Buda.
Atrás da promessa da "erradicação das impurezas mentais, da suprema felicidade e da erradicação essencial do sofrimento" (é pouco?), 60 homens e 60 mulheres aterrissaram no dia 12 de dezembro na fazenda Dhamma Santi, área rural de Miguel Pereira (120 km do Rio).
Foram todos logo orientados a deixar objetos de valor (dinheiro, documentos, celulares e câmeras) na portaria.
Quem imaginava um spa de extração orientalista para relaxar em meio a nuvens de incenso, relicários de Buda e bandeiras de oração coloridas ao vento, à moda tibetana, tomou o primeiro susto.
Zero incenso, zero imagem de Buda, zero bandeira colorida. E zero pagamento (os organizadores só aceitam doações, em qualquer valor, de quem passar dez dias lá).
As paredes de tijolo aparente não contêm um só adereço. Das lindas trilhas abertas nas montanhas recobertas de mata atlântica só podem ser percorridos menos de cem metros que separam os dormitórios do salão de meditação e do refeitório. O restante está interditado por placas que avisam: "Limite". Dali não se passa.
É claro que fumar não pode, como também não pode beber, usar calmantes "ou qualquer tipo de intoxicante". Então, fica-se assim: das 24 horas do dia, 12 horas serão dedicadas à meditação e 12 horas servirão para dormir, alimentar-se, descansar, cuidar da higiene.
"Não tem milagre ou mágica. Não adianta focalizar a mente em uma imagem, em uma cor, em um som" [refere-se àquele "ommmm" pronunciado com os olhos fechados], avisa o professor birmanês Satya Narayan Goenka, 88, principal mestre de Vipassana hoje em atividade.
A voz de Goenka gravada em CDs é a única que se ouve no curso. Ele canta, recita ensinamentos em páli (a língua falada no norte da Índia no tempo de Buda), explica em inglês (tudo com tradução).
A ideia da meditação Vipassana é transformar a mente em um scanner que percorre cada parte do corpo, localizando as sensações agradáveis, desagradáveis, fortes e tênues que se manifestam. Então, usando de "equanimidade" (sem avidez ou aversão), vê-se como elas, impermanentes, efêmeras e mutáveis ("Anicca", em páli), dissolvem-se por si mesmas.
Segundo Goenka, "o autoconhecimento baseado na observação resulta numa mente em equilíbrio, cheia de amor e compaixão".
Mas haja força de vontade. Nos dois primeiros dias, é o próprio Goenka quem avisa: "A coluna dói, a cabeça dói (muito), pensa-se em desistir". Tem mais: o tempo não passa, a claustrofobia pega, a chuvarada deixa o retiro às escuras durante dois dias, aparecem pelo menos três sapos, uma cobra coral (megavenenosa), duas baratas, um escorpião e um caramujo, fora os pernilongos.
Duas mulheres não aguentam e "fogem", depois de crises de choro (há testemunhas), dores nas costas (nem precisa) e talvez fome.
A reportagem da Folha emagreceu 3,5 kg nos dez dias de saborosa alimentação vegetariana. Ainda não sabe se está com a mente mais equilibrada, "cheia de amor e compaixão".
LAURA CAPRIGLIONE
A decretação do fim do "nobre silêncio", no último dia do Curso de Meditação Vipassana, encheu de blá-blá-blá, sorrisos e histórias as instalações sóbrias do retiro.
Logo se soube que o sapo do banheiro, um anfíbio safado que parecia se divertir assustando as moças que iam tomar uma ducha, foi removido de lá corajosamente pela meditadora Claudete Sarapu, professora de Santo André. Ela o pegou usando um pano de chão como luva.
Ou que a consultora de sustentabilidade Gabrielle Lopez, 26, uma experiente frequentadora de retiros (já fez em Bali e na Costa Rica), a partir do sétimo dia não conseguiu mais acompanhar as meditações, o pensamento vagando disperso. "E por que você ficou?", quis saber a reportagem. "Tinha esperança de que melhorasse", afirmou.
O "nobre silêncio" não se limita a um "cala a boca". Significa "abster-se totalmente da comunicação com outros, verbal ou física, mesmo que por intermédio de gestos ou olhares", em busca do "silêncio mental". Pesa.
Durante toda a vigência desse silêncio em sentido amplo, ninguém sorriu para ninguém. Acabou também a gentileza, que exige interação entre viventes.
Noite fechada, sem luz (a chuvarada havia derrubado a rede elétrica), quem tinha lanterna fez facilmente o percurso entre os dormitórios e a sala de meditação. A quem não tinha, restou torcer para não pisar em uma cobra. Ninguém ofereceu ou pediu carona no facho de luz.
A mesma coisa aconteceu com os portadores de guarda-chuvas. Quem tinha, tinha. Quem não tinha, tivesse. Muitos chegaram à meditação pingando.
Nada favorecia a interação. No refeitório, as pessoas sentavam-se como se fosse em bancos de igreja. Todos voltados para o mesmo lado, de modo que ninguém se encarasse.
Mas o "nobre silêncio" acabou também com a histeria coletiva. Incrivelmente, a aparição de baratas, escorpiões, sapos e cobras não ocasionou um tsunami de gritos.
Na verdade, nenhum grito se ouviu, nem mesmo quando uma barata cismou de voar sobre as meditadoras concentradíssimas. Seria esse o caminho da iluminação?
Em absoluto silêncio, uma jovem levantou-se calmamente e pegou o chamado "kit salva inseto", que consiste em uma vasilha de plástico transparente e uma cartolina.
A vasilha, emborcada, imobilizou a barata, impedindo-lhe a fuga. Então, a cartolina foi enfiada por baixo. E levou-se a barata aprisionada para um matinho, onde ela foi de novo libertada.
Fiel ao princípio budista de respeito a todos os seres, ali não se matam animais --nem os peçonhentos.
Entre as mulheres houve aquelas que, exasperadas pela disciplina rígida, levaram ao extremo o que era possível. Já que era possível lavar roupas, lavava-se roupas todos os minutos de descanso. Esfrega aqui, torce ali, pendura no varal. E de novo, de novo.
Também podia-se limpar o banheiro, então limpava-se o banheiro compulsivamente. Ou varria-se o quarto. E a varanda. Os dias duram muito --demais-- quando não se pode falar, assistir à televisão ou passear na internet.
O professor Goenka prometeu em várias de suas palestras (sempre ministradas à noite) que o final do curso viria acompanhado por semblantes felizes, típicos de pessoas maravilhadas com as possibilidades abertas pelos ensinamentos recém-adquiridos.
De fato, no final, mesmo todos sendo obrigados a fazer uma faxina final nas instalações, os semblantes estavam exultantes. Havia felicidade no ar.